Edson Rontani Júnior, jornalista, vice-presidente do
IHGP e diretor da Academia Piracicabana de Letras
“Não
saia na rua a noite senão o ‘ligera’ vai pegar você”. Muitas crianças se assustavam
com essa ameaça paterna ou, principalmente, materna. Tal pessoa era conhecida
também como andante, pedinte, mendigo ou “o homem do saco”, que pegava as
criancinhas, colocava-as em um saco e seguia não se sabe para onde. Falavam que
tal figura devorava as crianças. Nos anos 1970, quando cinquentões como eu
curtíamos a infância, era um motivo para não sair de casa.
Eis
que Waldemar Iglésias Fernandes publica, numa edição pioneira do Instituto
Histórico e Geográfico de Piracicaba (IHGP), o livro “Lendas e crendices de
Piracicaba e outros estados”, datado de 1975, vendido principalmente em
jornaleiros e bancas de revistas da cidade. “Bertico”, o Alberto Thomazi, era
autor da capa ilustrando um ritual católico diante da morte, presumindo-se
ocorrer na época do escravagismo.
Eis
que em sua página 21, apresenta-se a história do turco (!!!) que come criança.
Xenofobia pura ou preconceito étnico nos dias de hoje. O popular “politicamente
incorreto”. Iglésias mostra estupefação ao dizer que os piracicabanos “não
simpatizavam com esses civilizados e cultos orientais, vindos de tão longe com
língua tão estranha”. Há registros de muitos anos atrás nos jornais de
Piracicaba de queixas à polícia por pais aflitos contra os turcos
“antropófagos”. Essa é a Piracicaba fantástica, com suas histórias surpreendentes,
algo que a torna única diante de outras regiões.
O
autor do livro fez um apanhado de lendas e crendices que viajaram o interior do
país, oriundas de uma miscigenação cultural, de culturas estrangeiras e
nacionais, como aquelas perpetuadas pelos índios. Lembra da tal “cobrona” que
virá no final dos tempos comer os pecadores e está com parte do corpo instalado
embaixo da matriz de Santo Antonio ? Existem variantes da mesma situação no
Amazonas e no Centro-Oeste. Dizem que esta lenda dominou muitos encontros
indígenas diante da fogueira instalada ao lado das ocas.
Iglésias
nasceu no Bairro Alto. Foi lá que nos anos 1930 brincou na rua, com terra
batida, e ouviu muitas dessas culturas compiladas na publicação. Era comum se
reunir embaixo dos postes elétricos para contar estórias ... Época em que a imaginação pegava carona
apenas nos livros de Jules Verne. Quando lançado em 1975, as lendas e crendices
ainda fazia arrepiar os petizes. A época era outra. Até King Kong, Drácula e
Piranha nos faziam pular dos assentos de cinema. O efeito hoje é o mesmo ? Não
entremos neste mérito ... Quando adulto, Iglésias fez um abecedário de todas as
lendas, crendices e músicas que ouviu “com o precioso socorro dos irmãos e
irmãs”, salienta.
Interessante
é ver que desde o lançamento do livro até hoje, alguns conceitos mudaram. Como
por exemplo, o “véu da noiva” que é confundido com aquela canalização que
percorre o Mirante e deságua próximo a ponte pênsil. Na verdade, o véu é a
bruma que cobre o leito do rio Piracicaba de madrugada, em determinadas épocas
do ano.
O
sono do salto, o rio que seca, o coqueiro assombrado, a matriz sobre um vulcão,
Nossa Senhora dos Prazeres X Santo Antonio ... São contos acrescidos de
vertentes pessoais que Waldemar Iglésias Fernandes nos presenteia neste livro
que tem uma necessidade de ser reeditado, haja visto o interesse e sucesso pela
“Coleção Lendas de Piracicaba”, livros lançados por Ivana Maria França de Negri
ilustrados por sua neta Ana Clara de Negri Kantovitz. “A Cobrona” lançado recentemente
na Biblioteca Municipal e outros espaços tem atraíram o interesse dos petizes
que ainda não se iniciaram no mundo digital.
Uma
ótima pedida para que lendas e crendices não se afastem de nosso tão rico
folclore e, tristemente, um dia virem lenda !