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segunda-feira, 24 de abril de 2023

Ano três

Edson Rontani Júnior, jornalista

Pego meu celular. Não sei por que cargas d’água resolvi editar meus contatos telefônicos. Logo no início, excluo um número. “Morreu de covid”, lembrei. Mais para frente, outro excluído pelo mesmo motivo. E assim foi. Três ... quatro ... cinco ... Perdi as contas! Amigos que se tornaram estatísticas, meros números no quadro de falecimentos por este temível SARS-CoV 2, cujo estado de alerta mundial completa três anos em março.

Foi em março de 2020 que shoppings centers cerravam suas portas por tempo indeterminado. Jogos de futebol deixaram de ser realizados. Novelas voltaram às reprises sem novas gravações. O #fiqueemcasa foi a hashtag do momento. E a vacina não chegava. Quando chegou, acabou gerando muitas dúvidas. Mas criou aquilo que se chama de imunização de rebanho.

Pelo mundo, as pessoas morriam e eram deixadas na rua para não contaminarem os demais. O serviço funerário atuou como nunca, com sepultamentos à noite e sem direito a velórios ou despedidas dos familiares. Na Índia, o clamor para que os próprios familiares cremassem seus entes pois a estrutura era insuficiente para atender, digamos assim, a “demanda” da ocasião.

Curioso é saber que em 8 de março de 1918 tivemos o início da pandemia anterior, data em que foi registrada a primeira vítima fatal da gripe espanhola, que matou cerca de 50 milhões de pessoas.

No ano três da pandemia, as vacinas começaram a ser aplicadas ... Primeira ... segunda ... terceira ... quarta dose ! Agora, sim ! Imunizados. Mas, para surpresa, a covid bate em meu lar. Uma noite gelada do final de maio, nos obriga a realizar o temível exame do cotonete. Positivo ! Esse foi o veredito após cerca de seis horas de espera no atendimento médico, cujo passar da noite se tornava mais gelada, fria e temerosa pois mais de 100 pessoas se acomodavam no ambiente. “Se não estou com covid, eu pego aqui, de tanta gente tossindo ao meu lado”, balbuciei ... Felizmente saio precavido, negativado, mas um membro da família não teve a mesma sorte. Foram vários dias de repouso e temor por suas consequências.

Chegamos ao meio de 2022 e parece que a doença pandêmica deu uma trégua. Aos poucos, as máscaras são deixadas de lado, o álcool gel demora para ser consumido ... Relaxamos geral processo considerado natural. Tudo reabre. Não há mais obrigatoriedade de máscaras, distanciamentos ... O ritmo retorna ao normal prevendo eleições que se aproximariam, Copa do Mundo que foi programada para novembro/dezembro e os encontros familiares e com amigos naquele restaurante tradicional. A vida volta ao normal.

Mas ainda me pego surpreso de ter perdido amigos e amigas como disse no início. Eram números em minha lista de telefone, tornaram-se números nas divulgações de não curados e falecidos. Foram Antonios e Marias que hoje deixam saudade no seio familiar ou no círculo de amizade. Pessoas a quem desejávamos o bom dia quando os encontrávamos no café nas manhãs de domingo no Mercado Municipal. Muitos deixam saudade e tristeza demonstrando o quão terrível é esta doença conhecida por covid/19 ou coronavírus.

“Todo mundo vai pegar”, disse um amigo. E eu, forte, valente, fugia da doença como quem foge do tempo que nos torna velhos. Quanto mais se foge, pior é. Ouvi muito disso. Eis que no início deste mês, a doença bate novamente na porta de minha residência. “Desta vez não tem jeito, vou ter que abraçar esta ‘tendência’ mundial”, disse sem muita opção. “Tomou vacina ?”, me perguntaram. “Sim ! Quatro ! E antes que muita gente por trabalhar no setor de saúde”, argumentei. Mas de argumento e teorias da conspiração, há muita coisa que nossa vã filosofia possa não entender. E assim, entramos no ano quatro da pandemia que não tem data para terminar.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

E o Titanic submergiu ...

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Li estes dias que “Titanic”, o filme de 1997, retorna às telas esta semana. É a terceira maior bilheteria do cinema, que junto a “Avatar” (2009) e “Avatar – O Caminho das águas” (2022) dão o título a James Cameron como o cineasta que fez três dos quatro filmes mais assistidos e rentáveis de toda a história.

Isso me trouxe à memória as exibições que tivemos em Piracicaba deste filme que, por trás de um romance meloso, mostrava o grande desastre do transatlântico naufragado em 15 de abril de 1912. Quando lançado 25 anos atrás, “Titanic” foi exibido nas salas do Cine Center, no Shopping Piracicaba, coordenado pelo Grupo Paris Filmes. Era de ver o brilho nos olhos de Márcio Fraccaroli, CEO do Grupo Paris, e do “seu” Silvio, gerente das salas, a rotatividade de pessoas que comprava ingressos para apreciar a obra na telona. Cabe ressaltar que nesta época, houve uma debandada muito grande do público diante das salas exibidoras motivada pelo VHS. A fita de vídeo-cassete era a vilã por trás de tudo. Mas, nas semanas em que o longa ficou em exibição, as salas lotaram. Ainda não havia cobrança de estacionamento neste centro de compras.

Meses depois, “Titanic” foi exibido por semanas a fio na Sala Grande Otelo do Cine Arte, no complexo do Teatro Municipal Dr. Losso Netto. Era algo comum na ocasião. Reprises por semanas. Me recordo que, por força do ofício – eu era cinéfilo e comentava sobre cinema num jornal local e numa emissora de rádio –, “Dirty Dancin’ – Ritmo Quente” (1987) ficou em cartaz por oito semanas na Sala Grande Otelo.

Toda esta rememoração nos traz a nostalgia das salas exibidoras da cidade. A rua Benjamin Constant possuía três cinemas, de responsabilidade de Francisco Andia, que nos anos 1960 tinha sua produtora a Águia Filmes. O primeiro era o Cine Colonial. O segundo era o Cine Rivoli, com quase 1 mil assentos, e o último era o Cine Paulistinha, na altura da Paulicéia. Tivemos também o Cine Politeama e o Cine Brodway nas proximidades da praça José Bonifácio. Eles tiveram outras denominações ao longo do tempo, assim como tivemos outros cinemas na cidade. Um deles, nos anos 1920, situava-se na rua Governador Pedro de Toledo, onde foi a Fábrica de Balas Petrin, hoje, filial de um supermercado. Assim, vamos nos ater aos cinemas existentes nos anos 1980 e 1990.

Aliás, pouco antes, entre as décadas de 1970 e 1980, era comum a fila “dobrar a esquina” – ou as esquinas – no Rivoli. Filmes de Mazzaropi e Os Trapalhões faziam a fila iniciar-se na Benjamin, virar a XV de Novembro e finalizar na avenida Armando de Salles Oliveira, bem em frente a saída de emergência do Rivoli. Foi assim, com “King Kong” (1976), “De Volta para o Futuro” (1984), “O Segredo do Abismo” (1989) – olha James Cameron de novo – e tantos outros. Recordo-me que ao assistir “Os Trapalhões no Planeta dos Macacos” (1976) as únicas cadeiras vagas eram aquelas da primeira fileira, nos obrigando a uma ginástica com o pescoço e os olhos para acompanhar o andamento das cenas na telona. Bendito seja quem implantou a venda de cadeiras enumeradas no cinema a exemplo do que ocorre nos ônibus e aviões !

Cabe ressaltar que o Cine Arte tinha este nome por ser uma espécie de cinemateca. Era uma sala pequena. Duas, se não me falha a memória. Foi lá que assisti às reprises dos filmes “O Jovem Frankenstein” (1974) de Mel Brooks, “Metrópolis” (1984) de Fritz Lang restaurado por Giorio Moroder e obras de Alfred Hitchcok, liberadas por sua viúva após mais de 30 anos sem circulação.

O Grande Otelo fechou suas portas não ao acaso. Situava-se no Teatro Losso Neto, na rua Santa Cruz. Local de alagamentos quando chove. Alguns devem se lembrar do Pronto Socorro Central, ali próximo, desativado por conta das inundações. Certa noite, em 1998 ou 99, numa reprise de “Titanic” o público sente os pés molharem ... Não era efeito ... Era a água do toró que caia lá fora adentando no recinto. A inundação chegou a altura dos assentos, obrigando muita gente a sair pelas janelas do banheiro. Que naufrágio ...

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 08 de fevereiro de 2023)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Cultura de gibi


 

Edson Rontani Júnior, jornalista, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Houve tempo em que os medalhões da Marvel e da DC Comics provocavam filas em bancas de jornais e revistas, tal qual motivam hoje os jovens a irem ao cinema para assistir à produções milionárias cujas rendas ultrapassam os bilhões de dólares. Foi numa época em que os astros das duas editoras eram contados nos dedos, os famosos “meia dúzia”, período em que o Capitão Marvel (conhecido pela geração atual como Shazam) era publicado pela mesma editora do Superman, seu mais direto concorrente. A editora era a EBAL de Adolpho Aizen. Muitos personagens sequer chegaram ao Brasil. E olha que universo não faltava. Só os X-Men, surgidos no início dos anos 1960, somavam várias dezenas.

Pois, bem. Foi lá por 1970 que as filas se formavam em locais como a Agência Cury, na Galeria Brasil, Centro, onde hoje situa-se uma agência lotérica, a Livraria Católica e a AM Banca ambas situadas na rua XV de Novembro próximas a rua Governador, ou a Banca Gianetti embaixo da Rádio Difusora e nos anos 1990 no Shopping Piracicaba.

É nada vaga a recordação do ambiente de ostentação da Agência Cury, com capas de revistas que enchiam nossos olhos com os mais mágicos representantes dos quadrinhos. Formatinho, formato americano, tamanho poster ... publicações que nos deleitavam como a famosa capa do Superman enfrentando Mohammad Ali na “luta do século”. Claro que as atuais influências digitais sequer povoavam a imaginação seja de adultos quanto de crianças. Vamos dar um pulo num passado nada distante e lembrar dos cadernos de “catecismo” de Carlos Zéfiro que alimentaram a imaginação masculina.

Bom... por que todo este enunciado ? Outro dia comentei numa mídia social que eu “sou do tempo em que falar ‘cultura de gibi’ era dizer que a pessoa tinha um QI médio para baixo”. “Cultura de gibi” era uma forma até os anos 1980 de dizer que a pessoa tinha limitações de conhecimento. Eis-me que alguém comenta que hoje gibi é coisa de luxo. E realmente é. Quantos gibis desta década, você, nobre leitor, tem em casa ? Há quanto tempo não compra um gibi atual ? E por aí vai ... Claro que o processo natural de evolução fez com que os HQs perdessem a graça para as gerações atuais. Deve ser horrível enfrentar o entretenimento que fica na ponta de nossos dedos com movimentos e sons no smartphone enquanto os quadrinhos são estáticos e exigem leitura e interpretação.

O dia nacional dos quadrinhos – lembrado dia 30 de janeiro – foi criado para homenagear desbravadores que enfrentam as mídias digitais de forma constante. Claro que Piracicaba foi celeiro para muitos desenhistas (Lancast, os irmãos San Juan, Spadotto, Hussar, Edu Grosso, Longo, Douglas Mayer, e muitos outros resgatados por Adolpho Queiroz nas duas edições de “Piracartum”). Tem um salão internacional que premia aqueles que se dedicam às tiras, de onde vieram os principais personagens dos quadrinhos e do cinema.

Já “Para ler pato Donald” foi um dos primeiros itens teóricos a criar o negacionismo nas HQs. Todo mundo ria com Mickey. Todos riam com Pica-Pau. Mas, houve filósofos que viam nas gags apresentadas uma mensagem subliminar para dominar o coletivo. E “A guerra dos gibis”, de Gonçalo Júnior, mostra que a “era de ouro” dos quadrinhos não era apenas um era nostálgica, e sim um veio de ouro com quadrinhos vendendo milhares e milhares de exemplares, algo que hoje é impossível.

São exemplos para reler, rever e repensar, numa época em que antigos pensamentos se atualizam, como Dale Carnegie que ainda aparece entre os mais vendidos com seu “Como fazer amigos e influenciar pessoas” escrito há quase um século atrás.

E viva Angelo Agostini, homenageado por este dia nacional dos quadrinhos !

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 25 de janeiro de 2023 e na Tribuna Piracicabana de 28 de janeiro de 2023)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Câmara Entrevista fala sobre nosso blog

Entrevista com Edson Rontani Júnior no programa Câmara Entrevista da Câmara de Vereadores de Piracicaba, levada ao ar em 22 de julho de 2022.

O bate-papo fala sobre as fotografias antigas de Piracicaba que renderam blog, coluna na Tribuna Piracicabana e perfis no Facebook e no Instagram.


sábado, 31 de dezembro de 2022

A Piracicaba de 2022

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Olhar para o passado. É nisso que este artigo se propõe. No passado podíamos tentar enxergar o presente. Pelo menos é o que se propôs o professor Honorato Faustino, quando, em 1922, teve a ideia de criar uma cápsula do tempo. Instalada no centenário da independência brasileira e acoplada à parede da hoje Escola Estadual Sud Mennucci, ela manteve-se intacta – uma caixa de cobre – por cem anos.

Seu teor foi revelado em 15 de novembro passado, no auditório do Museu Prudente de Moraes, embora ela tivesse sido retirada do local depositado no feriado anterior, 7 de setembro. Na revelação, os presentes acompanharam momentos preciosos como as palavras de Roberto Faustino, bisneto de Honorato, que emocionou a todos ao contar que sua alfabetização começou antes dele frequentar as cadeiras escolares, lendo e decorando um livro que seu bisavô fez com o alfabeto e imagens, para as crianças assimilarem cada vogal e cada consoante. Outros se deleitaram com o violino de Luis Fernando Fischer Dutra que executou pela primeira vez uma composição de seu bisavô Benedito Dutra Teixeira enclausurada por 100 anos na cápsula. Ocorreram outros momentos, como a fala de Carlos Beltrame sobre a carta de seu avô, professor da então Escola Complementar, ou algumas leituras feitas pelo historiador Maurício Beraldo, sendo muitos relatos pessoais de alunos, professores e membros da comunidade piracicabana de 1922.

Piracicaba respirava ares pós Primeira Guerra Mundial e saía aos poucos da pandemia da gripe espanhola. Aliás, nesta convulsão sanitária, cabe ressaltar que a Escola Sud Menucci serviu de hospital de campana para as dezenas de pessoas afetadas pelo vírus influenza entre 1918 e 19.

Foram mais de 600 documentos colocados na cápsula. Isso mostra a força que possui o papel. Dentre tantos outros meios é o que mais resiste com o tempo, seja em décadas, séculos ou milênios. Boa parte já foi catalogada e está sendo gradualmente divulgada pelo setor de Gestão e Documentação e Arquivo da Câmara de Vereadores de Piracicaba, através das mídias sociais.

Dentre as cartas lidas por Beraldo uma me chamou a atenção. Uma pequena jovem dizia que a cidade estava em polvorosa com a vinda de aeroplanos (o primeiro avião que aqui pousou veio em 1º de maio de 1922) e a inauguração da Estação da E. F. Paulista. Ela mandava seu recado esperando que em 2022 a cidade tivesse muito mais aviões pelos céus, bondes e trens pelas ruas e que os jornais pudessem ter uma circulação de 90 mil exemplares para informar a cidade. Piracicaba contava com cerca de 30 mil habitantes na ocasião. Os desejos acabaram não atendidos com o passar do tempo ...

A cápsula tenha receita do dr. Honorato – além de professor, ele era médico – para acalmar os nervosos. Também foram deixadas fotografias inéditas até novembro passado. Muitas delas curiosas. Uma das cartas escritas pela jovem Aracy de Almeida comenta sobre a moda do piracicabano que, a exemplo do resto do país, tinha forte influência da França (o inglês só teve sua participação cotidiana no Brasil após a Segunda Guerra Mundial), na qual predominavam vestido longo para mulheres e ternos para os homens enfrentarem o calor que por aqui ultrapassa aos 35 graus em pleno verão !

Raridade foi encontrar um original de Archimedes Dutra na cápsula, em papel timbrado da escola com o esboço do perfil de um crânio. Como deve ter se deliciado os historiadores ao abrirem esta caixa !!!

Piracicaba respirava ares cosmopolitas em 1922, equiparando-se a Nova Iorque ou Rio de Janeiro. Pelo menos é o que diz carta de Alzira de Souza Gabbi (4º ano), endereçada ao atual prefeito da cidade, encerrando com uma interrogação: “conterrâneos de 2022! A fantasia idealizada pela minha imaginação ter-se á realizado? Oxalá que sim!”.

O presente está aí. Que tal comparar com o que era esperado cem anos atrás ? Boas festas de virada de ano !  

Artigo publicado no Jornal de Piracicaba de 28 de dezembro de 2022

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Fantasmas do passado e do presente

* Edson Rontani Júnior

Acordo assustado com o primeiro badalar da madrugada do sino da Catedral de Santo Antonio. Ensonado, abro os olhos. Vejo uma presença estranha em meu quarto. “Que faço?”, pensei. Será que eu continuava dormindo ou isso fazia parte real do meu sonho?

“Olá ! Sou o espírito do Natal passado”, me disse numa voz lânguida. Pronto ! Estava eu viajando nas páginas do clássico de Charles Dickens quando, de forma nada sorrateira, o Natal passado me leva lá por volta de 1690. “Aqui é a cidade que vocês no futuro chamarão de Piracicaba”. Estranho tudo. Era só matagal. Sesmaria dada a Pedro de Morais Cavalvanti que nunca ocupou a região. Passeamos pelo lado direito de um rio. A natureza em sua mais bela exuberância. Animais e mato. Sem a presença do ser humano. Por décadas a região ficou assim, ora servindo de entreposto por aqueles que buscam destinos como Itu ou as minas de ouro de Cuiabá, entre outros.

Num grande salto, o fantasma passado me leva para quase 50 anos depois. Era 1767. Encontro-me com um certo capitão denominado de povoador. Homem ranzinza, bravo e autoritário. Estava em briga com os religiosos. Tentava habitar uma vila.

Evidente que ninguém podia nos ver. Nem eu nem o fantasma do passado. Me senti como se fosse o próprio Ebenezer Scrooge, quando a nossa frente passa Antonio Pacheco da Silva, sargento-mor de Itu, com uma lista feita a mão, talvez escrita com bico de pena, com aquelas tintas que borram com o simples passar dos braços suados. Foi aí que descobri para o que servia o “mata-borrão”... Pacheco se aproxima e conversa com o capitão, um tal de Antonio Correia Barbosa: vos lhe apresento o censo de Piracicaba: “crianças do sexo masculino desde a primeira idade até 7 anos = 37; crianças do sexo feminino da mesma idade = 26; rapazes desde 7 anos até 15 = 21; raparigas desde 7 até 14 = 17; homens desde 15 a 60 = 61; mulheres de 14 até 50 anos = 61; velhos de 60 anos para cima = 3; velhas de 50 anos para cima = 5. Total - 231 habitantes. Fogos (casas) – 45”.

Rapidamente, voamos por décadas mais tarde e vemos a cidade receber a denominação de Vila Nova da Constituição. Justa – na época – homenagem à Coroa Portuguesa que elaborava nova Constituição para o país ibérico. Como o tempo e o espaço eram curtos naquela noite, o fantasma do passado me apresenta uma série de fatos e pessoas as quais não conheci fisicamente mas ouvi muito falar e cujas histórias li em algum lugar ... Luiz Dias Gonzaga, Honorato Faustino, Mario Dedini, Luciano Guidotti, Mazzola, Alberto Vollet Sachs, Caetano Rosa, Castro  Mendes, os Dutra, os Chiarini, os Gurerrini, alguns barões ... Me apresentou até o primeiro prefeito da cidade, um tal de José Machado, que não tem nada a ver com aquele que você está pensando .... Tanta gente que fez parte da cidade, semeou um campo fértil do qual muitos hoje desfrutam.

Bléim, bléim ... Acordo assustado novamente. O segundo badalar da madrugada me assusta. Pensei que tudo tivesse sido um sonho. Viro o rosto para o criado-mudo e vejo uma figura, tipo bonachão sentada. Pensei ser o fantasma da Natal presente. “Sou o fantasma do Natal presente”, disse. Eita madrugada longa ! Cadê aquele matagal no entorno do rio ? Cadê aquela vastidão verde que vi com o fantasma passado? “O ser humano ... Mais de 90% daquela mata foi consumida pelo ser humano nestes 255 anos”. Me calo. A consciência dói. Talvez por isso que faz tanto calor na cidade, como bem atestamos no dia a dia. Dos 231 habitantes vamos para quase 420 mil pessoas na cidade. Outras coisas me foram apresentadas pelo fantasma do presente. Prefiro ficar quieto, pois ainda estava ensonado e não sabia se aquilo era realidade ou estava eu em devaneios pelos braços de Morfeu...

Caio no sono de novo. Terceiro badalar do sino da Catedral. “Pronto ! Lá vem o fantasma do futuro”, pensei. Enfio a cabeça embaixo do travesseiro e me recuso a levantar. Afinal, futuro a gente constrói ... ou foge dele ...

Publicado no Jornal de Piracicaba em 14 de dezembro de 2022 e na Tribuna Piracicabana de 24 de dezembro de 2022

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Memórias de infância

Edson Rontani Júnior, jornalista

 

Nada como ter sido criança nos anos 1970 e não esquecer a doce recordação que traz Piracicaba daquela época. São várias as lembranças e a nostalgia floresce à memória. Uma das lembranças, por exemplo, é a loja do seu Passarela, situada ao lado do Cine Politeama, em plena praça José Bonifácio, próximo à esquina com a rua Moraes Barros. Era o Willy Wonka piracicabano. E não apenas de chocolates, mas com imensos baleiros em várias prateleiras, com todo tipo de guloseimas que comprávamos antes de ver um filme na telona.

Foi tradição nesta mesma década o passeio às lojas da rua Governador Pedro de Toledo. As vitrines geravam concursos de decoração, comunicação assertiva e atraíam as famílias nas tardes de sábado que as visitavam para conhecer as novidades da moda ou dos eletrodomésticos. Havia até o segurança responsável por baixar suas grades como também os desenhistas que faziam do vidro sua tela. As lojas tinham um vão onde o consumidor circulava mesmo com as lojas fechadas. Às 21 horas, cerravam-se estas portas. Antes de voltar para a casa, era possível, nos tempos mais frios, comprar pinhão quente vendido numa das equinas que minha memória recorda ser nas proximidades da rua Pudente de Moraes, em frente ao Clube Cristóvão Colombo.

“O ‘seu’ Armintos recebeu novos brinquedos...”. Creio ter ouvido isso lá por volta de 1975 ... 76 ... O dono da Casa Raya estava sempre à busca de novidades para o dia das crianças e para o Natal. Sua loja, a Casa Raya, situava-se ao lado da sede do Jornal de Piracicaba, na rua Moraes Barros. Lá por volta de 1974 tornou-se icônico o Papai Noel colocado em uma bicicleta ergométrica pedalando através de um mecanismo inovador para a cidade. Muita gente ia fazer suas apostas de loterias e levava os petizes para admirar o velho São Nicolau. Anos depois, o “seu” Armintos construiu uma loja atrativa para os olhos das crianças e nem tanto assim para os bolsos dos pais. Situava-se bem em frente a sede anterior, na própria Moraes, onde encontra-se hoje o estacionamento do Santander. Ali foi que ganhamos um rema-rema, brinquedo de locomoção que em muito ajudava o desenvolvimento muscular e respiratório das crianças. Os mais antigos devem ter à mente o que era este brinquedo enquanto os mais jovens poderão matar a curiosidade através de um buscador de internet. Brinquedo simples, que entretia, estimulava hábitos saudáveis e competições, mas totalmente sem as exigências de segurança de hoje em dia (não possuía nem freio!).

A infância era melhor ? Não posso afirmar. Eram outros tempos. Era um tempo em que o Natal era esperado para se ganhar uma espingarda destinada às crianças e que com uma leve pressão soltava uma rolha alocada em sua ponta e presa por um barbante. Tempos em que não tínhamos shopping center nem celular. A distração era a rua. E com segurança. Disputas de bolinha de gude ou andar de rolimã. Andar de bicicleta era um dos atrativos, com bicicletas básicas, e, muitas vezes sem marcha para facilitar o pedalar.

Em 1980, com a elaboração do calçadão na praça José Bonifácio, o poder público passa a criar a ocupação daquela área que anteriormente servia para a circulação e estacionamento de veículos. Foram criados os “Domingões” pela COOTUR – Coordenadoria de Turismo. Aos domingos de manhã e tarde, monitores da secretaria faziam atividades físicas, promoviam disputas de xadrez e outras ações, hoje desenvolvidas em locais como a Estação da Paulista e Parque da Rua do Porto. Outra opção me vem à memória eram as “sessões zigue-zague” do Cine Rivoli, com meia dúzia de curtas do Tom & Jerry e outros personagens.

O tempo mudou. A evolução trouxe a mutação natural da sociedade. Os dias são outros. Nostalgia é algo de quem tem certa idade e vivência, mas nunca deixa de ter um espírito infantil. Se você é assim ... feliz dia, criança !

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 12/10/2022 e na Tribuna Piracicabana de 15/10/2022)