* por Edson Rontani Júnior
Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro
da Cachaça apresentam um fato curioso. A Caninha Tatuzinho é uma das quatro
marcas mais consumidas no mercado brasileiro de cachaça. Ela detém 7,2% do
mercado, segundo estimativas apontadas pelo Instituto, embora o consumo interno
venha diminuindo num ritmo de 2 a 3% ao ano e a exportação tenha se estagnado.
Um fator interessante a se ponderar é que a
Caninha Tatuzinho, produzida em Piracicaba entre os anos 40 e a década de 80,
cultiva ainda uma extensa lembrança na mente do consumidor, principalmente pela
maciça divulgação feita nos anos 60.
Quem não se lembra do bordão “O melhor
aperitivo nacional” ou do jingle veiculado nas rádios e tvs que cantava “Ai
tatu, Tatuzinho, me abre a garrafa e me dá um pouquinho”? Dcumentário veiculado
pela TV Cultura apontou este comercial como um dos cem mais lembrados pelo
consumidor. Até a Rede Globo, quando exibiu especiais sobre os seus 30 anos,
incluiu o comercial num desses programas.
Anna D´Abronzo, diretora por quase 30 anos
da D´Abronzo Sociedade Anônima, que engarrafava a Caninha Tatuzinho, lembra
que, desde a venda em 1969 da marca para o Grupo Três Fazendas (hoje Indústrias
Reunidas de Bebidas Tatuzinho 3 Fazendas, com sede em Rio claro), tornou-se
clara que a propaganda em cima da bebida diminuiu. “O que temos retido é uma
mensagem propagada ao longo dos anos 50 e 60, quando foram feitas divulgações nas
principais emissoras de rádio e tv de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná e que
se perpetuaram na cabeça de muitos”, relata. Ainda hoje é comum ligar
Piracicaba à marca Tatuzinho, embora a fábrica situada na Unileste tenha sido
desativada.
Publicitários conhecem este fenômeno e
dizem que, quanto maior a massificação na divulgação de uma marca, maior será
sua lembrança no consumidor. Daí surgiram as corriqueiras pesquisas top of
mind, lembrando a marca que primeiro vem à cabeça do comprador. Quem não se
lembra da cerveja número um ou da cerveja dos amigos ? São peças com mais de dez
anos desde seu lançamento e que ainda hoje merecem um espaço em nossa
lembrança.
O publicitário Osvaldo Luis Baptista,
professor da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e tecnólogo do
marketing no varejo, lembra que “a propaganda age como um tempero na mente do
consumidor, pois a memória tem lembrança
de coisas que fazem da nossa vida um momento inesquecível”. Ele até se recorda
de publicidades da Caninha Tatuzinho vistas e ouvidas quando era criança e,
portanto, quando não tinha idade apropriada para ser um consumidor da bebida.
“A explicação mais plausível é a freqüência e impacto da mensagem e envolvendo
a mídia de massa, pontos de venda, que, nesse caso, seriam os bares, empórios,
armazéns, enfim, todo varejo de bebidas”.
A D´Abronzo Sociedade Anônima, que fabricou
a Caninha Tatuzinho de meados dos anos 1940 a 1969, foi fundada em 1909. Quando
vendida 1969, os novos proprietários decidiram dar continuidade à um mercado já
conquistado, sendo que por anos a Tatuzinho foi a mais consumida no território
nacional. Hoje, o produto, apesar de dificilmente ser encontrado nos super e
hiper mercados locais, ainda tem a apresentação pela qual se notabilizou. “O
Grupo 3 Fazendas manteve o mesmo rótulo (criado por Felício Rotundo, dono de
uma gráfica em São Paulo que fazia embalagens para a Kibon), o mesmo nome e a
mesma composição alcoólica da caninha Tatuzinho fabricada nos anos 50 e 60
demonstrando ser ainda um produto que provoca a venda”, diz Pasqual D´Abronzo
Neto, filho do diretor comercial da Tatuzinho, Humberto D´Abronzo, já falecido.
Comerciais nas emissoras de rádio eram
comuns. Como na época a tv ainda estava em desenvolvimento, o grande
entretenimento das massas era o rádio. Os principais programas de auditório
tinham o patrocínio da Tatuzinho. Isso na capital paulista, no Rio de Janeiro e
no Paraná. O jingle “Me abre a garrafa” foi veiculado nas rádios e nas tvs por
mais de cinco anos. Caiu no gosto público, assim como o aperitivo.
Nas principais rádios do interior paulista,
a Tatuzinho patrocinava os programas de auditório, as transmissões esportivas e
os programas de futebol. A TV Record e a TV Tupi foram as principais
propagadoras da marca Tatuzinho em todo o país. Conseguiu-se, também, após
muita negociação, que o jornal “Gazeta Esportiva” aceitasse colocar abaixo de
seu cabeçalho na primeira página o slogan “Tatuzinho – O Melhor Aperitivo
Nacional”, algo inconcebível para a liberdade de imprensa.
História - A ideia de criar em
Piracicaba uma fábrica de bebidas partiu de Paschoal D´Abronzo, imigrante
italiano vindo ao Brasil em 1896. Fixou residência em Piracicaba onde criou
seus cinco filhos (Maria, Humberto, Luzia, Anna e Suzana). Em 1909, instala uma
fábrica na Travessa Mania Maniero, Vila Rezende, e passa a produzir
refrigerantes (“Jatubaína”, “Gengi-Birra”, “Gasosa”, “Maçã” e “Moranguinho”),
xaropes (groselha, capilé, tamarindo, abacaxi, limão) e vinagre.
Nos anos 1940, Paschoal começou a engarrafar
a pinga adquirida de um distribuidor, Antonio Basaglia. Ele vendia a aguardente
em barris de 100 ou 200 litros. Porém, era um volume muito grande para o
consumidor final. Seu filho, Humberto, teve a ideia de comprar os barris e
envazar garrafas de 750 ml (medida ainda utilizada pela maioria das garrafas de
vinho). O mercado crescia e a passaram a ser comprados tonéis de 5 mil e 10 mil
litros. Foi uma revolução na época. Hoje o ocorre o inverso, pois o Instituto
Brasileiro da Cachaça aponta que a venda a granel da cachaça tem aumentando e a
venda do produto engarrafado vem diminuindo. A criação de alambiques caseiros
tem sido o principal concorrente da industrialização.
Anna D´Abronzo diz que “produzir e
engarrafar refrigerante nos anos 40 era enfrentar concorrência com outras
marcas que se proliferavam e a aguardente ainda era um mercado não explorado”.
A cerveja ainda era um investimento alto e concentrado nas mãos de empresas de
grande porte como a Brahma e a Antarctica. A gigante americana Coca-Cola começa
a realizar violentas investidas no mercado brasileiro.
“A decisão foi motivo de controversas na
família – diz Pasqual D´Abronzo Neto – pois ela foi tomada por Humberto
D´Abronzo durante viagem de seu pai, Paschoal”. Ele partiu de Piracicaba para
Congonhas do Campo, Minas Gerais, a fim de se encontrar com parentes, numa
época em que uma viagem dessas demorava uma semana e a visita se estendia por
semanas. Naquela vez, ela durou três meses. Quando retornou, Paschoal viu
Humberto transformar a fábrica de refrigerante em indústria de engarrafamento
de caninha. Foi uma atitude de risco, mas que o tempo consolidou como lucrativa.
A D´Abronzo cessa a fabricação de xaropes e refrigerantes em 1953 e um ano
depois passa exclusivamente a engarrafar caninha.
A Tatuzinho se expande comprado terrenos na
travessa Maria Elisa e na avenida Rui Barbosa, em prédios ainda hoje existentes
e utilizados pelo comércio da Vila Rezende.
O processo unia o industrial e o
manufaturado. Anna D´Abronzo recorda que após ser mecanicamente engarrafada e
sua tampinha lacrada, funcionários da linha de produção colocavam uma fita de
papel no gargalo que era o selo do governo para produtos industrializados e na
sequência embalada em papel de seda e colocada em caixas. As caixas eram uma
história a parte. Anna diz que “eram caixas de madeira, pesadas e que
comportavam 24 unidades de garrafa”. Ela considera as atuais caixas de plástico
um invento engenhoso. “As caixas de madeira não se estabilizavam uma em cima da
outra, tinham seu fundo arrebentado facilmente fazendo com que as garrafas
caíssem e quebrassem”. A Tatuzinho tinha um marceneiro que ficava a disposição
24 horas da empresa para remendos nestas caixas, pois, se faltasse a caixa, o
produto não poderia seguir para a venda. Possuía uma frota de 70 caminhões que
a cada viagem transportavam 6 mil garrafas.
Máquinas do leste europeu e da Argentina
foram adquiridas possibilitando o envazamento de até 45 mil garrafas por hora,
capacidade na época alcançada apenas pela Brahma e Antarctica no segmento
cervejeiro. No transporte de uma das máquinas, que pesava 62 toneladas, de
Santos para Piracicaba, houve a necessidade de interromper o trânsito na Via
Anchieta. A máquina ocupava a pista toda. A D´Abronzo instala 12 tonéis de 800
mil litros cada um em sua chácara situada no bairro Itaperu-Guaçu para atender
a demanda nacional.
Criador
- Humberto D´Abronzo é o exemplo de imigrante que soube aproveitar a vida. Era
o tipo de pessoa que tinha por hobby o trabalho. Acumulava diversas funções
(foi diretor do basquete masculino local, presidente do XV e lançou-se na
política). Era um empreendedor nato. Tinha a filosofia de que só se ganhava
dinheiro quando se gastava dinheiro. Era formado como contador, mas tinha uma
visão mais ampla do mercado. Foi o responsável pela área comercial da Indústria
de Bebidas Tatuzinho. “Como fabricante, não gostava da caninha pura, mas tinha
uma queda pelo vinho nos almoços de família e, nas festas caseiras, exigia
sempre batida de caninha com maracujá”, lembra seu filho Pasqual D´Abronzo.
Como bom italiano, se aliou a um processo administrativo familiar condenado
hoje pelos MBAs e administradores de sucesso. A diretoria da empresa era
composta por familiares. Seus cunhados – Antonio Martinelli, Sisto Cório e
Jorge César de Vargas – comandavam as negociações com o varejo, vendiam o
produto e levavam o nome da “Noiva da Colina” para muitas cidades,
principalmente do sul e sudeste brasileiros. Rio de Janeiro, São Paulo, Santos
e norte do Paraná eram os principais centros consumidores da Caninha.
O publicitário Osvaldo Baptista crê que a
fabricação, divulgação e logística utilizadas na época foram exemplares. “Um
produto líder no seu segmento, paralelo à uma boa campanha de divulgação, dá a
sensação da Tatuzinho ser, na época, uma das poucas empresas que investiam em
marketing, não comparando como a atualidade na qual temos uma infinidade de
marcas disputando mercados”, diz.
O próprio nome “Caninha Tatuzinho” tem sua
história. Caninha pois era feita com uma cana especial, mais fina. Pinga e
cachaça sempre foram nomes pejorativos. Quem gosta de ser chamado de “pinguço”
ou “cachaceiro”? Caninha dava um tom de aperitivo, base para coquetéis e
batidas. Dizem que Tatuzinho veio em decorrência, sem comprovação histórica, de
um indivíduo que, quando bebia, deitava e rastejava no chão como um tatu.
Dizem que muitos bebem para esquecer. Quem
bebeu Tatuzinho, nunca se esqueceu. Sua memória é viva ainda hoje.
Cachaça era moeda de troca por escravos
O historiador
Luis Felipe de Alencastro diz que a cachaça era a moeda mais valorizada na
época do Brasil colônia para o escravagismo. Em “O Trato das Viventes –
Formação do Brasil no Atlântico Sul – Séculos XVI e XVIII” ele afirma que os
portugueses proibiram a comercialização do produto para garantir ao mercado
europeu o consumo da bagaceira e do vinho. A cachaça virou, então, uma moeda no
mercado paralelo para a compra de escravos negros para o Brasil. Angola e
Luanda foram os países que mais comercializavam a mão de obra escrava pela
bebida. Um em quatro negros trazidos destes locais eram trocados pela cachaça.
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