Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba
Saci teve um pé em Piracicaba. Aliás, teve seu único pé em Piracicaba. E não é ironia. Vamos usar uma história para descrever o porque disso. Há 100 anos atrás, as pessoas liam uma obra de Bram Stocker intitulada “Drácula” e, cada cabeça imaginava um jeito como deveria ser o Vlade Tapes, mais conhecido como o vampiro que se alimentava de sangue humano e vagava como um intrépido insone, fugindo do sol. Porém, foi Tod Browing em conjunto com Carl Laemmle Jr. que deram a imagem que conhecemos hoje, longe dos livros. Um sujeito de cara fechada, vestido de roupa negra e uma longa capa. Pronto ! Estava feito o estereótipo do vampiro noturno !
Pouco
mais de 100 anos atrás, sem televisão, cinema e internet, a imaginação corria à
solta. A conversação arrepiava as pessoas. Foi daí que se propagaram lendas
urbanas e rurais, dentre elas o saci.
Coitado
do nosso Pererê... Teve de caminhar a duras penas para que no imaginário
popular tivesse a composição de uma pessoa de meia idade, segurando um
cachimbo, vestido apenas de shorts e um gorro na cabeça. Sabia-se que ele era
terrível para com todos, que dava assobios ensurdecedores, aparecia em
redemoinhos os quais surgiam do nada ! Mas, como se elaborou esta aparência ?
Pois,
bem. Monteiro Lobato, lá por volta de meados da década de 1910, utilizava as
páginas do jornal “O Estado de São Paulo”, para fazer seus inquéritos. Foi aí
que ele criou, em crônicas, seus pensamentos sobre o homem interiorano, depois
reunidos no livro “Urupês”. Surge o Jeca Tatu, típico caipira, desleixado que
vive no campo, pita um cigarro, e espera a vida acontecer. Foi neste Jeca que
surgiu o nosso Jeca, o “Nhô Quim”, mascote do Esporte Clube XV de Novembro de
Piracicaba. Uma história puxa a outra.
Foi
nestes inquéritos do Estadão que Lobato questionou o vanguardismo da Semana da
Arte Moderna, hoje inconteste revolução artística. Na época, ele considerava os
trabalhos de Anita Mafalti como aberrações em forma de telas. O tempo foi cruel
com Lobato, mostrando-lhe que os rabiscos de Anita criaram fama e alcançaram
milhares de dólares quando postos a venda nos leilões.
“Inquérito
sobre o sacy-pêrêrê” foi uma das suas articulações para que, em conjunto com os
leitores pude criar a “cara” desta lenda contada em todo o Brasil. “Mythologia
brasílica” era o nome da coluna. Aí é que Saci coloca o pé – com perdão para a
expressão – na cidade de Piracicaba. Em 1º de março de 1917, o Estadão publica
carta de Sebastião Nogueira de Lima ajudando a compor esta face do negrinho que
aprontava suas estripulias, seguindo tradições indígenas e africanas que
povoaram por muitos séculos as tradições orais.
Nogueira
– que foi vereador, delegado e interventor federal em São Paulo – lançava
curiosidades interessantes sobre o Pererê, criando inclusive uma música (também
publicada naquela edição) sobre como deveria ser o assobio do perneta,
lembrando o seu forte silvo.
Nogueira
conta uma face admirada por Lobato: o saci sentimental. Aliás, não é o saci e
sim vários sacis, todos com feições iguais, mas com sexos diferentes e idades
também diferentes. Ele mesmo cita que, quando criança, ficou ensurdecido com o
silvo de um saci chamando sua amada, num solfejo a la “rhtymo de polka”,
conforme descrito naquela edição.
“Inquerito sobre o Sacy” virou um livro escrito por Monteiro Lobato. O depoimento de Sebastião Nogueira consta nele. Não dá para dizer, então, que Saci Pererê não seja piracicabano. E viva nosso cidade !
(Publicado no Jornal de Piracicaba dia 5 de outubro de 2025 e Tribuna Piracicabana de 11 de outubro de 2025)