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domingo, 7 de abril de 2024

Pedras no nascimento e na morte

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

 

As pedras no caminho nos dão lição sobre a vida e a morte. Uma, pedra fundamental, foi colocada em 1º de abril de 1896, simbolizando a concretização de um sonho. Na ocasião, a pedra servia para demarcar o início das obras da Escola Agronômica São João da Montanha, embrião do que conhecemos hoje por ESALQ/USP.

Outra pedra, lapidar, encerrou o ciclo da vida. Se é que esta pedra existiu ... Esta vida foi interrompida numa viagem de navio nas proximidades da Costa do Marfim, continente africano. O destino do navio era a Europa onde um passageiro dirigia-se para Arbre, província da Bélgica. Assim outra pedra fez parte de Léon Alphonse Morimont, diretor da Fazenda São João da Montanha, falecendo em 1899. Engenheiro agrônomo, Morimont era um cidadão do mundo. Passou três anos em nossa Piracicaba (dezembro de 1893 a novembro de 1896). Não se tem certeza de que ele tenha sido enterrado com pedra lapidar e tudo mais. Na época, as viagens de navio eram longas e um falecimento à bordo poderia ocasionar no despejo do falecido ao mar.

Este trabalhou na França, Espanha, Itália, Portugal, Senegal e São Tomé. Atuou diante de vinhedos e cereais. Assumiu a direção da Fazenda São João da Montanha e elaborou o projeto do ensino técnico agrícola em 1894. Dois anos depois foi exonerado partindo para o continente africano. 

Léon começou trabalhar e adaptar a Fazenda em 7 de dezembro de 1893. Disse em relatório que "triste era o estado da fazenda (...) pontes caídas, casas em ruínas". Em seu projeto, havia um internato para 80 a 100 alunos. Seriam plantados cana, milho, batata doce, feijão, além alfafa e capim, arroz, mandioca além de experimento de fumo, algodão e café. Na horta repolho, tomate, alho-poró e sersefim.

A ideia da Escola Agronômica na cidade partiu de Luiz de Queiroz que passou uma boa temporada na Europa frequentando ambientes da zootecnia, da agricultura e da engenharia agronômica. O Brasil ainda estava se desenvolvendo, respirando ares vindos do império português. Mão de obra e material tecnológico ecoavam dos Estados Unidos ou da Europa. Então, era comum importar maquinários e pessoas, se é possível utilizar o termo importar para o ser humano. Morimont veio da Bélgica, assim como outros administradores que Queiroz trouxe para seus negócios locais.

Curioso é ver como a vida era curta no século retrasado. Queiroz e Morimont viveram 49 anos. Hoje, a “geração canguru” é estudada por sociólogos ou psicólogos para compreender o fenômeno de filhos que, na faixa dos 40, ainda vivem com os pais. Aos 16 anos, Queiróz já era empreendedor e visualizava a confecção como rendimento, além de trazer a iluminação elétrica de Nova Iorque para a Noiva da Colina !

A Fazenda e Escola Prática tiveram envolvimento de pessoas ilustres, hoje pouco reverenciadas, como Antônio Teixeira Mendes, português, um dos responsáveis pela transação de venda da área para a família Queiroz, em 1892. A Fazenda era vizinha de José da Costa Carvalho (o Marquês de Monte Alegre) e do brigadeiro Joaquim Mariano Galvão. Samuel Pfromm Neto levanta a hipótese da Fazenda ter sido de Manoel de Barros Ferraz, pai do barão de Piracicamirim, Antonio de Barros Ferraz.

O austríaco Ernest Lehmann administrou a Fazenda de novembro de 1892 a dezembro de 1893, porém desistiu a ideia de colocar em prática seus planos da Escola Prática por falta de recursos financeiros. Outro reverenciado é Augusto Cartagênova, secretário da então Fazenda São João da Montanha, junto a Morimont, conforme nota publicada na Gazeta de Piracicaba de 29 de outubro de 1895.

Marly Germano Perecin, em “Os Passos do Saber”, lembra que Morimont e Lehmman era adeptos a aproveitar o rendimento do trabalhador de origem escrava, submetendo-o a treinamento adequado para suprir as demandas da Fazenda.

Pedra por pedra, a história foi construída. E na atualidade é notório o trabalho de cada um que passou nesta secular escola agrícola de Piracicaba.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 07 de abril de 2024 e na Tribuna Piracicabana de 13 de abril de 2024)

A pedra no meio do caminho

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Foi no dia da mentira. Uma quarta-feira. 1º de abril de 1896. Começava a história da Escola Agrícola Prática, na Fazenda São João da Montanha, “distante” três quilômetros do Centro da cidade, conforme anunciado pelos jornais da época. Este era o embrião da atual Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, campus da USP em Piracicaba.

Foi neste dia que se instalou a pedra fundamental da Escola Prática Agrícola. Esta foi a data inicial de um sonho, sendo que sua elaboração começou anos antes e sua concretização só ocorreu anos depois. Para conhecer um tanto desta história consultamos Samuel Pfromm Neto, Marly Therezinha Germano Perecin, Manuel de Arruda Camargo e Mário de Sampaio Ferraz.

O espaço da Fazenda era de 131 alqueires de terra, ou 319 hectares “entre terras de cultura, pastos, mattos e capoeiras”, com predominância de “terra roxa”.

Durante sua estada na Europa, adquirindo conhecimento, tecnologia e socializando-se com pessoas, Luiz de Queiroz retorna a Piracicaba com a intenção de criar uma escola prática de agricultura. À princípio, pertenceria à iniciativa particular. Para tanto, adquiriu a fazenda de São João da Montanha, na qual planejou a área com plantas que previam construções de edifícios. Na ponta do lápis, Queiroz percebeu que a conta era mais alta e não teria recursos financeiros para colocar em prática o projeto. Jogou a ideia ao Governo do Estado, doando ao poder público tal fazenda São João.

Bernardino de Campos, presidente do Estado de São Paulo, em 17 de novembro de 1892, assina o decreto estadual 130 aceitando a doação da área para “educação profissional dos que se dedicam à lavoura”. Este, envia mensagem ao Congresso do Estado, através da Secretaria de Agricultura, com base na lei nº 26 (22 de maio de 1892), na qual o governo estadual tem carta branca para fundar uma Escola Superior de Agricultura com estações agronômicas e campos de experiência. Bernardino diz a iniciativa privada sofreria com o sacrifício pecuniário pela doação da fazenda, “em prol do ensino da agricultura, base da riqueza e prosperidade deste Estado”.

Houve desapropriação da área em benefício ao erário público estadual. A lei 193, de agosto de 1893, abriu crédito de indenização a Luiz de Queiroz pela cessão da Fazenda São João da Montanha. A dotação também previa destinação orçamentária para adaptação da área “ao fim que se destina”.

O Estado começa a executar o que previa o plano de adaptação das terras. O engenheiro Leão Morrimont estava à frente. As obras seguiram regulamente até que este foi dispensado em novembro de 1896, sendo substituído por Adolpho Barbalho Uchoa Cavalcante. Meses depois, decisão de Peixoto Gomide interrompe os trabalhos.

Área ganha, trabalho a ser colocado em prática, faltava a regulamentação do ensino agronômico no Estado. Eis que em 1899, é promulgada a lei 678 dando bases para o decreto 683ª, criando a Escola Agrícola Prática em 29 de dezembro de 1900. Cândido Rodrigues, então Secretário de Agricultura do Estado, assinou o decreto. Assim, a Fazenda de São João da Montanha passa por seus derradeiros anos, abrindo espaço para o que se propagou como Escola Agrícola.

Desta forma, a pedra fundamental é lançada. Era necessária adaptação da área, facilitada por uma topografia plana e regular, com facilidade de circulação de máquinas agrícolas. A maior elevação era de 66,60 metros acima na nascente do então Piracicaba-Mirim, ou ribeirão do Piracicamirim. O espaço “presta-se pouco á cultura do café, muito às de cana, milho, feijão etc, frutas e forragens diversas”, propagou-se à época. Também foram cultivados alfafa e algodão.

Em 3 de junho de 1901, a história é reescrita. A Fazenda São João passa a ser denominada Escola Agrícola Prática. Nesta data, são inaugurados os primeiros cursos da instituição em solenidade presidida por Candido Rodrigues, Secretário da Agricultura. E a pedra ? Onde estaria ?

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 3 de abril de 2024 e na Tribuna Piracicabana de 06 de abril de 2024)

sábado, 30 de março de 2024

Páscoa, tradições e outros

  Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

 

Norman Jewison foi um brilhante cineasta. Fez vários dos melhores filmes dos anos 1960 e 1970. Em 1971, levou para a telona o musical “Um violinista no telhado”, no qual a tradição é cantada e contada como um fardo para a família de judeus ortodoxos que vive na Rússia do século 1900. Uma das canções, com letra de Sheldon Harnick, é “Tradition”, ou seja, a tradição que assola as filhas do personagem principal interpretado pelo ator Topol. A tradição faz com que o casamento das meninas seja arranjado pelos interesses dos pais. Interesses, dotes, melhorias de vida ... Tudo isso espelha a tradição que ainda existe em muitos cantos do mundo.

Este enunciado serve para pensarmos na tradição cristã que estamos vivendo: a Páscoa. Oriunda do judaísmo, o renascer é uma tradição milenar. Embora muitos vejam apenas como um feriado, antecipando o final de semana. A tradição do passado dizia que a Sexta-feira Santa e a Páscoa eram dias santos de guarda. Me recordo que nos anos 80, tivemos um frustrado show de rock em Piracicaba estruturado por um ator global. Não deu certo. Escândalo ! Isso, pois, nestes dias, a penitência, o jejum, o silêncio deveriam imperar. Anos depois, quando labutava eu numa emissora de rádio local, noticiei que em São Paulo um padre havia liberado o consumo de salsicha na Sexta-feira da Paixão, data em que o jejum prega principalmente a ausência de carne nas refeições... Tradições que se foram com o tempo. Existem aqueles que ainda praticam tais situações.

Sou da época em éramos criados com simbologias, reconhecidas por um mero olhar. Me recordo, muito tempo atrás, quando ainda criança, ver que as pessoas enlutadas circulavam na rua com uma tarja preta próxima ao ombro, num dos braços. Era um simbolismo respeitado em homenagem ao ilustre falecido. Também me recordo que as famílias enviavam cartões de Páscoa ... Hoje, nem cartão de Natal integra a tradição suplantada pela tecnologia digital. Fazer o que ...

Certa feita, a costura de minha calça soltou-se. Buraquinho de no máximo cinco centímetros na lateral próximo ao bolso. Pedi aos meus pais para irmos para casa, pois aquele buraquinho me envergonhava. E hoje ? A tradição do bem vestir cede espaços às formas mais esdrúxulas, como o uso de tops, bustiês, calças rasgadas e recortadas e uso de agasalho tipo moletom em dias cujos termômetros chegaram a marcar 37 graus.

O padrão da tradição é não ter padrão. Este é o modismo. Quanto mais chamar a atenção, melhor. Mas isso não faz da pessoa a melhor do mundo. Muito menos o estilo clássico. Apenas chama atenção talvez por elogios, talvez para críticas. Quantos se expõem em mídias digitais suas vergonhas, suas conquistas, seus acidentes ou dancinhas ?

Tradições mudam. Muitas delas se enraízam em nossa mente e fazemos delas o nosso perfil, desde o tipo de sapato ou estilo de pentear o cabelo. No Japão, onde – para nós todos se parecem iguais – a juventude pinta o cabelo para que não se pareçam idênticos demais com os outros. Já percebeu isso ?

Dias destes, revendo um livro do início do século passado sobre a Escola Agrícola de Piracicaba, vi fotos de alunos com ternos em pleno campo de açúcar, algodão e alfafa. Muitos deles de cor escura. Imagino como era sentir-se dentro de um terno embaixo de um sol escaldante. Modismo europeu que se propagou por séculos no Brasil. Mas tempos atrás, sair para as ruas era um ritual de tradições. A melhor roupa, o melhor perfume, o melhor linguajar. Hoje, vemos as pessoas com meias e havaianas (ao mesmo tempo), crocks e outros vícios que se replicam. Até de pijama há alunos que vão para a escola. Embasbaquei quando vi tal situação numa escola do Centro da cidade. Deixamos de ser elegantes pela quebra de paradigmas por não querer seguir tradições.

Saíamos nas ruas para nos expor. Hoje estamos em casa publicando stories e tik toks com a tal “roupa de mendigo”, sem cara maquiada ou cabelo penteado. O êxodo urbano nos anos 1880 fazia com que as pessoas saíssem da zona rural para ir a cidade, ir à missa, visitar lojas ... Daí que surgem as vitrines no comércio, na intenção de criar desejo e entretenimento, numa boa sacada de marketing. Assim éramos até décadas atrás. A evolução quebrou conceitos e tradições. Mas uma tradição ainda não morreu: desejar a todos uma ótima Páscoa !

(Publicado no Jornal de Piracicaba em 31 de março de 2024 e na Tribuna Piracicabana de 2 de abril de 2024)

quarta-feira, 20 de março de 2024

Ano quatro

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Estranho um tanto ver alguém de máscara facial em locais públicos. O que foi obrigatório em 2020, hoje soa um tanto curioso. A pessoa está doente ? Pensamos. Olhando para trás, lembramos que nesta semana, quatro anos atrás as lojas entoavam um toque de recolher. Shoppings fechavam suas portas devido à um vírus que desde dezembro de 2019 assolava a China e depois espalhou-se rapidamente pelo mundo. A covid-19 nos apresentava apenas sinais de alerta.

Um ano atrás, a OMS declarou um afrouxar nas normas com o fim da emergência de saúde pública internacional. Mas, mesmo assim, não ficamos totalmente longe da doença. A pandemia ainda está em curso.

Eis que, em março de 2023, a doença me atinge pela primeira vez. Três dias na cama e cinco quilos a menos. A doença se espalha em meu lar. Preocupação. No início, eram pelo menos 15 dias de afastamento do ambiente social, quando não as intubações eram necessárias e duravam semanas ou meses, numa época em que vacina ainda não estava disponível. Se bom ou não, ela me atinge numa época posterior a isso, mesmo após aplicação de quatro doses contra a covid. Confesso que foi uma espécie de gripe da qual involuntariamente já experimentei anteriormente. Corpo mole, dor de cabeça, mal estar, febre, calafrios ... Deixa a gente imprestável. Sem vontade de nada. Quase uma semana sentindo-se inútil aos afazeres de rotina.

Hoje, quatro anos após conhecermos a síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV 2), revemos o passado e notamos quantas pessoas deixaram nosso convívio. Notei isso quando atualizei minha lista de telefones. Esse já foi ... Fulano nos deixou ... Nossa ! Que mundo louco ! E as incertezas de outros que foram precocemente além de pairar a dúvida quanto à eficiência das vacinas. Não é verdade ? Nas conversas com amigos, é comum ouvir : “será que ele não morreu por consequência da vacina?”.

Em 2020, as festas foram canceladas. O aniversário de meio século foi adiado, mesmo depois de tanto planejamento. A cidade parou. Apenas supermercados e farmácias funcionaram. Encontros demoram para acontecer e muitas vezes ao ar livre e uma pessoa bem distante da outra. Como a gente poderia imaginar que a respiração de outra pessoa poderia nos matar ?

Hoje, motivada pelo confinamento, a cachorrinha sabe que o delivery chegou ao ouvir a buzina da motocicleta e, mesmo que seja no vizinho, nos convida à ir a porta para saborear-se com um possível aroma de pizza ou qualquer outro prato gastronômico. A festa de aniversário brutalmente interrompida, neste ano, vem sendo planejada com convidados e mais convidados. Viva a vida ! E sem pensar no uso de máscara facial, apenas na felicidade do encontro com amigos e familiares.

Dizem que o passado nos ensina a não cometer os mesmos erros. Mas é difícil acreditar nisso. Este disco toca um lado só. E os erros se repetem, desrespeitando as gerações que nascem e morrem.

Cem anos atrás tivemos a pandemia da gripe espanhola. Parou tudo. Escolas, jogos de futebol, comércio ... a vida !  

Piracicaba não ficou distante desta pandemia. Importada da Europa durante a Primeira Guerra, ela deixou a cidade de quarentena, matando 88 pessoas e atingindo outras 4.178, em especial as residentes no Porto João Alfredo (Ártemis) e outros bairros então considerados como zona rural. A cidade tinha perto de 30 mil habitantes. O prédio da Escola Sud Menucci virou hospital e internações eram feitas nas residências dos adoentados.

Que tudo isso seja um exemplo para a humanidade.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 20/03/2024 e na Tribuna Piracicabana de 26/03/2024)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Correr atrás do tempo

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Este ano poderei cumprimentar uns poucos amigos que aniversariam em 29 de fevereiro. Ironia proporcionada a cada quatro anos. Mas, por que perseguimos tanto o tempo ? Ilusório ele é. Convencionalismo que nos ensinaram a agarramos após a Revolução Industrial, que criou o dia dividido em três fases de 8 horas para trabalhar, dormir e curtir a família. Algo tão ilusório quanto falarmos que estamos no ano 2024. Não se pode negar que estamos sim, porém da Era Cristã. A história do Mundo e do ser humano é mais antiga.

A contagem do tempo é universal e não vem de hoje. Curioso é ver o espanto de um amigo de meia idade quando falei sobre rotação e translação da Terra, algo que ele, pasmo, pareceu-me não saber do que eu falava. Didática aprendida no primário, nas carteiras do Colégio Barão do Rio Branco, estes movimentos regem nosso dia (e noite). Em 24 horas a Terra realiza o movimento em seu eixo, criando a rotação. Fontes indicam que esse movimento é feito em 23 horas, 56 minutos e 4 segundos. O movimento da Terra em torno do sol é conhecido por translação e dura 365 dias, 5 horas e 48 minutos, formando o ano. À quem descobriu isso, nossas láureas. A quem ouviu isso estupefato – como meu amigo – as batatas !

Para aproveitar mais a duração do dia, com o advindo da industrialização e da criação da luz elétrica – e com ela, a vida noturna – países implantam o “horário de verão”, adiando o relógio em uma hora evitando, assim, o excesso no consumo da energia elétrica. No Brasil, a mais recente reintrodução do horário especial de verão ocorre em 1985 no governo José Sarney. Mesmo período em que houve a antecipação dos feriados. A busca do tempo era para otimizar os dias úteis. Se um feriado ocorresse numa quinta-feira ele seria empurrado para a sexta-feira, evitando emendas. O mesmo ocorria com os feriados que caíam na terça-feira : eram antecipados para a segunda. Realmente isso ocorreu no Brasil.

Mas o tempo é ilusório. E nem nos damos conta disso. Até dois milênios atrás, os anos seguiam as fases da Lua. As estações, assim, caíam em épocas diferentes. Tivemos na Roma antiga anos com 304 dias e 10 meses. Em seguida, o ano passou a ter 355 dias em 12 meses. Mas a cada dois anos era preciso um 13º mês de 22 ou 23 dias para ajustar o ciclo solar ao calendário civil. Que bananada !

Surge, então, o calendário juliano, criado com base no que os egípcios já faziam. O ano passa a ter 365 dias, 12 meses (metade com 30 dias e outra metade com 31 – com exceção de fevereiro que tinha 29). Estudiosos chegaram à conclusão que o calendário teria 11 minutos a menos. Em outubro de 1582 cria-se o calendário gregoriano (o que seguimos atualmente) anulando dez dias do calendário anterior. A lógica do ano bissexto, era de que os anos terminados em 00 só seriam os bissextos aqueles divisíveis por 400.

O nome bissexto por si é uma corruptela em latim. O imperador Júlio César haveria ordenado “ante diem bis sextum Kalendas Martias”, ou “repetir o sexto dia antes de começar o calendário de março”. Fevereiro possui 28 dias pois dois dias foram tirados pelos romanos para serem colocados em julho e agosto em homenagem aos imperadores Júlio César e César Augusto. E assim caminhou a humanidade ...

Mais estupefato fiquei eu quando, em 1995, durante passagem a Piracicaba, o ator Mário Lago foi entrevistado na Rádio Alvorada A.M. e o locutor comentou : “o senhor interpreta muito bem o papel do desembargador Veiga na novela De corpo e alma”. Eis que este dispara ferozmente ao vivo: “queria o que ? Não comecei ontem. Faço teatro desde os anos 1930 ! Não sou criança”. Silêncio geral. Mas Lago, que era filho de Antônio de Pádua Jovita Correia do Lago – nascido em Piracicaba em 13 de junho de 1887 – e possuía determinado parentesco com Manuel do Lago, proprietário do Hotel Lago, ao lado do Teatro Santo Estêvão, esculpiu a máxima : “Eu fiz um acordo com o tempo. Nem ele me persegue, nem eu fujo dele”. E passemos o tempo com cultura !

(Publicado no Jornal de Piracicaba em 21 de fevereiro de 2024 e na Tribuna Piracicabana de 24 de fevereiro de 2024)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Carnavais e carnavalescos

 Edson Rontani Júnior, jornalista, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Acho um tanto quanto injusto ocupar estas linhas e falar de carnavalescos. O pecado de citar nomes é que muitos ficam de fora. E é comum eu encontrar com um ou outro conhecido e me dizerem: “você esqueceu de falar de tal coisa, de tal pessoa...”. A história é infinita, a memória não. O conhecimento também é expansível, hoje, graças à internet, na qual podemos buscar maiores referências além daquelas citadas. Isso é ótimo ! Pois aguça a curiosidade, nos faz movimentar a “massa cinzenta” e faz pensar com maior clareza.

Corro, portanto, não o risco de esquecer uma pessoa ou uma situação, e sim me afogar nas lágrimas de relembrar tanto de um passado que temos enquanto ser humano e ter na nostalgia uma forma de expressar um pouco daquilo que já foi realizado pelo Carnaval de Piracicaba.

Usemos por exemplo, o centenário do Esporte Clube XV de Novembro de Piracicaba que, em 2013, motivou o Carnaval oficial de rua e foi tema da Banda da Sapucaia. Um Carnaval não tão recente assim, mas que já evoca saudade. Falar da saudade é também falar de um tempo recente ... é falar do dia de ontem que já entrou na história. E é não se prender numa época específica, como o início do século passado, os anos 50 ou anos 70.

Um período em que era gostoso ver nos jornais e em suas colunas sociais as celebridades que em nossa terra marcavam presença num destes festejos. Muitas destas beldades clicadas pela lente de Cícero Correa dos Santos e cujas fotos eram expostas nas vitrines de clubes como o Coronel Barbosa. Época de entretenimento socializável em que as pessoas saíam às ruas e davam atenção ao que ocorria em seu redor. Período em que havia filas na Banca do “seu” Pilon atrás da Catedral para ler a capa e a última página de “Notícias Populares”, colocadas como atrativas para uma leitura que não acrescentava nada em nossa vida. Não sei ao certo qual ano era – poderia ter sido 1992 -, conheci e entrevistei Elke Maravilha numa coletiva de imprensa no Hotel Beira Rio, quando a mesma foi convidada pelo poder público municipal para abrir a apresentação dos blocos. Não haveria Carnaval de rua naquele ano.

A história tem carnavalescos como bem lembrou Pedro Caldari em um de seus livros sobre a Vila Rezende. “Armandinho Dedini tinha espírito alegre ... Escolas, creches, clubes de futebol, cordão carnavalesco, entidades assistenciais, pessoas carentes ou dificuldades... todos podiam contar com a sua ajuda generosa e incondicional”. Era uma espécie de mecenas da folia de Momo.

Maria Pepa Delgado é um nome esquecido. Mas, a piracicabana nascida em 1887, expôs o nome de nossa cidade no Rio de Janeiro, então capital federal, na década de 1900. Foram delas as principais marchinhas dos carnavais fluminenses da época, entre elas “O maxixe” lançado pela Odeon. Um sucesso nas paradas dos bolachões de 78 RPM.

Em muito me vem à memória os bailes carnavalescos realizados no Ítalo, atrás do Mercado Municipal. Não que eu participasse deles, mas ao presenciar a muvuca que se instalava na rua por ser passagem obrigatória para ir à casa de minha avó materna. O Clube Recreativo Ítalo Brasileiro surgiu em 16 de agosto de 1951, ocupando a Sociedade Italiana de Mutuo Soccorso, situada à rua dom Pedro I. Teve grandes eventos carnavalescos. Foi dirigido por Lélio Ferrari, Mário Dedini, Antonio Romano e Lino Morganti (o qual tem um busto no jardim de sua sede).

Samuel Pfromm Neto nos ensina que bailes carnavalescos ocorriam também no andar superior do Bar e Restaurante Comercial, de Fernando Lescovar, na virada das décadas de 1940 para 1950. Lescovar anos depois adquiriu o Restaurante Brasserie, por volta de 1953, explorando um delicioso espaço em frente a praça José Bonifácio até décadas atrás. O salão reunia foliões que comemoravam o Carnaval. Estava situado acima do Restaurante Comercial que por sua vez ocupava o andar térreo de onde está hoje parte da Galeria Brasil, mais precisamente o Edifício Georgetta Brasil.

Jamil José Netto foi outro envolvido com o Carnaval. Radialista e amante da boa locução, trocou sua natal Porto Feliz por Piracicaba onde presidiu a Ekyperalta em 1976. Tivemos também nossa força feminina no Carnaval. Maria Luiza Piza Oliveira e Silva, além de fundar, participava da Comissão de Frente da Equipe Lanka. São duas agremiações icônicas na Carnaval local. Alcides Pársia também merece sua participação no hall dos carnavalescos, sendo de sua autoria a marcha carnavalesca “Centro do Professorado Paulista”, de 1987.

Citado linhas atrás, Cícero Correa dos Santos era uma figura ímpar. Sua filha Célia Regina Signorelli foi uma das maiores expoentes do Carnaval local. Cícero era um exímio fotógrafo com seus registros impressos nas mídias locais. São incalculáveis quantos cliques ele tirou durante sua vida. Pfromm lembra: “graças à máquina fotográfica de Cícero, Piracicaba ganhou imagens valiosas de festas e acontecimentos do passado notadamente do (...) carnaval”. Fundou a Zoon-Zoon e nos desfiles anuais recebia homenagens das escolas de samba. Nascido em Rio Claro, só recebeu – para mágoa de muitos – o título de Cidadão Piracicabano após ter falecido. Nossas honras ...

 


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Clubes e teatros em Piracicaba

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Houve um tempo em que os clubes sociais serviam de passarela para a sociedade. Eram nestes que ocorriam os bailes, carnavais, casamentos, festividades... Muitas vezes, restritas à elite.

Até décadas atrás, famílias abastadas realizavam seus eventos familiares em clubes ou centros poliesportivos públicos da cidade, como o Coronel Barbosa ou o Ginásio Waldemar Blatkauskas. Não era ostentação. É que não havia outro espaço para abrigar centenas de pessoas na mesma ocasião.

Com o tempo, os Clubes Sociais adotaram também o nome Recreativo, oferecendo espaço a céu aberto, como quiosques, churrasqueiras, piscinas e outros atrativos.

Aos poucos, tivemos uma mudança na sua concepção. Tornaram-se acessíveis às diversas camadas sociais. Entraram em condomínios fechados que atualmente possuem piscinas, quadras de tênis e futebol, playground e ... olhaí de novo ! ... churrasqueiras coletivas. Piracicaba tem hoje os remanescentes daqueles clubes que outrora foram feitos para abrigar até dois milhares de pessoas. O Teatro São José chegou a ter dois mil assentos. Na esteira, surgiram os centros criados pelo Serviço S, como o Sesc, Sesi e Sest/Senat, cada qual para sua categoria profissional.

Num passado não tão remoto, foi possível curtir a piscina ou os carnavais no Nauti Clube Bela Vista, no bairro Itaperu-Guaçú, assim como pegar um bronzeado na piscina da sede campestre do Clube Coronel Barbosa em condomínio fechado logo após Artemis. E já que falamos da Rodovia Geraldo de Barros, por que não lembrar do Thermas Water Park, da família Andrade? Surgiu numa época em que os “Amigos” sertanejos estavam revolucionando a música brasileira, alavancados pela cerveja Bavária e pela Rede Globo. Fez sucesso. Abarrotou a SP-304 lá por volta de 1988 quando se apresentaram no espaço nomes como Zezé di Camargo e Luciano, Chitãozinho e Xororó e Leandro & Leonardo. Não era para menos. O engavetamento para acesso o Park era quilométrico.

Mas de um passado recente para um mais distante. Os clubes sempre deram o ar da graça em Piracicaba. De forma curta e grossa, o “Almanak de Piracicaba para o Anno de 1900” diz que em 9 de novembro de 1867 “dá o seu primeiro baile o Club Semcerimonia”. Isso, portanto, há 156 anos atrás. Na época, nem se sabia o que era o cinema, o rádio, a internet... As pessoas saiam de casa para buscar prazer, entretenimento e sociabilidade.

Os Clubes sempre foram pontos de encontro da sociedade. E não apenas para festividades.

No Teatro Santo Estêvão, citemos duas situações. A convulsão local na Revolução de 1932 teve nele seu ponto de concentração. Alberto Vollet Sachs secretariou a primeira reunião que conseguiu 200 voluntários para a frente de batalha, os quais partiram em 16 de julho de 1932. Não à toa, o Monumento ao Soldado Constitucionalista situa-se à praça José Bonifácio (então praça 7 de Setembro), de onde partiram os voluntários. Outra citação é que a Associação Comercial teve seu embrião discutido e criado no Santo Estevão, 90 anos atrás.

Ainda hoje reverenciado pela população, o Santo Estêvão tinha pinturas em seu interior que evocam o supra sumo da arte. Na reforma patrocinada pelo Barão de Rezende no início do século passado, Bonfiglio Campagnolli foi contratado para realizar os motivos decorativos de seu interior, unindo-se às obras anteriormente feitas por Joaquim Miguel Dutra. O Estêvão foi demolido em 1953.

Ele foi o primeiro cinema permanente da cidade. A partir de 1908 passou a ter exibições regulares, propriedade de José Claes. O cinema no início era de responsabilidade da Santa Casa, proprietária do projetor. Em seguida passou para Ribeiro de Magalhães e depois para Claes, tendo a denominação de “Theatro Cinema” de 1910 a 1914, quando passou a ser administrada pela Claes & Companhia.

A arquitetura também teve sua contribuição para clubes e teatros. Orlando Carneiro – requisitado profissional da construção – foi o responsável pelas obras do Teatro São José, Clube Piracicabano além de reformas da Santa Casa e do Hotel Central.

Os palcos locais eram tão movimentados que Piracicaba também “exportou” artistas. Uma foi Maria Pepa Delgado (1887/1945), que passou por muitos palcos locais tanto pessoalmente quanto pelo celuloide. Na década de 1900 era uma das principais artistas da Casa Edison do Rio de Janeiro. A lenda diz que chegou a ser confundida como se tivesse origem espanhola, mas era piracicabana da gema. Gravou cerca de 40 títulos de sucesso na época em que os discos traziam apenas duas músicas e rodavam em 78 RPM. Em 1908 estrelou com João de Deus o filme “Sô Lotero e Siá Ofrásia com seus produtos na exposição”. Uma curiosidade rara de se encontrar.

O teatro também foi onde o público estava. É o que ocorreu com o Circo Teatro Piranha de Waldemar “Piranha” Dias (1928/1992). Tinha no circo sua família a exemplo do que fez o Veneno, outro circense local. Esposa, filhas, genros e neta formavam a trupe que percorria cidades. Esteve ativo até 2003. E assim, o show deve continuar !


sábado, 27 de janeiro de 2024

Meus cães, meu passado e minha vida

 * por Edson Rontani Júnior, jornalista e amante de cães

– Força, amigão ! Você consegue !!! – disse diversas vezes ao Pancho, um boxer alemão com cerca de dez anos de vida. Diversas semanas antes ele se entregou para a morte, como se sentisse a partida de meu pai e logo em seguida a ida de sua companheira Xuxa, uma fox paulistinha que partiu devido a diversos tumores que se alastraram por sua cadeia mamária levando metástase para todo o corpo.

Foi assim que em agosto de 1997, o velho boxer se entregou para a morte. Um dia antes, ainda me lembro, ele correu atrás de uma bola, brincou comigo à noite, como se estivesse diante da felicidade. Às 18 horas do dia seguinte, ainda no trabalho, recebo o telefonema de minha mãe dizendo que ele não estava mais respirando. Aí terminou uma jornada iniciada dez anos antes e tomou-se uma decisão : “não teremos mais cachorro em casa, pois eles se integram à nós e, quando partem, deixam uma lacuna imensurável”.

Pancho – não me lembro ao certo se foi em homenagem ao trio musical Los Panchos ou ao Sancho Pança, fiel amigo de Don Quixote de La Mancha – uivou como nunca houvera feito, em fevereiro daquele ano, ao “sentir” a morte de meu pai. Todos sentimos é claro, mas animais morreram e perdemos plantas depois desta passagem, dando-me certeza de que eles se tornam parte de nosso ambiente. Mas, seu maior pesar, deve ter sido a partida de nossa cadelinha Xuxa que, não tendo mais que 40 centímetros impunha muito respeito ao boxer com mais de 1,60 metro. Como cresceram juntos, viveram bons momentos como um casal de pessoas.

O fim da vida de Xuxa foi condenado pelo veterinário que a operara duas vezes anteriores para extirpar o câncer que atingia suas mamas talvez por nunca ter procriado. Foi “mãe psicológica” de uma bonequinha loira de borracha. Cuidava dela como se fosse sua filha. Enrolava-a em um pano e a levava de um lado para outro, ficando brava quando mexíamos nela. Em abril ou maio daquele ano a anemia obrigou-nos a tomar a decisão – como se tivéssemos este direito – a tirar sua vida. Pancho ficou inconsolável, pois sentia a ausência de meu pai e depois da companheira. Acordava à noite com medo ! Como pode um cachorrão assim sentir medo ?! As portas da casa tiveram por meses as marcas de suas ranhuras para que as portas ficassem abertas nos solicitando companhia e só dormindo com a luz acessa. Foram três ou quatro meses de tratamento envolvendo homeopatia e alopatia. Quantas vezes tive de sair do meio do expediente de trabalho, carregá-lo até o veterinário para tomar soro e esperar alguma reação. Mas … nada ! Nenhuma reação… Entregou-se à morte como um ser humano.

Os mais céticos podem crer que muitas crianças abandonadas nas ruas deveriam ter a atenção que damos aos cachorros. Mas … cada cabeça uma sentença.

O francês Anatole France escreveu em 1908 que um monge chegou a uma ilha onde só havia pinguins. Cegado pelo branco da neve confunde-os com homens, evangeliza e os batiza. Ao saber de tamanha heresia, os Céus urdem e os anjos, santos e Deus ouvem, durante a assembleia, a ideia de Santa Catarina : que seja concedida uma pequena alma aos animais.

Como disse, cada cabeça uma sentença.

Fui criado com cães em casa desde a gestação. Sempre ouvi falar da basset Soraya com a qual mantive contatos enquanto engatinhava. Recordo dela através de fotos. Importante presença em minha vida foi a boxer Diana que durou 18 anos, inteligente como ela só, adorava nadar na margem direita do Rio Piracicaba em uma chácara próxima ao Nauti Clube Bela Vista e ficava em pé para abrir as maçanetas da casa.

No meio dos anos 70, Diana dividiu espaço com um coelho de nome Kiko, o qual foi trocado pela fox paulistinha Kika, inteirinha branca com uma pinta preta nas costas. O nome era dado a um dos quadros famosos do programa da TV Globo “O Planeta dos Homens”, Kika e Xuxu (vivido por Agildo Ribeiro). Kika de repente se entregou à vida por uma virose. Não andava, não comia, perdeu toda a alegria que nos deu durante anos. E sentimos com isso.

Kika e Diana ainda dividiram espaço com a boxer Pantera. Ainda me lembro de ter visto um de seus irmãos, com poucos meses, no colo de sua dona que terminava de realizar compras no Supermercado Guerra (depois Supermercado Catarinense) que existia no cruzamento das ruas do Rosário com Prudente de Moraes. Pantera foi ativa, brincalhona.  

Se for para contar meus anos de vida, prefiro contar pelos anos dos cães que passaram por ela. Cada década ou fase me remonta a alegria e o companheirismo de todos que tivemos. Ouvi dizer que o cão há mais de 10 mil anos vive dos restos do ser humano. Se colocarmos um deles numa ilha eles morrem. Não têm o dom de caçar, de preparar sua comida, de escolher o que é certo (lembre-se do número de envenenamento que as estatísticas mostram). 

O homem tem o poder de se redimir diante de seus erros e por isso ficamos um pequeno período sem esse fiel companheiro. Em 1999 adquirimos a daschound Tara que nos presenteou com quatro filhotes, dos quais apenas a Pretinha permaneceu com a mãe. E assim a renovação se fez presente em nossas vidas.

Morte – “É uma foquinha !” – Disse Myrian Vendemiatti ao retirar do veterinário outra cadela importante em minha vida, de nome Julica. Em setembro de 2003 foi vitimada por uma virose e depois por uma hemorragia. Foi triste ver o corpo daquela cachorrinha sem raça, branca com manchas pretas, em uma caixa de papelão sem vida com o nariz sangrando. Ia-se ali mais uns anos de minha vida. Foi-se com ela aquela companheira dos churrascos, seu jeito “pidão” de fazer massagem nas costas. Mas, quando fui retira-la do veterinário, tive uma lição de vida. O mesmo tinha cerca de dez cães e gatos abandonados. Dois cegos que pareciam saudáveis, um sem uma das patas, um verdadeiro asilo de animais domésticos mostrando antes de tudo que a eles não existem intempéries, e que isso é coisa de humano !

A vida de Julica terminou no Cemitério dos Animais, situado no Bairro São Jorge, num trabalho exemplar feito por Myriam Vendemiatti e sua filha. Animais de todos os tipos são ali enterrados com honras e orações. Gatos, cães, roedores, aves … Tudo ! Cada um em sua cova com nome. Cães da Polícia Militar enterrados por terem sido baleados por criminosos. Parei. Refleti sobre a vida. Relembrei de meu primeiro contato com um animal. Recordei o que um grande colega outro dia me disse : “o homem é seu passado, é sua recordação”. Tive a certeza disso, Cecílio … Meu passado é cheio de recordações. Amargas ou boas. Mas o hoje é ação do que fiz ontem.

Agora que me lembrei : desde o enterro de Julica nunca mais fui visitá-la. Quão tolos somos. Mas, a vida prossegue …