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domingo, 24 de dezembro de 2023

Ceia farta

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Houve tempo em que o piracicabano esperava a Festa das Nações para saborear delícias disponíveis apenas neste evento. Comidas árabes, italianas, africanas ... Houve, também, um tempo em que as famílias viajavam a Campinas ou São Paulo para saborear feijoada, vinhos ... Terraço Itália, Massimo, Fogo de Chão eram alguns dos destinos.

Tivemos lacunas como a esfirra aberta feita em forno a lenha numa casa comercial situada na esquina das ruas Boa Morte e Riachuelo. Pena que a memória seja falha e não me recordo o nome de tal estabelecimento. Mas recordo do seu Chalita e seus quibes na rua Boa Morte, próximo dali, quase esquina da Ipiranga. Isso na virada da década de 1970 para 1980. Quando tais restaurantes fechavam, não tínhamos outras opções. Hoje, estas referências e tantas outras estão em diversos pontos da cidade. Podem ser entregues em casa pelo aplicativo, desde a pamonha ao cuscuz paulista. Chique era você entrar no Restaurante Brasserie – no salão do fundo – ou do Mirante e ser bem servido pelos Lescovar ou Benites. Hoje, consome-se na calçada, ou até em cima do asfalto, numa ostentação que não vem ao caso neste artigo.

Comer é uma necessidade básica. Comer bem ... ora, também é ! Vejamos a quantidade de centros gastronômicos que temos. Rua do Porto, Nova Piracicaba, Monte Alegre etc etc etc ...

No passado, cabe lembrar alguns nomes que fizeram esta fama. Para isso, valho-me de alguns escritos do passado, como o “Dicionário dos Piracicabanos” (Editora IHGP, 2014), de Samuel Pfromm Neto. Este nos indica o italiano Ernesto Papini, que, em 1905, instalou o Restaurante Papini na Vila Rezende, avenida Rui Barbosa nº 490, uma das mais afamadas casas gastronômicas das duas primeiras décadas do século passado. Acolheu o governador Ademar de Barros e o presidente Getúlio Vargas. Funcionou até 1964 como local de festas, confraternizações, namoros, música e jogatina. As noites concorridas eram chamadas de “Papinadas”, com presença de músicos como Erotides de Campos, Cobrinha, além da Corporação Banda União Operária. Foi um empreendedor pois no espaço administrava um restaurante, bar, confeitaria e campo de bocha.

O Jardim da Cerveja foi uma forma trazer a boemia e o bom prato junto ao piracicabano. Funcionou no cruzamento das avenidas Independência com Carlos Martins Sodero. Sua inauguração ocorreu em 10 de junho de 1967 e foi um dos palcos da comemoração do bicentenário da cidade, com presença do governador Abreu Sodré e do prefeito Luciano Guidotti. Entre os empresários que criaram o centro gastronômico estava Armintos Raya, do Challet Paulista e Casa Raya.

De garçonete a dona de seu próprio negócio. Como bem nos ensina Cecílio Elias Netto em seu “Memorial de Piracicaba”, Bergardina Augusta Maygton Ribeiro deixou São Pedro para trabalhar no bar Nova Aurora, praça José Bonifácio, criando, em 1943, a padaria Vosso Pão, próximo ao local anterior. Deixou história e ainda hoje o estabelecimento é reverenciado por aqueles que aqui vivem.

Entre os fornecedores de restaurantes estavam os Wagner (avô de Renato Wagner) e Reynaldo Röhsler. O Almanak de Piracicaba para 1900 cita que a cidade tinha ao menos oito cervejarias. Reynaldo dividia a rua Benjamin e sua produção de chope, junto a cervejaria Micchi e Rutter. Outro fornecedor foi Luis Augusto de Ledo, comerciante. No mesmo Almanak figura anúncio do Empório das Novidades dizendo ter sortimento de vinhos, licores e outras bebidas finas.

Voltemos algumas linhas e vamos falar de Jacob Wagner, avô de Renato. Foi proprietário de uma fábrica de cerveja, licores e refrigerantes que funcionou onde está hoje a rua dom Pedro II com a Benjamin Constant, no final do século 1800, anteriormente num pequeno barracão situado à atual avenida Beira Rio, perto da Boyes. Era atração na saída do Teatro Santo Estevão, onde comercializava sua produção. José Zambello, italiano de nascimento, foi o responsável pela Fábrica de Cerveja Única, em 1907, situada na avenida Rui Barbosa.

Lá por volta dos anos 1950, funcionava a Produtos de Bebidas Paulista, na rua Benjamin Constant, depois da avenida dr. Paulo de Moraes. Abrahão Zaidan era o responsável. Fabricava licores, xaropes, aguardente, vermute, vinho de cana, conhaque de uva e a Caninha Zaidan.   

Não a toa, Piracicaba mantém esta fama com as cervejarias Cevada Pura, Leuven, Tutta Birra, Dama Bier e outras. Tradição que percorre mais de um século. E, com isso, temos acompanhamentos gastronômicos como a pizza o dia todo, algo que até os anos 1980 só era fabricada e consumida a noite. O pastel era item obrigatório apenas e exclusivamente no Mercado Municipal. Hoje está em qualquer varejão municipal e também nos aplicativos. Sinais do tempo. Nos tornamos sedentários e muitas vezes nada satisfeitos com o prato que temos a mesa.

Para uns, a ceia é farta. Para outros, “farta” a ceia. Pense nisso...

Publicado no Jornal de Piracicaba de 23 de dezembro de 2023.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Divagações natalinas sobre Dickens

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba


Blem ! Blem ! Dez outros blens até completar meia-noite nos sinos da Catedral de Santo Antonio. Ainda insone na cama, retiro meus óculos, acelero o ventilador para afagar o causticante calor de Piracicaba. Noto que, em meu peito, repousa um livro que estava lendo. “Histórias de fantasmas”, coletânea de contos de terror de Charles Dickens, escritos cerca de 200 anos atrás. Não sei por qual motivo, mas havia parado no conto de duendes que sequestram um coveiro.

Eis que me dou conta da presença de alguém sentado em meu quarto. Pronto ... seria a insolação depois de um dia exaustivo com temperaturas próximas aos 40 graus ?

- “Não, senhor ! Sou o fantasma do passado”, disse-me pausadamente.

“Cáspita ! Bem hoje que começam minhas férias?”, balbuciei ... Levanto não de camisolão como vestia Ebenezer Scrooge mas sim de shorts buscando uma camiseta para me cobrir. “Vamos lá seu fantasma do passado, mas não vamos muito longe, não”, disse eu.

Ele me fita. Indaga o que queria eu dizer com “tão longe”. Emendei: não geograficamente e sim pela cronologia. Nada disse, mas como num filme hollywoodiano o relógio volta para trás ... 2000 ... 1990 ... 1980 e estaciona em 1970. Pensei ... ao menos num período que comecei a viver.

Não sou tão avaro quanto Scrooge, nem tenho o seu potencial financeiro. Por que então fui escolhido para viajar na cola do fantasma do Natal passado ? Talvez pelas histórias que vem diariamente por nossas cabeças, não buscando erros ou acertos, mas relembrando com nostalgia de um tempo que não volta mais.

Num clima festivo vamos à rua Governador Pedro de Toledo, com famílias passeando e visitando as vitrines lindamente decoradas. Perdíamos um tempo danado babando nas vitrines que nos apresentavam desejos de consumo impossíveis. Como eram lindas a Loja da Lua, A Musical, Joias Caruso, Briveste e a Som 6 onde ouvíamos música e sequer comprávamos um LP. Que linda decoração da Casa Raya ao lado do Jornal de Piracicaba: colocaram um Papai Noel pedalando uma bicicleta ergométrica. Valeu, seu Armintos Raya ! E aquele bando ali ? “Eles pensam em fazer um salão de humor”, diz o fantasma...

Bom ... a noite é curta. Natal Presente me leva para os anos 1980. Vemos a praça José Bonifácio ganhar novos contornos. Irá virar um calçadão. Monumentos para fora. Opa ! Um pouco mais para a frente do tempo, a cidade ganha dois “shoppings” o Zilliat e o Cidade Alta. Era aquilo que hoje chamamos de malls. Shopping mesmo só viria em 1987. Nada mais ter que ir a Campinas para compras. Na ESALQ, famílias passam para ver a iluminação colocada nos prédios. Mesmo local onde o Guarantã apresenta sua “Paixão de Cristo”, depois levada para o parque da rua do Porto. A praça Alfredo Cardoso em frente ao Mercado Municipal lotada de ônibus. Intransitável ... Placas de todas as cidades da região. Eram as aulas da Unimep no campus Centro. Repentinamente, silêncio ensurdecedor. “Poxa, fantasma do Natal Passado, agora doeu ... nos anos 80 minha geração chegava aos 18 anos ... podia tirar carta ... foi aí que perdi amigos de infância com suas motos, em inabilidades que poderiam ser evitadas, e tê-los ainda hoje ao nosso lado”, sussurro com uma lágrima.

Anos 1990 chegam com uma novidade chamada Cabo Total, televisão por cabo. Adeus, tv com chuvisco ! E aquilo ali na Paulista ? Que aglomeração. Era o Sambódromo da cidade. Nossa ! Nem me lembrava mais !

Anos 2000 ... Anos 2010 ... Muita coisa passou em tão curtos minutos. Impossível descrever aqui... Fim de 2019, na China um vírus mata milhares diariamente. Instala-se a pandemia.

Uma sirene na rua me joga para o outro lado da cama. Uma da madrugada. Eu deitado na cama. Tomo um gole de água. Faz 31 graus. Coloco o livro de terror de Dickens de lado e durmo. Deixemos o futuro para amanhã.

Publicado no Jornal de Piracicaba de 20 de dezembro de 2023 e na Tribuna Piracicabana de 23 de dezembro de 2023.



quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Os Boyes

 

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

 

Afinal, quem foi Boyes? É um nome pronunciado à exaustão na atualidade. Muitos sabem o que é a Boyes, o complexo industrial criado à margem esquerda do rio Piracicaba para suprir o mercado nacional de tecidos, oriundo da Fábrica de Tecidos Santa Francisca, projetada por Luiz de Queiroz e que existiu por cerca de 20 anos, sendo negociada em troca de dívidas. No início do século passado, fábrica virou Arethusina e depois foi denominada Cia. Industrial e Agrícola Boyes. Para muitos, simplesmente Boyes.

Luiz de Queiróz, passou mais de uma década e meia estudando na Europa. Percorreu vários países. Retornou ao Brasil para reclamar a herança deixada pelo pai, o barão de Limeira. No Velho Mundo, ouviu falar muito de um inglês com ideias inovadoras na engenharia que chegou a realizar projetos na Bélgica. Eis que o convida a vir para Piracicaba. Arthur Dryden Sterry veio para dirigir a fábrica. Nasceu em 1854 e viveu pouco: 42 anos, falecendo na capital paulista em 13 de abril de 1897. Aliás, foi em São Paulo que conheceu sua esposa, Ambrosina Bernardes Sterry.

O casal teve seis filhos, entre eles Elvira Sterry, nascida em Piracicaba no dia 13 de maio de 1886. Ela foi casada com Herbert James Singleton Boyes, assumindo assim o nome Elvira Sterry Boyes. Começa aí a saga da denominação que conhecemos hoje.

Herbert James nasceu em 16 de outubro de 1881 (Swinton, Inglaterra), falecendo aos 65 anos em 29 de setembro de 1947. Está sepultado no Cemitério dos Protestantes, na capital paulista. Atuou como gerente da Cia. Industrial de São Paulo e foi sócio, com seu irmão, das fábricas São Simão e São Bernardo. Era um empreendedor que conseguiu sucesso em terras tupiniquins.

Sua esposa Elvira foi a responsável por influenciar o esposo e o cunhado para comprarem a fábrica de tecidos. A alegação é das boas lembranças do passado que deveriam ser perpetuadas. Herbert e Alfred Simenon Boyes constituíram, assim a Boyes Irmãos & Cia. Em 11 de março de 1918, ambos adquirem a fábrica de tecidos criada por Luiz de Queiroz, então denominada Arethusina. Era a mesma situada ao lado do rio Piracicaba, onde hoje está a avenida Beira Rio. Sofreu transformações ao longo da gestão dos Boyes ampliando sua estrutura e contratando mais mão de obra.

A fábrica e o palacete situado ao lado foram comprados pelos Boyes das mãos de Rodolfo Nogueira da Costa Miranda, dono das propriedades, desde 1902. A residência era – e ainda hoje é – invejável e imponente, com jardim climático e produção caseira de algodão. Embora o piracicabano pense que a mesma está aberta para visitações, a residência é particular e conserva ares do século XIX. Ocupa as então denominadas ruas dos Pescadores (Prudente de Moraes), entre Vergueiro e Flores (Treze de Maio), perto do salto do rio Piracicaba. Foi nestas proximidades que Luiz de Queiroz criou uma espécie de cais onde escoava em barcos a produção de tecidos de sua fábrica. Antes, nas duas décadas finais dos anos 1800, o transporte era feito por tração animal e por trens.

Herbert e Elvira impulsionaram as filhas para o negócio. Kathleen Mary (falecida em 7 de outubro de 1991) foi diretora-presidente da Boyes, assim como Dóris, em conjunto com o marido, Norman, também dirigiu a fábrica.

Segundo a historiadora e professora Marly Therezinha Germano Perecin, em seu livro “Síntese Urbana” (IHGP, 2009, 2ª. edição), Piracicaba possuía, no período da aquisição da fábrica de tecidos pelos Boyes, em 1918, grandes empregadores como o Engenho Central (da Societé de Sucrérie Brésilienne), Engenho Central Monte Alegre (do comendador Puglisi), Fábrica de Tecidos Arethusina e a Casa Krahenbühl (de Frederico Krahenbühl), empresas de peso com força motriz para mover uma cidade com cerca de 18 mil habitantes. Foi o início de um processo evolutivo industrial e comercial que tomou franca expansão apenas nos anos 1970 com a criação de incentivos fiscais e elaboração de distritos industriais moldados pela municipalidade. Pioneirismo existiu, não apenas com estas empresas, mas também com o comércio que vivia outra realidade. Uma destas situações é a matéria prima da Boyes. Se inicialmente Luiz de Queiroz fazia tecidos para roupas, os Boyes diversificaram sua linha de produção, encerrando sua jornada com a produção de sacarias para arroz, café e outros itens similares.

Cabe lembrar que Herbert James trouxe a Piracicaba um colega que conheceu na Europa e que deixou marcas na cidade: Louis Clement, engenheiro têxtil e administrador de empresas, ocupando o cargo de diretor da Boyes, um dos corações mais bondosos que a cidade teve, auxiliando na construção de várias entidades assistenciais.

Samuel Pfromm Neto lembra a além do complexo industrial, a Vila Boyes foi tradicional em Piracicaba e no bairro São Dimas, além de denominar de Vila Boyes o estádio da Associação Atlética Vila Boyes. Há uma rua Elvira Boyes no Jardim Morumbi, junto à av. Dois Córregos.

Publicado no Jornal de Piracicaba de 3 de dezembro de 2023 e na Tribuna Piracicabana de 9 de dezembro de 2023


domingo, 26 de novembro de 2023

O embrião da Boyes

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba


Pegou fogo no vagão 22 da Cia. Férrea Ythuana. Nele estava uma carga de algodão em rama, adquirida por Luiz de Queiroz que seria manufaturada para criar tecidos em sua fábrica Santa Francisca. Esse era o teor de uma manchete do jornal “Gazeta de Piracicaba” de 6 de abril de 1878.

Tal fato mereceu destaque na imprensa local tamanha era credibilidade que possuía a empresa inicialmente denominada Santa Francisca, depois Arethusina e finalmente Boyes. Era uma das três principais indústrias da cidade, junto à Usina Monte Alegre e Engenho Central.

Este princípio serve para relatar a importância que teve na cidade o empreendedor Luis de Queiroz que, embora tenha vivido pouco – faleceu aos 49 anos – deixou grandes marcadas na cidade.

Nascido em um bom berço, Luiz Vicente de Souza Queiroz (nasceu e faleceu em São Paulo, 1849/1898) vinha de família abastada sendo filho do barão de Limeira - Vicente de Souza Queiroz - e de Francisca de Paula Souza, filha do conselheiro senador Antônio Francisco de Paula Souza, o criador da Escola Politécnica de São Paulo. Era o quinto de 15 filhos. Casou-se com Ermelinda Ottoni de Souza Queiroz, filha do conselheiro do Imperador, senador do Império e engenheiro Christiano Benedicto Ottoni.

Sua saga começa quando parte para a Europa aos oito anos, permanecendo no exterior por 16 anos, nos quais estudou agronomia e veterinária na França e Suíça. Em 1873 ele regressou ao Brasil para tomar posse da herança deixada pelo pai. O processo de herança ocorreu na capital paulista, no cartório 2º Ofício de Órgãos e Ausentes, dando a Luiz a Fazenda Engenho D’Água, na época um mundaréu de capim situado à margem esquerda do rio Piracicaba. Surgia no local o embrião daquilo que conhecemos por Boyes.

A fazenda havia sido comprada pelo Barão de Manuel Rodrigues Jordão e, quando vendida ao barão de Limeira, já possuía moinho, monjolo e serraria, tudo movido com a força da água. Já notou que há um desvio do Piracicaba para dentro da Boyes ? Pois bem, como não existia energia elétrica na época, a força da água era captada para gerar energia. Segundo Maria Celestina Teixeira Mendes Torres em “Piracicaba no Século XIX” (Editora IHGP), foi a primeira usina termelétrica do interior.

A história diz que em 1º de julho de 1874 são iniciadas as obras da empresa que décadas depois seria conhecida por Boyes, data em que foi colocada a pedra fundamental do empreendimento, abençoada pelo reverendo padre João de Almeida. A cidade parou. Houve música tocada por uma banda e servido “refresco” a determinados convidados numa casa próxima à fábrica de tecidos. Luiz de Queiroz foi recebido na mesma noite para uma ceia animada acreditando no benefício que a nova indústria viria a trazer a Piracicaba. “Um brinde ao amante do progresso” teria dito alguém. Oficialmente, a data de inauguração da Fábrica de Tecidos Santa Francisca ocorre em 23 de janeiro de 1876.

Em 23 de setembro de 1876 o jornal “O Piracicaba” publicava anúncio dizendo que a fábrica de Queiróz tinha produtos que se equiparavam ao produzido em Petrópolis e vendia panos de primeira linha dos tipos tinto, riscado e mesclado.

A cidade novamente se desenvolvia à margem do rio Piracicaba. Foi na Boyes que surgiu a primeira linha de telefone na cidade. Ela ligava a empresa de tecidos à Fazenda Santa Genebra, não muito distante dali. O assunto foi noticiado pela Gazeta em 11 de outubro de 1882. Curiosidade: os postes de telefone passaram a ser atração aos moradores.

Outro pioneirismo: a instalação da luz elétrica. Na época, os postes era acessos com querosene e apagados no meio da noite por um funcionário público. A luz elétrica – em residência particular, portanto, não iluminação pública – teve seu auge na cidade durante a visita do Conde e da Consessa d’Eu (ela, a Princesa Isabel). Vieram para Piracicaba em 12 de novembro de 1884 visitando a fábrica de tecidos e o Palacete Boyes.

Capitalista, Luiz de Queiróz era uma pessoa que fazia dinheiro com o próprio dinheiro. Vivíamos numa época em que os tecidos eram comprados por rolos ou como se dizia antigamente por “fazenda”. Não existiam roupas prontas como temos hoje. Eram feitas por habilidosos alfaiates e demoravam dias ... semanas ... para ficarem prontas. Assim, a fábrica de tecido supria o mercado de uma necessidade vital num período em que a moda exigia vestidos longos com mangas compridas para mulheres e paletós para os homens. Tanto que a concorrência botou “zóio gordo” na Santa Francisca. Em 2 de outubro de 1890 a Câmara de Vereadores indefere o pedido de Antonio Teixeira Mendes e Manuel Pereira Granja de construírem uma fábrica de tecidos entre a fábrica de Queiroz e a praça André Sachs. E viva o monopólio !

Em abril de 1893, Queiróz incorpora todo seu patrimônio, depois de quase 20 anos de atividade, à Companhia de Cultura de Tecidos de Algodão S/A, sediada no Rio de Janeiro. Leandro Guerrini em “Piracicaba em Quadrinhos – Volume 2” diz que a incorporação não deu certo. Em 1897 a empresa encerra temporariamente suas atividades. Mas a história continua ...

Publicado no Jornal de Piracicaba de 26 de novembro de 2023 na Tribuna Piracicabana de 2 de dezembro de 2023.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Para Arethusa

Edson Rontani Júnior, jornalista, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

 “À Arethusa, meu grande amor, quero dedicar-te esta obra pela devoção de seu amado marido eternizando seu nome para o futuro”. 


Calma ! Peralá ! Claro que isso saiu da imaginação deste autor. Mas pode ter acontecido, já que a Fábrica de Tecidos Arethusina recebeu este nome por admiração que Arethusa Miranda recebia de seu marido, Rodolpho Nogueira da Rocha, fluminense de Rezende nascido em 1860 e falecido em São Paulo em 1941.

Foi ele um dos proprietários daquilo que conhecemos por Boyes. Eram outras épocas, sendo que Arethusina foi a segunda de três denominações que o espaço recebeu. Devoção amorosa de um empreendedor à sua consorte. Anteriormente, o nome comercial do espaço era Fábrica de Tecidos Santa Catarina e depois Companhia Industrial e Agrícola Boyes. Há registros de Samuel Pfromm Neto de que ela teria o recebido também o nome de Tecidos Santa Francisca, quando ainda embrião deste empreendimento industrial.

Começou pequena. Expandiu-se aos poucos até ter sua história encerrada em 2005 devido à abertura do mercado para o comércio chinês: era mais barato importar a sacaria do Oriente que produzi-la por aqui. Assim como a cidade, a empresa surgiu e sua estrutura está fincada à margem – esquerda – do rio Piracicaba, na atual avenida Beira Rio.

De acordo com o Almanaque de Piracicaba para 1955, organizado por Hélio M. Krahenbuhl e editado por João Mendes Fonseca, tudo começou com um engenho d´água propriedade do Barão de Limeira – Carlos Bartolomeu de Arruda –, local onde foi instalada uma serraria, talvez a primeira de Piracicaba.

Em seu auge, a Arethusina, conforme relato de Mário de Sampaio Ferraz em “Piracicaba e sua Escola Agrícola” (1916), produzia ao ano cerca 2 bilhões de metros de tecido. A forma da produção devia-se à três turbinas de 250 cavalos cada uma, além de duas caldeiras. Sua produção era feita com algodão nacional em rama. Produzia fiação e tecidos. Estava entre as 21 maiores indústrias do Estado de São Paulo, empregando 300 funcionários.

Rodolpho Nogueira – o devotado de Arethusa – era filho do barão do Bananal (Luiz da Rocha Miranda Sobrinho). Este foi deputado à Constituinte de 1891 (a segunda do país e a primeira da República) e deputado federal de 1897 a 1909. Tinha força e boa exposição na política, sendo ministro da agricultura em 1909, no governo do presidente Nilo Peçanha.


A Boyes em foto dos anos 1960 (Acervo IHGP)

Seu filho Rodolpho Nogueira produziu na Arethusina um dos melhores tecidos do país, igual ao importado da França. Todo seu tecido era consumido principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Servia de base para alfaiates fazerem ternos, camisas, vestidos e calças.

A empresa utilizou-se da massa falida da Tecidos Santa Francisca que funcionou até 1900. Usou parte inicial da estrutura que conhecemos hoje como Boyes. Na ocasião, foi vendida a um sindicato, do qual fazia parte o engenheiro Buarque de Macedo.

Samuel Pfromm Netto no seu “Dicionário de Piracicabanos” (Editora IHGP) diz que a fábrica foi adquirida e colocada como crédito para uma dívida junto ao Banco da República do Brasil. O banco vendeu-a a Rocha Miranda que a reativou em 1902. Seu filho homenageou a esposa Arethusa com sua nova denominação, numa administração que durou até 1918. Depois virou a Cia. Industrial e Agrícola Boyes, ou simplesmente Boyes, nome perpetuado até hoje.

Nesta transação surge o nome de Buarque de Macedo, que mudou do Rio de Janeiro em 1898 para administrar a Arethusina.

“A Fábrica de Tecidos Santa Francisca (sic), tecelagem de algodão construída em 1874 por Luiz de Queiroz (v.) e inaugurada a 23.1.1876, tinha sido vendida a um sindicato do Rio de Janeiro, do qual Buarque de Macedo participava”, capitula Pfromm em seu “Dicionário”. Alguns dados contestáveis como nome e datas ... Com a aquisição, Macedo foi um dos proprietários e gerente, residindo no palacete situado ao lado da Arethusina, conhecido por Palacete Luiz de Queiroz, propriedade que veio junto na transação. Macedo era empreendedor e adquiriu o Engenho Monte Alegre em 1899 e foi um dos criadores do Jornal de Piracicaba em agosto de 1900.

Piracicaba foi uma das primeiras cidades do país a ter energia elétrica. Não por idealismo, mas por necessidade comercial. Para sua fábrica de tecidos funcionar com equipamentos modernos para a época, precisava de geradores que formaram uma usina hidrelétrica – no seu respectivo porte – fornecendo luz para a empresa e parte da cidade, em 1892. Luiz de Queiróz instalou postes e lâmpadas vindas de Nova Iorque. Crianças a quebravam as lâmpadas durante a noite colocando a avenida Beira Rio na escuridão. Na época, falava-se que os Moraes Barros pagavam para moleques destruí-las pelas divergências políticas que tinham com Luiz de Queiroz. Se foi com bodoque ou não, nem Arethusa sabia responder. Continua ...

Publicado no Jornal de Piracicaba de 19 de novembro de 2023 e na Tribuna Piracicabana de 25 de novembro de 2023.


quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Cartolas alvinegros

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

As estrelas do futebol são aquelas entram em campo. Os jogadores são os nomes mais populares neste esporte. É por estas estrelas que a torcida exprime sua paixão. Mas nos bastidores, muitos jogam as cartas. São dirigentes, treinadores, membros de conselhos etc etc etc... São as pessoas que definem os passos do time.

O primeiro cartola do nosso E. C. XV de Novembro de Piracicaba era o capitão da Guarda Imperial Carlos Wingter (também cirurgião-dentista). Amava o esporte importado da Inglaterra que duelava, à época, com o basquete dos norte-americanos. Ambas as disputas foram incorporadas no cotidiano brasileiro no processo migratório do final do século 19. O próprio Wignter entrou em campo para chutar a pelota. Ele participou do 15 de Novembro, uma agremiação que existiu extraoficialmente em Santa Bárbara D’Oeste, no final da década de 1900. O time jogava em praça de esportes localizada no terreno em que hoje está instalada a Cia. Fiação e Tecelagem Santa Bárbara. Em 1913 ele presidiu pela primeira vez nosso XV que completa 110 anos de fundação.

Além de Wingter, outro dentista presidiu o alvinegro: Luiz Lee Holland, formado pela Escola de Odontologia Washington Luiz. Os mesmos passos foram seguidos por Enéas Lemaire de Moraes, dentista e presidente do alvinegro.

Logo no início de sua criação, os próprios jogadores eram dirigentes, como o caso de Tibúrcio de Oliveira, que além craque da pelota foi vice-presidente do alvinegro da primeira diretoria eleita pelo XV no dia 4 de dezembro de 1913. Era músico (da Banda União Operária) assim como Erotides de Campos, também membro da primeira diretoria do XV.

Entre os técnicos do passado, alguns nomes hoje são pouco lembrados, como Pelegrino Adelmo Begliomine, que antes do XV jogou no Palmeiras, Corinthians e Fluminense. Ficou na cidade no ano de 1954.

Entre os “cartolas” do alvinegro, muitos tiveram posição de destaque na sociedade, com ênfase aos comendadores nos anos 1940 a 1960. Antônio Cera Sobrinho presidiu o XV de 1956/57 e de 1960/61. O belga Louis Clement foi um mecenas para a cidade auxiliando obras como a construção da segunda torre da Matriz de Santo Antonio ou o Mosteiro das Carmelitas Descalças. No esporte, presidiu a Associação Atlética de Vila Boyes e foi conselheiro do XV. Jacob Diehl Netto foi outra personalidade que presidiu o XV. Também dirigiu por dez anos o Clube de Regatas.

O comendador Leopoldo Dedini chegou a ser vice-presidente do alvinegro local. Luiz Dias Gonzaga, prefeito da cidade nos anos 1930, também presidiu o XV (1960/61) e, em 1948, liderou ação na cidade para reforma do estádio do XV (depois Estádio Roberto Gomes Pedrosa).

Luiz De Francisco (1909/1983) atuou como futebolista, dirigente esportivo e jornalista, escrevendo e divulgando sobre o esporte local por 35 anos no JP. José Luiz Guidotti, escritor e árbitro de futebol, em 1965 também esteve à frente da presidência do time.

Cartolas de renome tiveram total envolvimento com a sociedade como Antonio Romano, Romeu Ítalo Ripoli e Humberto D’Abronzo, entre tantos outros.

D’Abronzo teve larga ascensão na cidade como industrial. Junto a Armando Dedini quis elevar o Clube Atlético Piracicabano à divisão principal do futebol, acreditando que a cidade merecia outro time além do XV nesta posição. Não deu certo. Presidiu o XV em 1966/68 quando o time retornou à divisão principal depois de ter sido rebaixado dois anos antes. Foi uma época de ouro, pois o alvinegro ganhava da municipalidade um estádio novo, o Barão da Serra Negra, e Piracicaba estava em efervescência devido às comemorações de seus 200 anos. “O entusiasmo e a dedicação extrema ao clube fizeram dele um verdadeiro baluarte do futebol, chegando a ser cotado para prefeito em 1968”, escreveu Samuel Pfromm Neto. O trabalho dos bastidores também é história.

Publicado no Jornal de Piracicaba de 15 de novembro de 2023 e na Tribuna Piracicabana de 18 de novembro de 2023


domingo, 12 de novembro de 2023

Exaltação aos quinzistas

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Chegando aos seus 110 anos de fundação, o Esporte Clube XV de Novembro de Piracicaba vem sendo exaltado nos últimos dias. Muito de sua história se torna repetitiva e aqui o objetivo é destacar alguns dos “esquecidos” que em muito contribuíram para nosso alvinegro. Esse universo vai além dos comendadores que o dirigiram e dos medalhões que por ele passaram. Para conhecer ou reler estas histórias, basta acessar o Google. Já aqueles que cuja memória foi perdida com o passar do tempo merecem ser relembrados.

O XV estreou no dia seguinte à sua fundação, 16 de novembro de 1913, perdendo por 2 a 0 para o Sport Recreio Normalista. O time era formado por Alberto Franklin Oliveira, Vicente Mastrandéa e Antônio Dihel, Francisco Pelegrino (Paco), Antonio de Laringa e Belmácio Pousa; Edmundo Huffenbacher (Guinho), Milton Salvinho Provenzano, Francisco Pousa e Luciano Servija. No banco de reservas: Laércio e José Pousa de Toledo (Tutu Pousa).

Poucos devem se lembrar. O alvinegro foi campeão do Torneio Interior Paulista de 1935, organizado pela Associação Paulista de Esportes Atléticos. O time possuía em seu elenco os Alcides I e II, Áureo, Godoizinho, Leme, Moacir, Mônaco, Petrônio, Nenzo, Roque e Venerando, numa época que o esporte futebolístico era mais diversão do que profissionalismo. Cabe abrir um parêntese aqui. Na época, o futebol não era visto, remunerado e reverenciado como hoje. As primeiras copas mundiais as quais a Seleção Brasileira enfrentou ocorreram “na raça”: os jogadores viajavam para o exterior em navios cargueiros, e dormiam entre sacos de café, arroz e feijão. A estes heróis é dedicado este texto.

Gente que ficou nos bastidores e sequer entrou para a história, como os responsáveis pela iluminação noturna (uma revolução na época) em 1941 no então Estádio do XV, depois Estádio Roberto Gomes Pedrosa (onde encontra-se hoje o Assaí, Centro).

Vale citar outros pioneiros, como o argentino José Agneli que figura no panteão do alvinegro piracicabano. Foi treinador do XV de 1951 a 1954 criando estrutura e organograma do time que havia subido para a elite do futebol paulista em 1949.

Thales Castanho de Andrade foi além da dedicação à literatura. Com Monteiro Lobato divide o pioneirismo da escrita voltada para as crianças, com obras publicadas nos anos 1920 e 1930 pela Editora Melhoramentos. Também presidiu o E. C. XV de Novembro.

Outro expoente das artes, Erotides de Campos também tem seu espaço no amado XV. Foi um dos fundadores do time em 1913 atuando como primeiro secretário da primeira diretoria do alvinegro.

Silvio Lagreca (1895/1967) foi renomado jogador do XV nos anos 1920, atuando em times de São Paulo e Rio de Janeiro, sagrando-se campeão paulista e brasileiro. Era irmão do poeta Francisco Lagreca.

Outro artista que passou pelo elenco, foi Antônio Osvaldo Ferraz, Tonico, sócio de Haldumont Campos Ferraz (Tico da Farmácia) na Farmácia Coração de Maria, ao lado da matriz de Santo Antonio. Na adolescência defendeu o alvinegro e anos depois dedicou-se ao ensino. Foi colaborador de diversos jornais. Editou “Folclore”, revista reverenciada pelo modernista Mario de Andrade.

A multifuncionalidade era necessária. “Bita” ou Jamil Antônio (1927/2004) atuou como goleiro no time local além de ser árbitro. Algo impensável: trocar o futebol pelo tênis. Isso ocorreu com Júlio Marcos (1911/1998) que jogou no XV de 1941 a 1946 trocando o esporte pelo tênis em 1948, atuando por dez anos na área e considerado o tenista número um da cidade, defendendo a equipe de tenistas do Clube de Campo.

Uma citação a parte é de Belmácio Pousa Godinho (1892/1980), um dos fundadores do XV e ala direita do time. Foi músico na Orquestra Lozano. Além da bola, animava filmes mudos nos cinemas. Foi musicista na época em que partituras musicais funcionavam como presente e discos de 78 rotações por minuto figuravam como elevado sonho de consumo. Em 5 de fevereiro de 1916 a revista “O Malho”, editada no Rio de Janeiro, publicou em suas páginas centrais a letra da música “Sport Club 15 de Novembro, Campeão Piracicabano”.

Gato Preto era a alcunha de João Marques de Oliveira (1923/1995), goleiro do XV estreando no time aos 21 anos em 19 de março de 1944, três anos antes da criação do futebol profissional no estado. Foi campeão do Torneio Início da Liga Piracicabana de Futebol.

“Estrangeiros” que por aqui aportaram também carregam o time no peito, como o caso de Severiano Alberto Ferraz (1869/1951), farmacêutico nascido em Portugal (Madeira) e estabelecido em Piracicaba na Farmácia Neves. Foi diretor de agremiações esportivas e um dos primeiros e maiores compradores de “ações” para criação do XV no ano de 1913.  

Exaltar heróis anônimos ou conhecidos é levar à glória um time centenário amado por toda uma cidade, algo difícil de se ver nos dias atuais. Esporte é uma linguagem universal que anima, envolve e cria emoções, amizade e envolvimento. Parabéns a todos que construíram este século e uma década deste ícone local.

Publicado no Jornal de Piracicaba de 12 de novembro de 2023 e na Tribuna Piracicabana de 15 de novembro de 2023

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Cinemas e cinemaníacos

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba



A arte do cinema sempre foi vista como um escapismo à realidade. É o mundo da ilusão. Foi uma indústria multibilionária que criou consumidores, estrelas, sonhos, desejos ... É um entretenimento que está na moda há quase 130 anos. Ainda temos salas exibidoras com alto investimento, ao contrário de outras formas de exposição cultural, como os teatros, por exemplo. Ano passado, em “Babilônia”, Damien Chazelle fez uma elegia à sétima arte que explica como funciona todo este universo cheio de estrelas. Na sua esteira surgiram outras indústrias riquíssimas como a televisão, o Super 8, VHS, DVD e atualmente o streaming.

Piracicaba sempre foi bem receptiva com esta arte, com cinemas e profissionais da exibição. E, claro, a cidade teve seus amantes da telona. Por aqui funcionou o Clube Piracicabano de Cinema, sendo presidido de 1949 a 1952 por Gastão da Silva Dias (1924/2008). Ele foi um dos fundadores da Sociedade de Cultura Artística.

Outros viram o cinema como fator mercantilista. Influente na cidade, tendo sido seu prefeito em dois mandatos iniciados em 1926 e encerrados em 1932, José Barbosa Ferraz foi proprietário do Teatro e depois cinema São José, cujo prédio ainda existe na rua São José entre a Governador e a praça José Bonifácio. O teatro-cinema possuía poltronas para duas mil pessoas. Foi construído pelo arquiteto Antonio Borja Medina com teto pintado por Bruno Bacelli. Acertou quem pensou que esse proprietário era o Coronel Barbosa, que levou nome no antigo Clube Piracicabano.

Visionário foi Medina (cujo nome chega a ser desconhecido), arquiteto e construtor. A cidade deve a ele suas principais e clássicas salas exibidoras. Nos anos 1930 edificou o cine Broadway na São José (também foi o Tiffany e o Bingo Broadway) ocupado hoje por um templo religioso.

A história remonta a união da imagem em movimento ao som. Com isso, surgem opções de orquestras que animam as apresentações. Entre os músicos que sonorizaram a tela grande está Belmácio Pousa Godinho (1892/1980), também um dos fundadores do XV de Novembro. Integrou a Orquestra Lozano de Piracicaba através da qual criava som aos filmes mudos na década de 1910.


A Orquestra Lozano era capitaneada por Fabiano Sebastian Rodrigues Lozano. Este criou em 1913, a Orquestra do Teatro-Cinema de Piracicaba que contou também com Erotides de Campos como um de seus músicos. Note que estamos referindo aqui à pesos-pesados da cultura local.

A orquestra teve participação de Perfetti, maestro no cinema Íris, Broadway e Politeama. Carlos Brasiliense Pinto e Melita Brasiliense Pinto também tocaram com Perfetti. Outras orquestras que abrilhantaram os cinemas locais foram regidas por Zico Marzagão e Adolfo (ou Adolpho) Silva. Também participaram deste time José de Aguiar (Aguiarzinho), Osório Aguiar Sousa e Totó Carmello.

João Baptista Vizioli (1902/1983) – advogado, vereador e vice-prefeito de Francisco Salgot Castillon em 1959 – participou da orquestra que animou exibições dos cines Íris e Politeama. 

Francesco Stolf foi quem criou o cine Politeama – o segundo – situado à praça José Bonifácio nº 914, funcionando de 1954 a 1981 quando o espaço foi ocupado pelas agências bancárias Itaú e Bradesco.

Se a cidade era um celeiro de amantes do cinema e das salas exibidoras, cabe destacar que também produziu obras. Jaçanã Altair Pereira Guerrini – com o esposo Leandro Guerrini foi uma das fundadoras do IHGP – escreveu o livro “João Negrinho”, adaptado para o cinema na década de 1950. A obra utiliza do escravismo brasileiro para relatar a amizade de um negro e um branco unidos por um padre que prega a igualdade racial e social.

De passado também vivemos e cabe lembrar de Victor Walker, um dos primeiros exibidores fixos de cinema. Foi cenógrafo dos teatros na cidade na década de 1900.

Samuel Pfromm Neto no seu “Dicionário de Piracicabanos” (Editora IHGP) evoca Romeu Cândido Moraes (1918/2006) que dedicou boa parte de sua vida ao cinema. Foi projecionista do Cine Brodway. Era responsável por escolher as músicas executadas antes da exibição dos filmes. Participou do Clube Piracicabano de Cinema lá por volta de 1950 emprestando filmes de sua coleção particular para exibições públicas. O Clube funcionava como uma cinemateca com exibições nos clubes Cristóvão Colombo, Coronel Barbosa e Sociedade Italiana.

Mais recentemente, nos anos 1980, a cidade contava com o cine Broadway (demolido), Rivoli (igreja), Colonial (desocupado), Paulistinha (comércio) e também a Sala Grande Otelo / Cine Arte, no Teatro Municipal Dr. Losso Netto. São locais que reuniram famílias e namorados. Atualmente a cidade consta com salas exibidoras apenas no Shopping Center Piracicaba, com apresentações 2D, 3D e em 4K.

Publicado no Jornal de Piracicaba de 29 de outubro de 2023 e na Tribuna Piracicabana de 09 de novembro de 2023


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Telas exibidoras em Piracicaba

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Falar em cinema no dias de hoje é evocar a nostalgia daqueles que, nos anos 1980, foram ao Tiffany, Broadway ou Cines Center 1 e 2. É relembrar uma época em que os filmes demoravam para chegar a Piracicaba. Lembrar da bala de menta comprada na bomboniere e ressaltar que a pipoca no cinema surgiu muito tempo depois, não falhando a memória, na segunda metade da década de 80 quando o Grupo Paris Filmes instalou suas lojas exibidoras no Shopping Piracicaba, comandadas pelo CEO Márcio Fracarolli e pelo gerente seu Silvio, figura de extrema educação e finesse.

Samuel Pfromm Neto tem estudo dizendo que os filmes cinematográficos possuem registros de exibição desde 1896. Em outubro deste ano, Klene e H. Mewe apresentaram aos cidadãos o “primeiro cinetógrafo projetando vistas naturais animadas”, em cinco horários seguidos. O ingresso para a novidade – a fotografia em movimento – era de 1 mil réis. E Piracicaba, entre os seus projetos pioneiros – entre eles a iluminação elétrica, a fluoretação da água e outros – fez a exibição dez meses após os Irmãos Lumière realizarem a primeira apresentação pública de cinema que se tem história, em Paris.

O cinema também percorreu pelas mãos de Antônio de Mello Filho que exibiu filmes no térreo do sobrado existente à rua Prudente de Moraes nº 112, com ingresso a 200 réis.

Já em 1901 possuía uma sala exibidora no Restaurante Porta Larga, de José Maria Fernandes, um empreendedor nato, dono de confeitaria, restaurante e uma casa de concertos líricos (ele cobrava ingressos de uma plateia que se reunia para ouvir discos – cada ingresso custava 500 réis). Adquiriu um projetor Lumière, vindo da França, no qual realizava exibições de filmes mudos.


Broadway ou Tiffany na rua São José, ao lado da praça José Bonifácio

O Teatro Santo Estêvão situado na praça 7 de Setembro (hoje José Bonifácio) foi, além de teatro, uma sala permanente de cinema. Criado em dezembro de 1908, o “Cinematógrafo Cháritas” tenha renda revertida à Santa Casa, dona do projetor de filmes. Na mesma época, em barracão situado na rua Boa Morte, tivemos o “Ideal Cinematógrafo”. Nada como conhecemos hoje. Mutas vezes, a plateia assistia em pé aos filmes, que eram curtos, ou ainda sentados em cadeiras de madeira. Os filmes eram mudos e existem registros de que para entender essa nova narrativa (estávamos acostumados com o teatro e com os livros), havia uma pessoa explicando : “olha ! o ator agora vai chorar porque a namorada lhe deu um sopapo!”. Depois veio a sonorização ao vivo com piano ou orquestra. O som só aparece no início dos anos 1930.

Hoje é comum ir às salas existentes no Shopping Piracicaba, propriedades da Cinematográfica Araújo, e ver nas filas pessoas com travesseiro ou almofadas. Sim ! Isso ocorre pois existe um conforto danado nas salas, com poltronas que reclinam como sofás ergométricos ou ficam estiradas como camas. É uma forma de fazer as pessoas saírem de casa e terem acesso a uma experiência diferente. Talvez até uma forma de atrair as pessoas numa época em que predomina o streaming. O mesmo ocorreu nos anos 1980 com as proliferações das videolocadoras. Para que sair de casa se em meu lar posso assistir ao filme que quero ?

Quando o som não era acoplado ao celuloide, a música ao vivo era executava para dar um ar especial ao que ocorria à tela e também para tirar o marasmo de muxoxos, pigarros, tosses etc etc etc. A Orquestra Piracicabana tocava em filmes e também em apresentações solo nos cinemas Íris e Politeama. Osório Dias de Aguiar e Sousa (1869/1937) foi um de seus máximos expoentes, utilizando também o pseudônimo Orênio Sabaúna. Nos anos 20, ainda jovem, Jayme Rocha de Almeida (1907/1964) era flautista nos cinemas. Depois virou agrônomo e professor da Escola Agrícola.

Erotides de Campos foi outro que animou exibições em cinemas. Foi contratado por Antônio Campos para ilustrar as apresentações cinematográficas no seu Polytheama, situado então à rua São José mais ou menos onde está hoje o Poupatempo Estadual. O cinema foi desativado e no seu interior funcionou um rinque de patinação. Os cinemas ocuparam por boas décadas a área central da cidade. O Supermercado Jaú Serve na Governador, já foi Kalunga, Shopping Zilliat, Balas Atlante e nos anos 1920 um cinema.

J. B. Andrade tinha empresa com seu nome a qual administrava os cines Broadway e São José. Um dos seus funcionários, de prenome Max, era um exímio letrista criando cartazes e letreiros. Isso tudo de forma artesanal. Além de acomodações, os cinemas também tiveram pinturas que hoje deixam boquiabertos qualquer um, como o Teatro (depois cinema) São José, cujo interior tem obras de Bruno Barcelli.  Cabe lembrar que as salas de teatro e cinema eram bem rentáveis. Eram diversões que não deixavam as pessoas presas em casa. Anos mais tarde enfrentaram a concorrência do rádio e mais depois da televisão. (I’ll be back)


(Publicado no Jornal de Piracicaba de 25/10/2023 e na Tribuna Piracicabana de 4/11/2023.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Restaurantes conceituados

 Edson Rontani Júnior, jornalista, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

 

A recordação me leva para uma noite quente lá por volta de 1988, época em que o Centro de Piracicaba ainda possuía vida noturna com segurança. Os jovens, principalmente, percorriam a Governador. A Galeria Brasil era uma passagem obrigatória, ficando intransitável aos sábados pela noite. A praça José Bonifácio ainda acolhia as pessoas que buscavam passar o tempo, sair com a família, ou simplesmente namorar. Era ostentação segurar a namorada em um dos braços e carregar na outra mão um tape deck com um equalizador Tojo.

Foi na rua Governador esquina com a São José, possivelmente o estabelecimento era denominado Restaurante Ortiz (um dos vários pontos em que ele se situou). Pedi uma pizza e claramente me lembro do garçom muito bem educado, polido e numa gentileza imensurável. Anos depois o reencontrei, num local ao qual vou ao menos uma vez por mês desde 1999: Cláudio Poteche. Matou a charada quem lembrou do Claudinho’s Place ou simplesmente o Restaurante do Claudinho.

Piracicaba é conhecida por sua vida gastronômica desde o século retrasado, buscando nos bares e restaurantes marcar uma notoriedade histórica. Me lembro que aqui no Jornal de Piracicaba, o colunista Mauro Pereira Vianna não deixava de perguntar aos seus entrevistados : qual seu restaurante predileto e qual o seu garçom preferido ?

O Mirante era exemplo de finesse à mesa, com a família Benites recebendo piracicabanos, “estrangeiros” e celebridades. O restaurante fez escola e hoje tem seus expoentes com delícias de peixes na brasa alicerçada individualmente pelos irmãos Vado e Agostinho, além do Givaldo e Reginaldo. Sem contar em quantas vezes não ouvimos o Faustão no seu “Perdidos na Noite” ou no seu “Domingão” falar do cuscuz do seu Hélio da Arapuca ? Aliás, sou do tempo do “prensadão” na avenida Armando de Salles Oliveira e do churrasquinho no Bar do Décio na rua Santa Cruz. Anos depois do hamburger no Daytona. Houve vida antes e depois disso, principalmente na praça José Bonifácio (Brasserie e Café do Bule, entre outros) e a prainha com o Bistecão.

Tendo sempre à mão, o livro de cabeceira “Dicionário de Piracicabanos” (Editora IHGP), o autor Samuel Pfromm Netto, nos brinda com informações importantes sobre a gastronomia local. O Bar e Restaurante Familiar Giocondo situava-se à praça José Bonifácio. Tinha como especialidade, nos anos 1930, os bifes – a parmegiana veio na segunda metade do século passado. O local era frequentado pela intelectualidade local. Foi vendido depois para o japonês Oscar Miziara que o transformou em Restaurante Alvorada.

Próximo, estava o Restaurante Banhara, num dos cruzamentos da rua do Rosário com a Prudente de Moraes. Teve seu auge nos anos 1930. Dirigido por imigrantes italiano tinha variedade no cardápio.

Ricos são os almanaques locais. O “Almanak de 1900”, de Manoel de Camargo, traz uma relação de proprietários de restaurantes na virada do século retrasado, entre eles: António Amendola, Pedro Benedicto, Frederico Bertolini, José Biajonni, António Botiglieri, Belatasso Fernandes, João Moretti Folvenço, Irmãos Gabbi, João Gallana, Celeste Gilli, João Lucci, Luiz Maranho, Ângelo Massoneto, Paulino José Miranda, Fortunato Minello, Pedro Monteran, Albino Negri, Salvador Oranges, Domingos Patrian, Gaspar Piatti, João António dos Santos, Francisco Scabelli, Santo Stremendo, Márcia Telles, João Tolagne e Pedro Vargas. Nomes que não concorreriam de forma alguma com aquilo que é chamada de “geração Nutella” que participa dos famosos “maters chefs” da televisão. Cabe lembrar que naquela época, não existia refrigeração como hoje e a conservação de alguns alimentos era feita com o salgar da carne e outros alimentos. A carnes não eram vendidas em açougue como hoje. Lembram-se do Matadouro existente no caminho a Santa Terezinha ? Até a carne tinha outra denominação com via-se nos noticiários e nas publicidades : carne verde.

Além da gastronomia, bares e restaurantes também eram ponto de encontro exclusivamente masculino. Por isso, alguns traziam a inscrição “ambiente familiar”, como forma de atrair esposo, esposa, filhos e ... até a sogra !!! Um dos casos era o Restaurante Papini, onde, na primeira metade do século passado, foram acirradas as disputas de bocha com campeonatos que varavam as noites. Isso, claro, regado a muito cigarro, bebida, papo, amizade e uma boa comida.

Hotéis como o Lago e o Central, ambos na praça José Bonifácio, também tinham restaurantes abertos não apenas aos hóspedes e voltados para a elite. Era possível consumir bifes com batatas, a nata da gastronomia de então.

Hoje a cidade diversificou-se. Não é mais necessário esperar a Festa das Nações para comer um prato típico de determinado país ou região. Basta abrir o iFood e ver um cardápio no qual paira a indecisão diante de tantas opções.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 15/10/2023)

domingo, 8 de outubro de 2023

Ainda sobre hotéis e hoteleiros

Ainda sobre hotéis e hoteleiros

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Hotéis em Piracicaba sempre movimentaram a sociedade. Foram ponto de chegada e partida de muita gente, além de referência à gastronomia na cidade. Cabe olhar ao passado para conhecer a história deste ramo do comércio.

O Hotel Marques foi inaugurado em 1º de agosto de 1883. Era de propriedade de José Gomes Marques nascido em Portugal (São João de Covas), sogro de Octávio Teixeira Mendes. Era de sua propriedade o Restaurante do Marques inaugurado em fevereiro do mesmo ano.

Situado em frente a Estação Sorocabana, o Hotel e Restaurante Moretti recepcionava aqueles que vinham de outras cidades através desta estrada férrea. Estava situado à rua Rangel Pestana com a rua Benjamin Constant (na época, à rua da Glória nº. 6). O restaurante era especializado em jantares para batizados e casamentos com preços módicos, segundo publicidade veiculada no Almanak de Piracicaba para 1914, de Roberto Capri. Tinha estoque de bons vinhos. Tanto Marques quanto Moretti trabalharam na área financeira da Boyes, em épocas distintas.


Já no início do século passado, a cidade contava com três hotéis, sendo eles o Central (acima em foto possivelmente dos anos 1950), do Lago e um hotel administrado por Bento de Campos. Nos anos 1930, Ângelo Baruzzi administrou o Hotel dos Viajantes, situado à rua João Pessoa nº 184 (antes rua do Commércio e hoje Governador Pedro de Toledo), junto ao largo do Mercado. Houve outro administrador hoteleiro, Bento de Campos, proprietário de um hotel na rua XV, no início do século passado.

Manoel do Lago foi proprietário do Hotel do Lago, este situado no Largo do Teatro Santo Estêvão, precisamente esquina da praça José Bonifácio com a rua São José (onde está o Poupatempo Estadual – Samuel Pfromm Cita cita em “Dicionário de Piracicabanos” anúncio como sendo seu endereço na rua Moraes Barros nº. 161). O Lago tinha um restaurante considerado “a melhor casa de petisqueiras da cidade”, segundo anúncio veiculado no Almanak de Piracicaba de 1914. Lago foi vice-presidente da Sociedade Espanhola local quando esta entidade foi fundada em junho de 1898.

“Asseio rigoroso com pessoal habilitado para o serviço”, assim descrevia publicidade de 1914 do Hotel Bela Vista, propriedade de Barbarini e Bardi, situado na rua do Commércio nº 79 (atual rua Governador).

Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (senador Vergueiro, também ministro no Império do Rei Dom João) veio a Piracicaba em 1807. Residiu em casa situada na então rua Moraes Barros com o Largo Central, que décadas depois deu espaço ao Hotel Central. Foi ele quem planejou o arruamento de Piracicaba, executado por José Caetano Rosa (o Alferes José Caetano), quando em 1808 a cidade tinha cinco ruas, travessas, pátio para igreja e largo para a cadeia. Esta casa funcionou como “Casa da Aposentadoria” uma espécie de ouvidoria do município, onde as reclamações eram relatadas e encaminhadas ao legislativo. Foi nesta casa que ocorreram as primeiras eleições da cidade, no dia 10 de agosto de 1822.

João Baptista de Castro foi proprietário do Grande Hotel Central, este inaugurado em 1894 (19 de maio). Outras fontes indicam que sua inauguração ocorreu dois anos antes (13 de abril de 1892). O Hotel situava-se no Largo da Matriz nº 5, onde encontra-se hoje o Oxxo, ao lado da Catedral. Pfromm Neto diz que Baptista era chamado de Castrinho e Janjão. Inicialmente criou o Restaurante do Janjão, depois adaptado para o Hotel Central. O Almanak de Piracicaba o descrevia como “um dos melhores do estado”. Aliás, o autor do afamado Almanak de 1900, Camargo, residiu com sua família no Central durante elaboração deste. Dizia que o espaço tinha quartos claros, arejados e com preços razoáveis. O Central foi administrado depois pela esposa e filhos, quando Baptista faleceu.

Hotéis também serviram de localização para prestação de serviços. Francisco Simões da Costa era médico e atuou na cidade de 1922 e 1926 realizando consultas no Hotel Central. Atendia crianças e senhoras. Montou consultório na praça José Bonifácio e atuou na Santa Casa, deixando a cidade para atender em Batatais.

Orlando Carneiro foi professor da ESALQ ao longo de 32 anos. Coordenou a reforma do Hotel Central. Este, possuía um pavimento, sendo reformado e ampliado para dois pavimentos.

Attilio Romano Giannetti foi o último proprietário do Hotel Central, na praça José Bonifácio, ao lado da Matriz de Santo Antonio. Também foi proprietário do Restaurante Brasserie situado próximo, vendido por ele à família Pedreira em 1954. Attilio foi o responsável pela primeira linha de transporte coletivo de Piracicaba para a capital paulista, em 1932, com nove veículos disponíveis. Cada um levava cinco passageiros numa jornada que levava seis horas para realizar o trajeto.

Uma jornada ao passado que o tempo não pode apagar.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 08/10/2023)

sábado, 23 de setembro de 2023

Hotéis e concierges de Piracicaba

 Edson Rontani Júnior – jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

 

Almeida Júnior, pintor que viveu do mecenato de Dom Pedro II, foi morto em frente a um hotel. Na região, o Grande Hotel de Águas de São Pedro funcionou como cassino. Dom Bertrand de Orléans e Bragança se hospedou no Hotel Beira-Rio em 2021. Estes são alguns fatos que nos remetem a hotéis da região de Piracicaba. Mesmo em época de hostess, moradas em containers e Airbnb, os hotéis ainda são sinônimos de luxo, não apenas em Piracicaba, mas mundo afora.

Isso tudo teve seu ponto de partida ao comentar dias destes com o amigo cirurgião-dentista Waldemar Romano sobre a arquitetura do Hotel Paulista. Uma foto que estampava o Teatro Santo Estêvão trazia à uma de suas laterais – onde se encontra hoje o Poupatempo Estadual – referida acomodação, numa arquitetura de dois pavimentos, com portas e varandas altíssimas, como aqueles casarões dos anos 1700 e 1800 que vemos em cidades com Tietê e Itú. Segundo Romano, ao lado deste, também sitou-se o Hotel do Lago, da família do compositor e ator Mário Lago, naquilo que era conhecido como o Largo do Teatro, na então praça 7 de Setembro (hoje, praça José Bonifácio). Não muito distante tivemos também o Hotel Central e décadas depois o Grande Hotel, próximo ao Mercado Municipal.


Estas rememorações surgem pois foram várias as contribuições destes hotéis para a cidade. Não apenas pela arquitetura de dois séculos atrás retidas apenas em pouquíssimas fotos como também para a vida social e a vida profissional da cidade. Um dos exemplos foi Aurora Conceição que por aqui clinicou como médica, formada pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, atendendo moléstias de senhoras e perturbações digestivas. Chegou a residir no Hotel Central de 1929 a 1931. Outra situação, desta vez de movimentação social: o Hotel do Lago, aliás, era ponto de partida dos troles que funcionavam com tração animal – atuavam como transporte coletivo na época – saindo pontualmente às cinco horas da manhã, isso em 1900.

A dimensão de alguns fica por conta da imaginação do leitor. Poderiam ter sido albergues, pensões, ou redutos de romeiros e retirantes. Samuel Pfromm Neto no seu “Dicionário de Piracicabanos” (Editora IHGP) lembra do “Hotel Europa”, situado na rua Governador, pertencente aos pais de Ida Schalch (o pai era engenheiro suíço e a mãe era alemã), uma das primeiras missionárias brasileiras educadas por metodistas.

Cartões postais nem tanto, mas os almanaques que povoaram Piracicaba no século passado traziam divulgações (textos e publicidades) de hotéis locais. Aliás, este era o papel dos almanaques, realizar a divulgação da cidade para o “estrangeiro nacional”.

Luciano Guidotti foi um cultuado “mestre de obras”. Criou a Pinacoteca, canalizou o Ribeirão do Itapeva, finalizou em seu segundo mandato o Estádio Barão da Serra Negra e tinha por intenção criar o Hotel Municipal. Este estava situado no parque ecológico de Luiz de Queiroz, pouco antes da Ponte dos Irmãos Rebouças, sentido Centro-Vila Rezende. O local também foi denominado de Parques Sachs em homenagem a André Sachs, onde, na segunda metade do século 1800, a sociedade piracicabana desfilava. Era o espaço onde ocorriam os piqueniques, apresentações de bandas em coreto edificado, e disputas de “partidas hamburguesas” ou boliche. O Hotel Municipal começou a ser erguido na década de 1960. Foi passado para iniciativa privada e arrematado anos atrás pela família que administra o Beira-Rio Palace Hotel.


Os hotéis locais também eram ponto de referência para a gastronomia. Anúncio em jornal de 1882 deixava claro que o Hotel Piracicabano, sr. Vicente Russo, disponibilizava a partir das 8 horas bifes a 400 réis com batatas ou ovos. Vicente comprou o hotel de Modesto Antonio Corrêa Lemos e este situava-se, lá por 1880, no Largo do Teatro. “O Piracicaba”, jornal da época o definiu como antigo e acreditado hotel, com cômodo e comida todas as horas e serventes para promover o giro do estabelecimento, além de veículos de tração animais para passeios, viagens e transporte para as estações da Paulista e Ituana.


Referência na cidade, o “Hotel dela Giardineira” situava-se onde próximo de encontra-se hoje a rede Oyo, rua XV de Novembro esquina com a Benjamin Constant. Era propriedade dos irmãos italianos – Paulo e Ricardo Pucci – e Archile Ghiara. Tinha quartos também para solteiros com gastronomia italiana. Para uma viagem ao tempo como esta, não se paga passagem ...

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 20 de setembro de 2023)

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Criadores e conteúdos

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba


É oco por dentro. Mas dentro tem água. Um coco alimenta tanto pelo seu líquido quanto por sua polpa. Mas não deixa de ser oco. Curioso é ver que muitos conteúdos são ocos, mas não tão nutritivos quanto o coco que nos beneficia pelo sabor, pelos nutriente etc etc etc ...

O caos proporcionado pela informação nos joga num mundo sem lei tal qual o bandido que saca a arma para duelar com o xerife no velho oeste americano. Daí é que surge o caos da informação, do entretenimento e do conteúdo. Mas ... que raios ?!?! Onde chegar com esta conversa ? Simples ... estamos sendo bombardeados por conteúdos ocos todos os dias, fazendo com que isso seja uma necessidade, criada pelo incrível poder midiático, e, assim mesmo nos extasiamos, de tanta banalidade. Ué ! Você já notou algo enriquecedor intelectualmente no Tik Tok ? Ou já se deu conta do modismo que vemos nesta plataforma – e não tão somente nela – fazendo com que a sociedade mude conceitos e comportamentos ? Isso me faz lembrar aquela máxima : não é porque todo mundo está fazendo que está certo; e não é porque apenas uma pessoa está fazendo que está errado. O errado é errado mesmo que todos o estejam fazendo. Mas, a quem compete julgar ? Complicado, não ?

Nosso papel como escritores não é lançar conceitos e ponto final. A intenção é movimentar a “massa cinzenta” e botar os neurônios a funcionar. Dizem que a leitura abre portas para o mundo, elucida pré-conceitos, leva-nos a novos caminhos. Tudo bem, até aí.

Mas algo me instigou nesta semana que se passou. Nosso ilustre diretor do JP, Marcelo Batuíra, esteve presente na sessão de posse da Academia Piracicabana de Letras, realizada na última quarta-feira na Câmara de Vereadores, na qual inclusive tal nobre advogado e representante da imprensa local assumiu a cadeira de Archimedes Dutra. Em seu pronunciamento, Batuíra foi muito feliz ao citar que escritores, jornalistas, poetas e outros são “criadores de conteúdo”, embora ele, com certa ironia, disse nem saber do que se trata isso.

O embate está em seu primeiro round, numa interminável disputa. Está começando e não se sabe onde vai parar. Filosofias elucidativas, longas páginas de livros, conteúdo intelectual de primeira e outras manifestações aprofundadas se afastam do conhecimento humano pelos três parágrafos cada qual com três linhas que os estudiosos apontam como caminho para a mente humana se prender e entender determinado assunto quando algo é postado no Instagram.

Isso me lembra a teoria do canadense Marshall McLhuan que previa o encurtar as barreiras e termos uma globalização interminável, criando a denominada “aldeia global”. Ótima visão do futuro quando ele teorizou isso. Misto a isso nos vem a memória do Grande Irmão (o Big Brother) criado por George Orwell em 1949 que também anteviu um mundo controlado pela tecnologia, porém com poder de inibir qualquer pensamento ou sentimento. Posso citar teorias de Eric Hobsbawn ou Gay Talese, entre outros papas da comunicação, os quais previram tudo o que estou comentando: a informação como meio de entreter, informar (ou desinformar ?!?), comercializar e fazer o meio mais importante que a mensagem. As fake news são prova disso.

Intelectuais, propagadores da mensagem – com credibilidade por carreiras bem pontuadas – jornalistas, escritores, historiadores e outros profissionais da comunicação são legados a um segundo plano quando, não os criadores de conteúdo, e sim os influenciadores digitais berram baboseiras em nossos ouvidos na telinha do smartphone ou na TV de 56 polegadas. O filtro, me disse certa vez o radialista Djalma de Lima ao lado do professor Alceu Marozzi de Righetto, é o profissional como o jornalista que tem o senso de escolher o que vai falar e levar a mensagem para seu público. Hoje todos tem o poder de ser comunicador – de forma errada ou certa – propagando via mídia social o que bem entender. Como dito anteriormente, não é papel aqui julgar e sim estimular o pensamento para novos conceitos.

A denominação de criador de conteúdo nos remete ao desktopistas do jornalismo na primeira metade do século passado. Era o profissional que ia a campo, sondava uma situação, chegava na redação e ditava a jornalista o que viu. Este segundo profissional é quem fazia a matéria jornalística. Algo do tipo “ghost writer” ainda hoje em voga, situação na qual um profissional faz um texto e outro alguém é quem o assina, como vemos em discursos, artigos ou livros de políticos, por exemplo. Até outro dia, as redações tinham seus revisores de texto, trampolim na profissão para muitos jornalistas e que amargavam o ingrato horário do final da noite, quando o jornal estava prestes a ser impresso. Haviam filtros.

A internet possibilitou que todos sejam criadores de conteúdo, alguns, sem qualquer ironia, mais ocos que o conteúdo do coco citado logo no início. E durma-se com um barulho destes ! 

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 3 de setembro de 2023)

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Desfiles da vida

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

 

- “É com orgulho”. Então que vá com orgulho !

Há 50 anos (pode ter sido 49 anos também ...), fomos desfilar pela Independência do Brasil. O local era a rua Gomes Carneiro em frente a Escola Assunção. A conversa foi traçada entre minha pessoa, a amiga Ana Giuliani e o primo Humberto D’Abronzo Gil. Quem puxava o “orgulho” eram minha mãe Ivete e sua irmã (minha tia) Ivone. Lá fomos desfilar pelas imediações da escola em memória ao mérito de Dom Pedro I, que, com um grito, tornou o Brasil independente de Portugal. Dizem que foi assim, não sei ...

Deveria ter sido uma manhã fria, pois estávamos uniformizados. Shorts azul escuro igual ao agasalho de linho que cobria uma camisa branca com gola. Assim era o uniforme deste centro de ensino que acaba de completar 130 anos. A memória pode falhar, uma vez que tudo isso tentei alcançar com a única foto que possuo e a qual representa o tão ímpar desfile de 7 de setembro que participei ao longo destes últimos 50 anos.

- “É medo”. “Não. É vergonha!”. Então que fosse com medo e vergonha. Batalha que travei comigo mesmo anos depois no ginásio. Após o Colégio Assunção passei pelo Grupo Barão do Rio Branco e pelo Jorge Coury. O medo me consumia no caso de errar o passo no desfile, ficar desatento com a banda, ou tentar medir a reação do público que então se prostraria por uma das ruas centrais de Piracicaba. Era “o medo de fazer o feio”. Acreditava que para tocar na banda, segurar bandeira ou fazer as acrobacias então destinadas às alunas, exigia estudo ... dedicação ... honra ! Mas muitos daqueles que disso participavam, fazia por “curtição”. “Deixa prá lá a vergonha ... Isso não me incomoda”, ouvia dos amigos.

Salvo pelo congo ! Professores em greve no final de agosto. Que ótimo ! Me cobria pela vergonha de expor nas ruas aos olhares atentos de pais, vizinhos e amigos da sala de aula. Assim foi um 7 de setembro ... depois foi outro ... mais um e eu nunca desfilei. Greve após greve.

Desfilei sim pelas cadeiras de ensino da Escola Estadual Dr. Jorge Coury, moderna para aquilo que eram os anos 1970. Por ali, tive sábias aulas com o professor Franscílideo Beduschi e a “dona” Miquelina que me deram os primeiros passos de cidadania e civismo. Dona Conceição Brasil nos ensinava a cantar o Hino Nacional Brasileiro por obrigação como uma professora de matemática nos ensina aritmética. “Seis de seis são 36 !”. “Conseguimos conquistar com braço forte e não braços fortes !!! Quantas vezes vou ter que repetir?”. As palavras da professora ainda ecoam pela minha cabeça. Unem-se ao imaginário destas mais de cinco décadas de vida. Além de professores, eles foram líderes que nos ensinaram o respeito e a educação através de disciplinas implantadas pelo regime militar. Organização Social para o Trabalho (OSBP) e Educação Moral e Cívica (EMC) ensinavam antes de tudo o respeito, a dignidade e conhecer que o seu limite vai até onde começa o limite do outro.

“Coragem e orgulho. Mas ... e o medo ? Que medo ?!?”. Novamente o conflito com meu ego toma corpo. “Às favas”. Lá fui vestido de farda militar com o ombreira escrita monitor do Tiro de Guerra desfilar nos Jogos Regionais do Interior de 1986, no Estádio Barão da Serra Negra. Uma única volta nas laterais do campo. Foi a apoteose. Segurava uma das bandeiras, a qual creio que tenha sido a do município. E teve, confesso, o olhar incansável de uma atleta vinda de outra cidade que a todo momento me fitava dando intenção de um certo paquerar. Sabe-se quem lá era. A timidez falou mais alto que o medo ou a vergonha. E assim foi ... De centro de atenção para público.

Nos últimos anos acompanhei diversos desfiles sejam eles realizados sob sol ou chuva, pela Governador Pedro de Toledo ou Boa Morte. Muitos amigos desfilaram por esta vida e hoje além de estarem apenas na memória, ausentes deste mundo terreno, mostraram um pouco de como é este palco chamado de vida.

 (Publicado no Jornal de Piracicaba em 6 de setembro de 2023 e na Tribuna Piracicabana de 16 de setembro de 2023)