Edson Rontani Júnior, jornalista
O
sonho de Ícaro: voar como os pássaros. Preso em um labirinto, de lá ele queria
sair. Para isso, fez asas similares às dos pássaros. Porém, as penas foram
coladas com cera de abelha. Conseguiu levantar voo e não deu atenção às
orientações para que não se aproximasse do sol, pois o calor derreteria a cera,
desfazendo suas asas. Dito e feito. As asas ficaram frágeis e ele caiu no mar,
onde morre.
O
sonho de Narciso: ter vida longa desde que nunca se contemplasse. Uma das
variantes históricas conta que ele tinha uma irmã gêmea. Ambos se vestiam
iguais e tinham as mesmas personalidades. Acabaram assumindo um amor platônico
e, quando, ela morre, Narciso passa a contemplar seu próprio reflexo na água
crendo que via sua irmã.
Ambas
histórias podem ter origem na mitologia grega. Narciso teve variantes provindas
dos indo-europeus seguindo uma mitologia a qual diz que a alma poderia ser
roubada por bestas marinhas caso refletisse na água.
Na
“mitologia atual”, deu-se asas e espelhos para ícaros e narcisos no formato de
smartphone. E o melhor, contemplou narcisistas e não-narcisistas com câmera no
verso e no anverso do aparelho. As populares selfies, sensação mercadológica a
partir de 2012, impulsionaram os antigos telefones móveis. Afinal, o celular hoje
é um cinema/tv portátil, é um computador de bolso, é uma câmera de fotografia,
é um geolocalizador e ... também funciona como telefone!
Os
indo-americanos acreditavam que o reflexo na água roubava a alma. Aliás, é o
mesmo mito usado quando a fotografia foi inventada, há cerca de 200 anos atrás.
Até se tornar um produto comercial, houve muita resistência. Sua criação não
serviu para perpetuar o instante fotografado. Teve por objetivo unicamente fazer
comércio. Depois descobriu-se que a união de vários fotogramas criava a imagem
em movimento e surgiu o cinema. Haaa ... Aí deu tempo de esquecer que o
registro fotográfico roubava a alma ...
Para
os narcisistas, o mercado criou o Facebook (livro de faces ... na tradução
livre), uma das 20 marcas mais valiosas do mundo, com altíssima valorização em
menos de duas décadas desde sua criação. Algo que a Coca-Cola e outras marcas
demoraram anos para alcançar.
Dados
não muito recentes, precisamente de 2014 (pouco tempo depois dos smarts terem
câmera reversa), foram tiradas 880 bilhões de fotografias, maioria de nós
mesmos, as selfies.
Sobre
esse narcisismo exacerbado, infinitas teses foram geradas. Sempre estamos
sorrindo, no meio de amigos, exercitando-nos fisicamente ou comendo algo gostoso.
São as mais polidas fotos de si mesmo (por isto, selfie vem de yourfelf). É um
mundo irreal ou temos realmente tudo o que expomos nesta vitrine? É questão de
status? Pode ser. O papel aqui não é ser o psicólogo de plantão, mas mostrar
como uma ação mercadológica provoca tendências que geram dúvidas se é modismo
ou algo que veio para ficar. É comum ver acidentes fatais durante a pose para a
selfie, como já registrados em Piracicaba e no mundo todo. Em consequência,
mexemos com o ego. Já notou que as academias possuem parede de vidro e os
restaurantes expandiram-se mais para a rua? Consequência da necessidade da
exposição.
Dependência
social ou busca pela auto-estima. Melhor refletir. Ou dar o espelho a Narciso.
(Artigo publicado no Jornal de Piracicaba de 26/08/2020 e na Tribuna Piracicabana de 28/08/2020)