Páginas

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O fanzine brasileiro

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

De passatempo a ícone da comunicação autoral e alternativa. Assim notabilizou-se o primeiro fanzine publicado no Brasil que, no último dia 12 de outubro, completando seus 59 anos. Como brincadeira de gente grande, o fanzine “Ficção” surgiu para preencher a lacuna entre os fãs das histórias em quadrinhos no final de 1965, numa época de ebulição do mercado editorial brasileiro em que desfilavam grandes editoras que propagavam a nona arte, como O Cruzeiro, Ebal, Vecchi, La Selva, Lord Cochrane, RGE, Bloch e muitas outras que faliram ou se fundiram com multinacionais.

Publicação feita no fundo do quintal e nas horas vagas, o “Ficção” não tinha pretensão de ser o primeiro fanzine do país. Foi lançado como “boletim” e apenas em meados dos anos 1970 recebeu esta denominação por estudiosos em comunicação. Não pretendia ser um marco ao catalogar tudo o que foi lançado no mercado de quadrinhos. Era um delicioso passatempo no qual o funcionário público do estado de São Paulo Edson Rontani se dedicava para falar sobre sua maior paixão.

Tem seus antecedentes. Isso nos anos 1940 quando foi impulsionado pelos seriados de cinema produzidos pela Republic Films, os quais apresentavam os heróis da era dourada dos quadrinhos como Flash Gordon, Batman, Superman, Zorro e tantos outros personagens, hoje sob posse da DC Comics e da Marvel Comics. Estes seriados eram exibidos nos Teatro Santo Estevão e no Teatro São José. Rontani em companhia de seu amigo Oswaldo de Andrade eram tão fascinados em reter estas memórias que criavam seus próprios gibis desenhados a mão e distribuídos entre os amigos. Assim propagavam as emoções vistas na tela.

Esta paixão fez com que anos mais tarde houvesse a necessidade de se profissionalizar e procurar pessoas – fora de Piracicaba – para conversar sobre quadrinhos. Cria-se o “Ficção”, impresso em mimeógrafo, com páginas grampeadas, envelopado e enviado pelos Correios. Recebiam esta publicação grandes expressões da época como Adolfo Aizen, Maurício de Souza, Lyrio Aragão, Jô Soares, José Mojica Marins (o “Zé do Caixão”), Gedeone Malagola e muitos outros. Maioria desconhecidos pelo público que surfa pela internet.

“Ficção” circulou até o início dos anos 1970, período em que professores, comunicadores e estudiosos perceberam seu pioneirismo na comunicação alternativa e autoral. Estabelecia-se então o primeiro fanzine publicado no Brasil, algo ainda reverenciado nos dias atuais.

Os primeiros registros do fanzine são datados dos anos 1920 nos Estados Unidos e hoje – em pleno período de avanço tecnológico digital – ainda é feito tanto lá fora quando no Brasil, de maneira artesanal e com muita paixão. Não é a toa que fanzine é a união das palavras fanatic (fã) e magazine (revista), ou seja, a revista feita pelo fã.

Produto genuinamente piracicabano, terra tão cheia de cultura e com grandes revelações, o fanzine vem sendo reverenciado neste mês por chegar aos seus 59 anos, com atividades realizadas em universidades e republicações que serão feitas em todo o país. Não faltaram manifestações no último final de semana. As mídias sociais digitais, inclusive, impulsionam para que isso se torne mais evidente. É referência inclusive em estudos científicos, embora desconhecido na terra natal de seu autor.

Como passatempo, virou marco na comunicação. Talvez porque seu criador nunca pensou em fazê-lo um trabalho pioneiro - procurava o meio e nunca o fim como reconhecimento, para colher sua devida colocação na arte nacional.


quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Castanho

 


Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

“Sou um comerciante da escrita”, disse certa feita Monteiro Lobato. Isso resume que, além de ter uma língua ácida, provocativa e lúcida, fazia das letras um negócio. Soube bem negociar e fazer dinheiro com tudo que colocou no papel. Fez carreira e fortuna com seus livros lançados numa época em que a imaginação vinha da cabeça do leitor, alicerçada por aquilo que ele discorria nas folhas de livros e jornais.

Ainda não tínhamos a concorrência do rádio e da televisão. Éramos educados e entretidos também pela escrita. Pelo menos uma pequena parcela do país, já que por décadas e décadas, o Brasil formado por pessoas analfabetas. Isso mesmo. A preocupação com o aprendizado da leitura ocorreu a partir de meados da metade do século passado. Vamos lembrar que o ensino educacional até os anos 1930 era feito em francês e até os anos 1960 as missas eram rezadas em latim. Isso mesmo. Aqui no Brasil. Censo de 1920 mostrava que 71% da população brasileira era analfabeta.

O hábito do conhecimento estava entre a classe mais abastada que enviava filhos para os Estados Unidos ou países europeus para graduação em faculdades. O ensino público gratuito, inclusive para adultos e moradores da zona rural, torna-se obrigação do Estado com a Constituição de 1934. Antes, apenas afortunados poderiam pagar para deixar seus rebentos em escolas particulares, externatos ou internatos ou ainda ter professora particular em casa.

Foi aí que Lobato surge num cenário vazio. Foi nosso Júlio Verne, se assim os leitores me permitem comparar, pois utilizou ao máximo da imaginação para criar personagens inverossímeis em situações onde apenas a imaginação podia chegar, quebrando conceitos físicos e sociais. Escreveu uma produção invejável. Fez das crônicas livros de coletânea como “Urupês” cujos capítulos saíram na “Revista do Brasil” e no “Estado de São Paulo”, dando base para nosso caipira Nhô Quim.

Soube negociar seus direitos autorais pois os livros vendiam como água. Isso se utilizarmos as três primeiras décadas do século passado. Foi um exímio e habilidoso espadachim com sua caneta bico de nanquim ou máquina de datilografar, deixando no papel suas reinações que criaram o conceito de um folclore ativo e participativo do imaginário popular. Até então, Cuca não era um dragão verde. Era o dragão que São Jorge combatia na lua, segundo tradições seculares. O jacaré só se esverdeou nos anos 1970 quando virou seriado na TV Globo.

Herdou tudo que seu avô, Visconde de Tremembé, cultivou durante a vida. Não teve vida fácil, claro, mas foi ousado em investir no mercado literário através das Editoras Globo, Cia. Nacional de Livros e Melhoramentos. Quer aguçar sua curiosidade ? Leia Lobato. Assim vendeu e vendeu e vendeu suas obras. Veio buscar petróleo em Águas de São Pedro e Charqueada. Vã Investida. Mas tornou-se notório pelo teor educativo e lúdico de sua obra.

Desde sempre ouço falar que ele divide o reinado com o piracicabano Thales Castanho de Andrade. Ambos pais da literatura infantil. Mas creio que isso seja orgulho apenas de nós piracicabanos. Cada qual teve seu papel na literatura brasileira. Thales viveu 87 anos (1890/1977) e Monteiro 66 anos (1882/1948). Talvez – há quem discorde – Thales não tenha o tino comercial de Lobato, não tenha sido empresariado como este ou não tivesse amigos como a família Mesquita, dona do jornal “Estadão” onde publicava e dirigiu sua redação. Thales, no romance “Saudade”, cuja terceira edição foi publicada pelo Jornal de Piracicaba em 1922, no centenário da Independência, é uma obra de arte inspiradora para a vida juvenil de então, permeada por desenhos icônicos.

A questão não é dizer quem é o melhor, que tem maiores obras ou quem será sempre lembrado. Piracicaba com certeza elegerá Castanho como um dos principais escritores, embora tenha seu nome esquecido até mesmo em setembro, quando a primavera chegou e ele comemoraria 134 anos de nascimento.

Chegando ao período de halloween, onde redes supermercadistas e escolas de inglês já estampam caveiras e abóboras na mais pura importação do folclore anglo-saxônico, fiquemos com a nossa cultura e saudemos nosso caipiracicabano Castanho !


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

O fim estava próximo

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Ainda de setembro de 1932, jornais de Piracicaba traziam ânimos aos conterrâneos que empunhavam armas pela causa constituinte na Revolução iniciada em 9 de julho daquele ano. Eis que em 2 de outubro, as lideranças paulistas cedem e firmam armistício com as forças federais de Getúlio Vargas. Acaba o último conflito armado em solo brasileiro movido pelos paulistas que exigiam uma nova Constituição, a qual viria dois anos depois.

O fim do levante civil pegou todos de surpresa. Em 2 de outubro de 1932, jornais locais – O Momento, Gazeta de Piracicaba e Jornal de Piracicaba – ainda traziam artigos para elevar o moral dos cidadãos que por aqui se dedicavam aos voluntários piracicabanos. Eram duas frentes: as dos piracicabanos que foram ao conflito armado e os piracicabanos e piracicabanas que aqui ficaram e atuavam como cozinheiros, enfermeiras, costureiras e outras formas de mão de obra para garantir o abastecimento das tropas. A partir de 3 de outubro, nenhuma nota mais foi publicada sobre a Revolução. Pudera ! Com seu fim, o estado de São Paulo passou a sofrer retaliações com a deportação para Portugal dos líderes que estavam na capital paulista. Começavam as retaliações, os julgamentos questionáveis, o medo social ...

Por volta do dia 12, pequenas notas nos jornais faziam referências aos piracicabanos que retornavam aos seus lares. Há depoimentos de que alguns que pegaram em armas pensando em conseguir emprego no caso da vitória paulista. Triste realidade, pois, a cidade afundava-se com a falta de insumos desde a farinha para o pão ao combustível para os veículos. Era necessária uma reconstrução local. Não a toa, o comércio se fortaleceu encontrando a necessidade de união criando sua associação comercial exatamente em julho de 1933, um ano após o início da Revolução.

Jornais locais passavam a ouvir os piracicabanos que retornavam. Alguns acusavam companheiros como pode ser visto nas páginas dos matutinos de então, com direito a réplica, tréplica, quadruplica e assim por diante, num incessante bate-boca popular. Houve manifestações, missas em homenagens aos falecidos e constituição de comissões para criar o jazigo do Soldado Constitucionalista no Cemitério da Saudade. O Monumento na Praça 7 de Setembro, só viria no dia 6 de setembro de 1938.

O sentimento, a honra a honestidade eram diferentes na época. Pode notar-se isso na carta de Antonio de Mattos, pertencente à Coluna do Ten. Cel. Romão Gomes: “Eu recusei promoção a sargento porque acho que não tenho competencia. Quero servir a S. Paulo, como soldado mesmo” (Gazeta de Piracicaba, 28/09/1932).

De 30 de setembro a 4 de outubro, silêncio geral. A Gazeta de Piracicaba em 5 de outubro traz mensagem de moradores de Campinas que se refugiaram por aqui, agradecendo a hospitalidade, pois a cidade foi bombardeada pelo ar e em Piracicaba encontraram a paz neste período turbulento. No agradecimento, acreditavam que estava no momento de retornar para a cidade natal.

Dia 6 de outubro, também na Gazeta: “Começam a chegar os primeiros legionários do Ideal, os soldados conscientes da Liberdade, que deram tudo o que podiam dar para reintegrar a Patria na communhão da Lei, da Justiça e do Direito”.

Moral elevado: “E elles chegam – nos olhos o brilho de um enthusiasmo que não esmoreceu – para o aconchego carinhoso da família, para o convívio acalentador dos amigos. Piracicaba, berço do civismo, cidade tradicional que sempre foi vanguardeira nos grandes movimentos de opinião que visaram engrandecer o Brasil, Piracicaba, meiga e carinhosamente recebe com flores os seus filhos queridos, que sempre a fizeram grande e respeitada. Uma multidão incalculavel, toda a sua população, espera nos gares das nossas ferrovias a chegada dos comboios que conduzem os phalangiarios heroicos e bravos da mais nobre elevada causa que jamais se agitou no scenario da nossa vida politica. Partiram sob o olhar maternal e confortados pelo enthusiasmo quente da mãe carinhosa que, agora, no seu regresso – que é glorioso como foi a sua partida – os recebe entre abraços e acclamações. Piracicaba, altiva e patriota, ainda uma vez é digna das sua tradicções gloriosas”. Autoria desconhecida, da redação daquele jornal.


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Duzentos anos dos alemães

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Muito se escreveu sobre a Alemanha. Muito se falou sobre a escola de arquitetura Bauhaus, ainda hoje utilizada como exemplo internacional. Muito se falou sobre o consumo interno, com importações que abasteciam o mercado germânico. Muito se sabe, também, sobre o cinema alemão: tanto o expressionismo como o consumo das produções de Hollywood. A Alemanha era um dos – senão o principal consumidor de filmes norte-americanos – definindo produções e roteiros, além de exigir imediatas dublagens para o expectador alemão. Mas, aí veio a Segunda Guerra Mundial e tudo mudou.

O país foi dividido em dois entre 1945 e 1989: Alemanha Ocidental administrado pelos aliados, em especial os Estados Unidos, e a República Democrática (!!!) Alemã, administrada pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS ou União Soviética). Muito antes das mudanças políticas com a ascensão do 3º. Reich nos anos 1930, vários alemães deixavam sua pátria natal, muitas vezes pelas profundas crises econômicas ou, então, pelas constantes guerras na Europa Central ou no Leste do continente.

Duzentos anos atrás, a onda migratória foi estimulada pelo Império brasileiro que dois anos antes se tornara independente de Portugal. Era momento de crescimento e o “Novo Mundo” atraía esperanças tanto no sul quanto no norte da América.

Eis que nesse processo Piracicaba atrai a atenção de muitas famílias que firmaram residência, constituíram famílias e fizeram negócios.

São muitos deles, mas, rememorando ao léu Jacob Wagner, avô do artista plástico Renato Wagner. “Tio” Cecílio Elias Netto lembra que Wagner foi um dos primeiros cervejeiros locais. Um exemplo que segue hoje na cidade com microcervejarias como a Tutta Birra, Cevada Pura, Leuven e Dama Bier. Curioso é saber da revolta dos piracicabanos com o estouro da Primeira Guerra Mundial. Com isso os alemães se tornam perseguidos. Jacob que tinha sua produção na esquina das ruas Dom Pedro II com Benjamin Constant, era “boa gente”. Ao menos na concepção da horda revoltosa que pensou em acabar com seus barris de chopes. No último instante resolveram conter a raiva e voltaram para casa mantendo o estoque de Wagner de sua produção de água, lúpulo e malte. Salute ! Ops ... Skol ! Ou seria Prosit ? Fica aqui a ira do redator, pois, mesmo nestes 200 anos, Piracicaba não tem uma festa a altura para alegria dos convivas e beberrões a exemplo do vemos com a Oktoberfest.

Para não deixar em branco este bicentenário, o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, na última quarta-feira, recebeu, na sede da ACIPI, Carlos Alberto Labate, professor da ESALQ com amplo currículo e que falou de uma figura importante mas pouco conhecida pelos piracicabanos. Ele discorreu sobre a vida de Friedrich Gustav Briege, professor da Universidade de Berlim nos anos 1930 que trocou sua terra natal por ser judeu e antecipar o que ocorreria anos depois. Aportou em Piracicaba onde faleceu nos anos 1980. Foram mais de 80 anos dedicados à genética considerado como um dos pais da genética brasileira. Labate deixou claro que os estudos até então eram feitos no hemisfério norte e não existia embasamento científico para a genética nos trópicos. Briege revolucionou conhecimento e criou pupilos e teses pioneiras. Já o professor Labate discorreu sobre a vida de Briege de uma forma sutil, com detalhes imperdíveis cuja atuação merece um necessário resgate. Em breve no YouTube do IHGP.

Em seguida, outro resgate que merece ser tomado. A vida de Ernst Mahle, cujo pai foi criador e fabricante dos pistões Mahle, uma mina de ouro no cenário industrial. O cirurgião-dentista Raul Gobeth foi quem discorreu sobre este incansável alemão nascido em Stuttgart e que, no auge de seus 95 anos, é referência na música, orquestração, arranjos e óperas, entre outros. Me recordo de ficar vários minutos observando os cataventos que ele criava e expunha no jardim de sua residência na rua São Francisco de Assis, próximo aonde eu morava. Habilidades adquiridas na oficina de seu pai quando criança.

A imigração no Brasil e em Piracicaba é riquíssima. São pessoas que buscavam um novo mundo. Saíram muitas vezes sem malas, apenas com “a roupa do corpo”, passaram fome, deram suor e sangue pela luta de seus ideais. Deixaram história, e neste caso, foram perpetuados com o Bairro dos Alemães, uma das poucas, senão a única denominação geográfica na cidade em homenagem aos imigrantes. E tenham longa vida ! Prosit !

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 22 de setembro de 2024)


quinta-feira, 19 de setembro de 2024

De raspão

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Houve uma semana, no início dos anos 1990, em que os cinemas do Shopping Piracicaba – denominados de Cine Center – apresentaram um filme por dia. Foi uma sequência de obras esquecidas comercialmente. Estes filmes foram apresentados em várias partes do país como propaganda para o mercado do VHS que estava em alta. Os cinemas estavam situados na área de brinquedos, ao lado da praça da alimentação, depois substituído por um bingo.

Um dos cinemas do Shopping apresentou esta sequência cujo lançamento eu acompanhava pelos jornais locais. Eis que me deparo com um dos filmes de Frank Sinatra, rodado em preto e branco, que seria apresentado naquela semana. Se não me falha a tarde, foi apresentado numa quarta-feira às 14 horas. Lá fui eu ao Shopping. Era amigo do gerente, seu Silvio, pessoa boníssima, que na cidade representava o Grupo Paris Filmes, coordenado por Márcio Fraccaroli. Como eu escrevia críticas sobre lançamentos do cinema em um extinto jornal, tinha bilheteria liberada. Cinéfilo desde criança, era um êxtase ver um filme preto e branco na telona, coisa rara naquele período. Os filmes antigos estavam sendo colorizados e exibidos na TNT ou vendidos em VHS na intenção de introduzir antigos clássicos de boa bilheteria ao gosto do público jovem. Não deu certo.

Muito bem. Na plateia, eu mais um casalzinho apaixonado que não botou os olhos na tela, em momento algum. Eu delirava ao ver Sinatra em close numa telona.

Não foi um dos melhores filmes de Sinatra. Ele sequer cantava. Mas a história de “Sob o domínio do mal”, rodado em 1962 pelo diretor John Frankenheimer – autor dos principais thrillers dos anos 60 e 70 –, é no mínimo curiosa. A obra foi tirada de circulação por cerca de 30 anos. Motivo: ele, como veterano da Guerra da Coreia, tinha a missão – inconsciente – de matar um senador. Meses depois, a trama se tornou real com o assassinato de John Kennedy, em novembro de 1963. Para evitar que o filme inspirasse atitudes similares ou fosse acusado de ter sido o motivador do crime contra o presidente dos Estados Unidos, resolve-se tirá-lo das projeções. Ostracismo. Voltou, como relatei anteriormente, como um pseudoclássico, já sem seu sucesso inicial.

Sinatra era um soldado norte-americano na Coreia que foi capturado e nele fizeram tamanha lavagem cerebral ele agia como um robô programado, agindo como um doce com amigos e animais, mas com intenção de cometer uma série de más ações.

Em 2011, o mote volta à tona, desta vez na televisão com o seriado “Homeland”, com oito temporadas. Porém, na primeira, um oficial da CIA é capturado no Iraque e retorna aos EUA como herói. Porém, ele teve a missão para que, numa das homenagens que ele receberia, entraria num bunker com o presidente norte-americano e deveria acionar um explosivo que levava ao corpo. Não detonou – desculpem o spoiler – tanto que o seriado levou oito longos anos para ser concluído.

Por que todo este relato ? Por recentemente ter ocupado as manchetes o tiro de raspão na orelha levado durante comício do candidato Trump. Os alvos sempre são políticos e muitas vezes presidentes.

Como curiosidade, assisti recentemente “O dia de Chacal”, 1973, de Fred Zinnemann, tendo desta vez como alvo o general Charles de Gaulle, presidente da França nos anos 1960. A trama é idêntica: uma pisada no pé na colonização da Argélia, motiva um grupo a tirar o líder governamental da presidência francesa.

Na vida real tivemos casos semelhantes como a morte do arquiduque Francisco Fernando, sucessor do império Austro-Húngaro, eclodindo a Primeira Grande Guerra. No Brasil, João Pessoa, governador da Paraíba, também foi alvo de homicídio enquanto cumpria seu mandato. Trouxe alvoroço na sociedade brasileira, estopim da Revolução de 1930. Na vizinha Argentina, Cristina Kirchner foi salva por um estopim que falhou, um ano atrás. A mesma sorte não teve o primeiro ministro japonês, Shinzo Abe, assassinado por uma arma caseira – armamentos são proibidos no país – alvo de atentado durante aparição pública.

Entre a realidade e a ficção, fiquemos com o filme de Sinatra. Menos dolorido.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Setembro repleto

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

A história de Piracicaba é cheia de surpresas e curiosidades. Com setembro chegando, fomos aos velhos alfarrábios saber o que ocorreu nos últimos séculos aqui na Noiva da Colina. Na verdade, não chegamos um tanto longe destes 257 anos, até porque a história vivida foi registrada apenas em atas manuscritas pela Câmara de Vereadores. Livros, diários, revistas ... eram raridades no século retrasado. Fotos, então, nem se pensar.

Mas vamos a alguns acontecimentos que hoje soam como curiosos, bebendo na fonte de pessoas como Leandro Guerrini, Samuel Pfromm Neto e almanaques de época.

Aliás, setembro fez com que Piracicaba tivesse referências importantes, muitas delas vindas após o centenário da Independência, ocorrido em setembro de 1922. Segundo cartas escritas por alunas da atual escola Sud Menucci, na cápsula aberta dois anos atrás, após ficar enclausurada por 100 anos, Piracicaba seria Shangri-la nos dias atuais. Triste ilusão ... dura realidade ... Uma das cartas diz que Piracicaba deveria ter dezenas de aviões voando pelo seu céu durante a abertura desta cápsula do tempo. Isso era esperado porque, em 1º de maio de 1922, pousou o primeiro avião em nossas terras. Coisa de outro mundo ! A cidade parou para receber tal aeroplano em área considerada como o primeiro aeroporto situada onde hoje encontra-se o campo do Ginásio da Esalq e a Igreja São Judas Tadeu. Na época, a carta, ainda trazia referência aos jornais da cidade. “Quem sabe daqui 100 anos existam muitos mais jornais que hoje para informar a cidade”, dizia – mais ou menos assim – uma das missivas. Triste realidade. No meio do caminho não tinha uma pedra, mas sim um Facebook, um Instagram, um What’s app ... E os jornais ... Bom. Próximo assunto !

Setembro também nos fez esquecer a praça 7 de Setembro, situada em parte de onde está hoje a praça José Bonifácio, que até os anos 40 era dividida em duas. Era o trecho onde situava-se o Teatro Santo Estêvão. Jogamos a mesma para o esquecimento. Mas a cidade deve à setembro sua mais extensa avenida (acho eu), a Independência, que começa na Governador e finda-se na rodovia Luiz de Queiroz. Tem também o Jardim Monumento, com praça e monumento ao centenário da Independência.

Ainda sobre a praça, lembramos do italiano Lélio Colucini, que, em 7 de setembro de 1938 teve inaugurado o seu Monumento ao Soldado Constitucionalista, hoje em área próxima ao seu local original após ser desmontado, removido e montado na praça em frente ao Cemitério da Saudade. Foi ele quem projetou e fez o monumento, bancado financeiramente pela população em homenagem aos piracicabanos que tombaram na Revolução de 1932. A placa de bronze com os falecidos foi furtada ano passado.

O mês também motivou a criação do “Circolo Meridional XX de Setembro”, em 1898, reunindo imigrantes europeus em especial italianos, cujas reuniões ocorriam no Hotel do Lago, também na praça 7 de setembro. Teve entre seus fundadores o jornalista Felipe Angelis, idealizador, em 1906, do jornal “Il popolo”, inteiramente escrito em italiano, exaltando o papel e as atividades destes italopiracicabanos. O Circolo, em 1905, uniu-se à Società Italiana di Mútuo Soccorso.

Também em setembro, no ano de 1950 temos a notícia do falecimento de Antónia Martins de Macedo, conhecida por Madre Cecília, a qual nasceu em 1852. Ingressou como irmã na igreja em 1895, quando tornou-se viúva, mãe de três filhos. Três anos depois fundou o Lar Escola Coração de Maria, inicialmente um asilo de órfãs. O processo de canonização da madre teve início em 1992.

Também foi em setembro, no dia 6, que fez-se a luz ! Aqui em Piracicaba, a energia elétrica torna-se novidade, com maquinário e lâmpadas importadas de Nova Iorque por Luiz de Queiroz. A iluminação não era pública e sim particular, até porque não existiam normas para isso. Isso ocorreu em 1893 quando Queiroz implantou postes nas proximidades de sua fábrica de tecidos, onde situou-se a Boyes na atual avenida Beira Rio. Era atração da população ver postes iluminando a noite neste trecho, retornando depois para casa na escuridão ou em trechos abastecidos por postes com lamparinas.

Leandro Guerrini lembra que “foram iluminadas as ruas Prudente de Morais, São José, Alferes José Caetano, Direita (Morais Barros), do Comércio (Governador Pedro de Toledo), da Glória, (Benjamin Constant), 13 de Maio e Santo Antonio - o bloco central das vias públicas da terra, circundando o Jardim Público”. Algumas lâmpadas foram quebradas por estilingadas, patrocinadas por opositores de Queiróz. Mas, aí, já é outra história. E viva setembro !

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Rico folclore

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Vertentes que expuseram o folclore no país seguem pensamentos de origens nacional e local. Muitas destas lendas, crendices, “causos” e contos migraram de tradições seculares provenientes dos povos indígenas e até de outros continentes. Um dos que aproveitou comercialmente o folclore brasileiro e ajudou na propagação de seu contexto foi Ziraldo, artista plástico falecido em abril passado. Em 1959, através da editora O Cruzeiro, criou a HQ “Pererê”, numa obra solo de suas tiras anteriormente publicadas na revista semanal que levava o mesmo nome da editora. Pererê era o saci, um apaziguador da natureza e dos amigos da floresta. Unia a fauna e flora tendo o meio-ambiente como pano de fundo.

Muito antes, também comercialmente, porém em texto e não nos quadrinhos como Ziraldo, Monteiro Lobato fez de personagens, como Jeca Tatu e os membros do seu Sítio, uma larga escala de referência na memória coletiva brasileira. Também bebeu na fonte do exterior. Sua Cuca, é uma feiticeira com cabeça de jacaré, que tomou contornos físicos na série da Rede Globo na segunda metade dos anos 1970. Mas, na verdade era uma variação do dragão combatido por São Jorge na lua, a Coca, personagem do folclore português utilizado nas seculares apresentações de Corpus Christis e “importada” pelos colonizadores para a cultura brasileira. Coca – cabeça ou cuca – também é referência na tradição folclórica da Espanha e no Halloween norte-americano: é aquele espantalho com cabeça de abóbora !

Entre os expoentes locais, aqueles considerados por “raiz”, tivemos vários nomes, que infelizmente estão sendo esquecidos ou substituídos por tradições de outras regiões do país ou até pelos estrangeiros que hoje ajudam a povoar Piracicaba que, com seu crescimento industrial, está recebendo culturas europeias, norte-americanas e asiáticas. Hoje é comum ver adereços de halloween nas residências, nos condomínios, no comércio ... algo incomum até a virada do século passado.

Por aqui, debruçaram sua sapiência para catalogar e expor estas tradições folclóricas pessoas como João Chiarini, Thales Castanho de Andrade, Alceu Maynard, Hugo Pedro Carradore ... e tantos outros. Piracicaba chegou a ter seu Centro do Folclore em imóvel situado à rua Boa Morte que, tombado, possui apenas sua frente restaurada e ao fundo ... um estacionamento. Mas nada de saci ou cuca. O Centro era responsável pela preservação e difusão de expressões como o cururu, a moda de viola, a congada...

No início do século passado, tivemos como um dos principais expoentes Francisco Damante (1895-1927) que, ao longo de três décadas vida, publicou seus estudos sobre as tradições no “Estadão”, “Tico-Tico”, “A Cigarra” e “Vida Moderna”. Costumes, festas e tradições também renderam livros próprios que necessitam de uma releitura e ou republicação.

Piracicaba tem o dever de cultuar e colocar em seus panteões duas personalidades: Alceu Maynard de Araújo e Waldemar Iglesias Fernandes. Viveram outra época: aquela da imaginação, naquela habilidade que Spielberg e Hitchcock levaram ao cinema: assustar sem mostrar o motivo do susto. Nos escritos de Lobato imaginava-se a Cuca. Na TV, ela tomou forma. Iglésias, é, inconteste em minha opinião, o pai dos estudiosos em folclore. Tem livros que precisam não de releitura e sim serem relidos, tamanha sua contribuição para nossa cultura.

Alceu Maynard também é um ilustre piracicabano que teve longa obra sobre o folclore desde livros até filmes, alguns sendo restaurados pela Fundação Itau e Cinemateca Brasileira.   

Muitos nomes surgiram no século passado. Basta olhar o sempre atual “Dicionário de Piracicabanos” (Editora IHGP), de Samuel Pfromm Neto. Não se pode dizer que há unanimidade nos nomes. O certo é que cada qual estudou costumes e tradições de uma forma. Forma esta que, assim como Saci, a Cuca e outros, não assustam mais a molecada que está acostumada a dormir assistindo Chucky e variações como “Um lugar silencioso”. A internet expôs medos de uma forma tão aberta que ele não provoca mais arrepio.

 


quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Efemérides de agosto

Edson Rontani Júnior, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Foram muitas as idas, lá nos anos 1970, à Farmácia do Povo, à Agência de Revista Cury e Agência Gianetti buscar os famosos almanaques anuais. As três empresas aliás, ficavam próximas uma da outra, num raio máximo de 300 metros, perto ou na própria praça José Bonifácio. Essas idas hoje vivem presas ao passado.

Mas isso era motivo de uma incansável busca para matar a curiosidade ao estilo de conhecimentos gerais, diferente do que temos hoje com o buscador Google que nos traz tudo mastigado, sem esforço para que coloquemos a “massa cinzenta” para trabalhar, motivando à época um raciocínio aprofundado que hoje é jogado à berlinda.

Os almanaques de farmácia traziam as fases da lua, a época cerca de pescar, o que plantar em determinado mês, dias propícios para cortar cabelo e muitas anedotas. Santa ingenuidade ! Algo que hoje não faria arrepiar nem os pelinhos do braço de uma criança. Mas os mais vividos terão, com certeza, um ar de nostalgia ao lembrar do cheio da tinta destes almanaques. Digamos assim, era uma cultura inútil, mas gostosa de se cultivar.

Com o passar do tempo, o chiclete passou a perder o sabor, o cheiro de pastel nos enjoa, o saudosismo passa a ser uma folha do diário a cada amanhecer, as dores começam a aparecer e as idas à farmácia são mais constantes. Deixo claro aqui que estas idas são para comprar remédio, pois nem mais existem os almanaques que aqui relato. Aliás, muita gente era envolvida em sua confecção. Desde grandes pensadores como Sérgio Porto até Aurélio Buarque de Hollanda, entre outros. “O Guia dos Curiosos”, de Marcelo Duarte, reviveu isso nos anos 1990. Teve reedições e até site para aprimorar o antigo conhecimento analógico ao mundo digital.

Muitas destas curiosidades foram estampadas nas páginas deste JP de 1989 a 1997 e depois de 2002 a 2008 com a curiosa página “Você Sabia?” veiculada no suplemento infantil “Jornalzinho”. Esta memória ainda hoje permanece viva para muitas pessoas.

Piracicaba, em seus 257 anos, também teve curiosos que registraram efemérides, fatos ocorridos diariamente numa vida individual ou social. Curioso é ver como no passado nos relacionávamos e como fatos chulos mereciam ser registrados.

Com agosto iniciado, consegui separar alguns desses fatos antigos registrados neste mês e por alguém anotados num caderno. Vamos a eles.

1º de agosto de 1861 - Pronto o matadouro municipal. Se localizava no começo da rua do Rosário, à margem do ltapeva, e ali ficou até 1911, mais ou menos, quando foi inaugurado o atual matadouro municipal, fora do perímetro urbano.

2 de agosto de 1784 - Termina o serviço de delineamento da povoação de Piracicaba. O terreno em que se delineou e estabeleceu a povoação foi doado pelo capitão povoador Antonio Correia Barbosa, e abrangia as terras desde a barra do ltapeva até sua cabeceira.

10 de agosto de 1842 - Por exposição do escrivão serventuário do tabelião vitalício de Sorocaba, sabe-se que a população da Piracicaba (Vila da Constituição na época), era de 10.291 habitantes.

12 de agosto de 1858 - Nasce nesta cidade o dr. Adolfo Afonso da Silva Gordo, talvez o político de maior projeção que Piracicaba deu ao país, no seu tempo. Formado em direito, foi deputado provincial. Proclamada a República, foi nomeado governador republicano do Rio Grande do Norte. Foi depois deputado federal e senador por São Paulo. Faleceu no Rio de Janeiro a 29 de julho de 1929.

15 de agosto de 1810 - Nasce em Itu o pintor Miguel Arcanjo Benício de Assunção Dutra. Cedo transferiu sua residência para Piracicaba, revelando seus preciosos dotes de ourives, organista, pintor, decorador, compositor e projetista. Tem seu nome ligado às igrejas da Boa Morte, de Santo Antonio, de São Benedito, ao teatro Santo Estêvão e à Santa Casa. Faleceu nesta cidade em 22 de abril de 1875.

19 de agosto de 1840 - Nasce no Rio de Janeiro o dr. Estêvão de Souza Rezende, Barão de Rezende. Cedo se radicou em Piracicaba e aqui deixou traços marcantes de sua operosidade e iniciativa. No Engenho Central, na Santa Casa de Misericórdia, na navegação fluvial, na câmara municipal, no jornalismo, muito batalhou pelo progresso de nossa terra. Como vereador, foi notável. Faleceu nesta cidade a 11 de agosto de 1909.

22 de agosto de 1876 - Nasce em Luca, Itália, o comendador Pedro Morganti, elemento de alta projeção no cenário industrial do Estado e figura intimamente ligada ao progresso de nossa terra. Era presidente da Refinadora Paulista S.A., proprietária dos engenhos de Monte Alegre. Morreu no Rio de Janeiro, em 22 de agosto de 1941.

E assim por diante. “Bora” escrever a história no dia de hoje ?!?

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 11 de agosto de 2024 e na Tribuna Piracicabana de 17 de agosto de 2024)