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sábado, 31 de dezembro de 2022

A Piracicaba de 2022

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Olhar para o passado. É nisso que este artigo se propõe. No passado podíamos tentar enxergar o presente. Pelo menos é o que se propôs o professor Honorato Faustino, quando, em 1922, teve a ideia de criar uma cápsula do tempo. Instalada no centenário da independência brasileira e acoplada à parede da hoje Escola Estadual Sud Mennucci, ela manteve-se intacta – uma caixa de cobre – por cem anos.

Seu teor foi revelado em 15 de novembro passado, no auditório do Museu Prudente de Moraes, embora ela tivesse sido retirada do local depositado no feriado anterior, 7 de setembro. Na revelação, os presentes acompanharam momentos preciosos como as palavras de Roberto Faustino, bisneto de Honorato, que emocionou a todos ao contar que sua alfabetização começou antes dele frequentar as cadeiras escolares, lendo e decorando um livro que seu bisavô fez com o alfabeto e imagens, para as crianças assimilarem cada vogal e cada consoante. Outros se deleitaram com o violino de Luis Fernando Fischer Dutra que executou pela primeira vez uma composição de seu bisavô Benedito Dutra Teixeira enclausurada por 100 anos na cápsula. Ocorreram outros momentos, como a fala de Carlos Beltrame sobre a carta de seu avô, professor da então Escola Complementar, ou algumas leituras feitas pelo historiador Maurício Beraldo, sendo muitos relatos pessoais de alunos, professores e membros da comunidade piracicabana de 1922.

Piracicaba respirava ares pós Primeira Guerra Mundial e saía aos poucos da pandemia da gripe espanhola. Aliás, nesta convulsão sanitária, cabe ressaltar que a Escola Sud Menucci serviu de hospital de campana para as dezenas de pessoas afetadas pelo vírus influenza entre 1918 e 19.

Foram mais de 600 documentos colocados na cápsula. Isso mostra a força que possui o papel. Dentre tantos outros meios é o que mais resiste com o tempo, seja em décadas, séculos ou milênios. Boa parte já foi catalogada e está sendo gradualmente divulgada pelo setor de Gestão e Documentação e Arquivo da Câmara de Vereadores de Piracicaba, através das mídias sociais.

Dentre as cartas lidas por Beraldo uma me chamou a atenção. Uma pequena jovem dizia que a cidade estava em polvorosa com a vinda de aeroplanos (o primeiro avião que aqui pousou veio em 1º de maio de 1922) e a inauguração da Estação da E. F. Paulista. Ela mandava seu recado esperando que em 2022 a cidade tivesse muito mais aviões pelos céus, bondes e trens pelas ruas e que os jornais pudessem ter uma circulação de 90 mil exemplares para informar a cidade. Piracicaba contava com cerca de 30 mil habitantes na ocasião. Os desejos acabaram não atendidos com o passar do tempo ...

A cápsula tenha receita do dr. Honorato – além de professor, ele era médico – para acalmar os nervosos. Também foram deixadas fotografias inéditas até novembro passado. Muitas delas curiosas. Uma das cartas escritas pela jovem Aracy de Almeida comenta sobre a moda do piracicabano que, a exemplo do resto do país, tinha forte influência da França (o inglês só teve sua participação cotidiana no Brasil após a Segunda Guerra Mundial), na qual predominavam vestido longo para mulheres e ternos para os homens enfrentarem o calor que por aqui ultrapassa aos 35 graus em pleno verão !

Raridade foi encontrar um original de Archimedes Dutra na cápsula, em papel timbrado da escola com o esboço do perfil de um crânio. Como deve ter se deliciado os historiadores ao abrirem esta caixa !!!

Piracicaba respirava ares cosmopolitas em 1922, equiparando-se a Nova Iorque ou Rio de Janeiro. Pelo menos é o que diz carta de Alzira de Souza Gabbi (4º ano), endereçada ao atual prefeito da cidade, encerrando com uma interrogação: “conterrâneos de 2022! A fantasia idealizada pela minha imaginação ter-se á realizado? Oxalá que sim!”.

O presente está aí. Que tal comparar com o que era esperado cem anos atrás ? Boas festas de virada de ano !  

Artigo publicado no Jornal de Piracicaba de 28 de dezembro de 2022

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Fantasmas do passado e do presente

* Edson Rontani Júnior

Acordo assustado com o primeiro badalar da madrugada do sino da Catedral de Santo Antonio. Ensonado, abro os olhos. Vejo uma presença estranha em meu quarto. “Que faço?”, pensei. Será que eu continuava dormindo ou isso fazia parte real do meu sonho?

“Olá ! Sou o espírito do Natal passado”, me disse numa voz lânguida. Pronto ! Estava eu viajando nas páginas do clássico de Charles Dickens quando, de forma nada sorrateira, o Natal passado me leva lá por volta de 1690. “Aqui é a cidade que vocês no futuro chamarão de Piracicaba”. Estranho tudo. Era só matagal. Sesmaria dada a Pedro de Morais Cavalvanti que nunca ocupou a região. Passeamos pelo lado direito de um rio. A natureza em sua mais bela exuberância. Animais e mato. Sem a presença do ser humano. Por décadas a região ficou assim, ora servindo de entreposto por aqueles que buscam destinos como Itu ou as minas de ouro de Cuiabá, entre outros.

Num grande salto, o fantasma passado me leva para quase 50 anos depois. Era 1767. Encontro-me com um certo capitão denominado de povoador. Homem ranzinza, bravo e autoritário. Estava em briga com os religiosos. Tentava habitar uma vila.

Evidente que ninguém podia nos ver. Nem eu nem o fantasma do passado. Me senti como se fosse o próprio Ebenezer Scrooge, quando a nossa frente passa Antonio Pacheco da Silva, sargento-mor de Itu, com uma lista feita a mão, talvez escrita com bico de pena, com aquelas tintas que borram com o simples passar dos braços suados. Foi aí que descobri para o que servia o “mata-borrão”... Pacheco se aproxima e conversa com o capitão, um tal de Antonio Correia Barbosa: vos lhe apresento o censo de Piracicaba: “crianças do sexo masculino desde a primeira idade até 7 anos = 37; crianças do sexo feminino da mesma idade = 26; rapazes desde 7 anos até 15 = 21; raparigas desde 7 até 14 = 17; homens desde 15 a 60 = 61; mulheres de 14 até 50 anos = 61; velhos de 60 anos para cima = 3; velhas de 50 anos para cima = 5. Total - 231 habitantes. Fogos (casas) – 45”.

Rapidamente, voamos por décadas mais tarde e vemos a cidade receber a denominação de Vila Nova da Constituição. Justa – na época – homenagem à Coroa Portuguesa que elaborava nova Constituição para o país ibérico. Como o tempo e o espaço eram curtos naquela noite, o fantasma do passado me apresenta uma série de fatos e pessoas as quais não conheci fisicamente mas ouvi muito falar e cujas histórias li em algum lugar ... Luiz Dias Gonzaga, Honorato Faustino, Mario Dedini, Luciano Guidotti, Mazzola, Alberto Vollet Sachs, Caetano Rosa, Castro  Mendes, os Dutra, os Chiarini, os Gurerrini, alguns barões ... Me apresentou até o primeiro prefeito da cidade, um tal de José Machado, que não tem nada a ver com aquele que você está pensando .... Tanta gente que fez parte da cidade, semeou um campo fértil do qual muitos hoje desfrutam.

Bléim, bléim ... Acordo assustado novamente. O segundo badalar da madrugada me assusta. Pensei que tudo tivesse sido um sonho. Viro o rosto para o criado-mudo e vejo uma figura, tipo bonachão sentada. Pensei ser o fantasma da Natal presente. “Sou o fantasma do Natal presente”, disse. Eita madrugada longa ! Cadê aquele matagal no entorno do rio ? Cadê aquela vastidão verde que vi com o fantasma passado? “O ser humano ... Mais de 90% daquela mata foi consumida pelo ser humano nestes 255 anos”. Me calo. A consciência dói. Talvez por isso que faz tanto calor na cidade, como bem atestamos no dia a dia. Dos 231 habitantes vamos para quase 420 mil pessoas na cidade. Outras coisas me foram apresentadas pelo fantasma do presente. Prefiro ficar quieto, pois ainda estava ensonado e não sabia se aquilo era realidade ou estava eu em devaneios pelos braços de Morfeu...

Caio no sono de novo. Terceiro badalar do sino da Catedral. “Pronto ! Lá vem o fantasma do futuro”, pensei. Enfio a cabeça embaixo do travesseiro e me recuso a levantar. Afinal, futuro a gente constrói ... ou foge dele ...

Publicado no Jornal de Piracicaba em 14 de dezembro de 2022 e na Tribuna Piracicabana de 24 de dezembro de 2022