Páginas

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Retratando os retratistas

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Dias destes passei horas – deliciosas horas – catalogando fotografias em papel. “Retratos” doados por famílias, empresas, entidades. Muitas me fizeram recordar do passado como o acervo doado pelo Marcelo Batuíra, diretor deste matutino, resgatando a memória dos anos 70, 80, 90 ... Grande maioria está passando por catalogação e digitalização para posterior compartilhamento nos meios digitais do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba.

Outro acervo que chamou minha atenção foi uma sequência de fotos dos anos 80 de autoria de Diógenes Banzatto, que trabalhou no extinto “O Diário”. São registros de nossa Piracicaba, em especial a enchente de 1983, ainda hoje lembrada como uma das mais temíveis para o comércio e moradores da rua do Porto e adjacências. Não por coincidência, uma destas fotografias, que media o equivalente a meia folha de sulfite, na condição preto e branca como era comum na época, mostra uma casa tomada pela água até seu forro. Um telhado ainda não submerso e um cão. Sim ! Um cão no telhado. Logo veio-me à memória o cavalo que também ficou num telhado no sul do pais na recente cheia que atingiu o Rio Grande do Sul.

O que demonstra isso ? A história se repete. Um eterno repetir. E o que mais ? Não aprendemos nada com esta repetição. Caímos nos mesmos erros do passado. Fácil é colocar o dedo no nariz dos outros. Mas, Banzatto teve a sensibilidade de registrar aquele momento, talvez a bordo de um barco, mas o registro é ímpar e, 40 anos atrás se assemelha aquilo que hoje ganhou destaque nos noticiários internacionais.

Este é o papel do fotógrafo profissional. Ter a vista aguçada para aquilo que deve e pode interessar às grandes massas. Hoje, maioria tem uma câmera na mão, acoplada ao smartphone. Mas poucos sabem utilizá-la. Não usá-la com filtros de aplicativos ou sobrepondo emojis, mas tendo foco no interesse.

A fotografia está completando 200 anos de criação em breve. Na verdade, a data de 1826 é o marco da criação (ou primeiro registro histórico) feita pelo francês Joseph Nicéphore Niépce. Foi ele quem conseguiu fixar com produtos químicos uma cena num papel fotográfico. Outros tentaram. Conseguiram meio intento. Revelavam a foto mas ela não se fixava no vidro, no chumbo, no papel ... Foi uma criação coletiva. Depois movimentou indústrias desde fábricas de máquinas, filmes, ou dos “retratos” em estantes, álbuns de casamento ou de aniversário. Memórias registradas para a posteridade.

Aí me socorro do saudoso Samuel Pfromm Neto em seu “Dicionário de Piracicabanos”, meu livro de cabeceira, para conhecer um pouco mais destes retratistas locais. Aqui nestas páginas já falamos de João Cozzo, o “nosso Marc Ferrez”. Este último, descendente francês que na época do Império registrou cenas de norte a sul do país, passando inclusive por Piracicaba fotografando nosso salto. Cozzo fez o mesmo em nossa cidade. É autor das principais imagens registradas em nossa história do início do século passado. Mostrou o meio-ambiente nas margens do rio Piracicaba assim como registrou o urbanismo crescente com o desenvolvimento populacional.

Tivemos também a família Bischof que até os anos 1980 manteve loja no Centro com produtos fotográficos e revelações. José, Isabel, Rodolfo, Oswaldo, Oscar, Frida, Leonor e Elza formavam sua família, no amor pelos registros fotográficos. Administravam loja de produtos elétricos além de ateliê fotográfico. Representações comerciais tivemos com os Fuji, Outsubo, Cantarelli, Caprecci, Filetti e outros. Foi mais uma segmentação do comércio levada ao ostracismo pela evolução do computador ... dos celulares ...

Jornais do passado nos apresentam curiosidades como uma loja especializada em brinquedos para crianças. Publicidades destes matutinos ancestrais, lá por volta de 1894, são estampadas anunciando que a Fotografia Pompe, que atendia num sobrado onde hoje é a rua Moraes Barros, vendia produtos para datas religiosas como Natal e dia de Reis, além de fotos, claro.

Registradores de fatos em fotos de papel dos anos 80 e 90 ainda povoam Piracicaba, em longevas amizades. Perdemos o citado Banzatto, assim como Henrique Spavieri. Mas ainda nos encontramos nas ruas com Pauléo Tibério, Davi Negri, Marcelo Germano, Alessandro Mascchio, Matheus Medeiros e tantos outros que prosseguem com este ofício bicentenário.

Li não sei onde que nossa memória se vai quando nosso retrato é tirado de uma estante. Acaba-se tudo. Finda-se uma vida e uma memória perpetuada atrás de um papel revelado por produtos químicos.


quinta-feira, 4 de julho de 2024

O canto do uirapuru

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Vermelho, preto e amarelo. Uma conjunção de cores berrantes. Um canto incomparável. Assim tomou forma um índio que se apaixonou por uma bela jovem de cabelos negros, pele avermelhada, lábios contidos. Para que não sofresse pelo amor não correspondido, o deus Tupã o transformou nesta pequena ave. Toda vez que via sua amada, como num choro eterno, cantava para ela, atraindo sua atenção sem que a mesma soubesse que ele a admirava.

Assim é a lenda de Quaraçá e Anahi, numa espécie de Romeu e Julieta tupiniquim. É uma lenda forte no norte brasileiro, contada em verso e prosa do amor não correspondido. Outra vertente diz que aquele que ouve o canto do pássaro tem sorte, felicidade, vida eterna ou realiza seu desejo mais profundo. O pássaro é o uirapuru da variação irapurá, ou seja, o pássaro que não é pássaro.

Mas, raios ! Onde encontrar este animalzinho que se esconde fortuitamente por entre a floresta ? Foi o que fez John Dalgas Frisch nos anos 1960 quando passou várias temporadas gravando o cantar de pássaros nas mais diversas áreas deste Brasil. Tudo foi compilado em LPs ouvidos exaustivamente por amantes de pássaros presos em gaiolas. Aí que surge a cultura de colocar o disco para o canário ou o curió, estimulando o enjaulado animalzinho a seguir a sinfonia amazônica gravada em forma fonográfica por Dalgas e outros seguidores.

John Dalgas Frich faleceu dia 22 de junho passado. Houve repercussão de sua morte e seu trabalho pela internet. Foi um pioneiro na fauna brasileira. Não teve quem o igualasse no registro de sons da natureza. Não deixou herdeiros à altura.

Respeitado no exterior, Dalgas foi exemplo do observador da natureza, numa inspiração que teve de seu pai Svend Frisch, consagrado pintor das aves e fauna brasileiras. No início dos anos 1960 lançou seu primeiro disco trazendo para a cidade os sons da selva, num mercado comercial que se tornou interessante, levando o LP a ficar várias temporadas entre os mais vendidos. Publicou livros e outras extensões culturais de seu conhecimento. Perseguiu como um doido o uirapuru, até que o encontrou logo próximo às 7 horas da manhã do dia 9 de novembro de 1962, no Acre, quando caminhava pelo seringal Bagaço em Rio Branco. Nem a respiração de Dalgas era possível ser ouvida na gravação feita com colossais microfones que lembravam os alto falantes Delta tão usuais então ou na atualidade igual às pequenas parabólicas. O LP intitulado “Vozes da Amazônia” mostra ao mundo todo o raro uirapuru, apresentando oito cantos diferentes.

Dalgas escreveu livros (alguns com seu pai, amigo de Picasso), gravou sons reproduzidos atualmente em forma sintetizada. Criou um nicho de atenção histórica e cultural nunca antes explorado no Brasil. Foi “sui generis” ou um autodidata em toda a produção feita ao longo de seus 94 anos de vida.

Foi um observador único da natureza alegando em entrevistas que recebeu um dom divino de ajudar a preservar a vida animal. Quando tinha oito anos, numa área rural em que vivia, um colega pega uma espingarda de pressão e atira na primeira ave que vê. O animalzinho cai sangrando ao chão. A sua companheira começa a gritar ao presenciar a cena. Isso lhe marcou até o final da vida. Naquele momento notou que tinha uma sina importante diante deste mundo terreno.

Lançou em 1974 um compacto curioso voltado às festas natalinas com Noite Feliz e Jingle Bells executados por uma composição de sons de pássaros. Existe até relógios cujas horas são executadas com sons das aves que ele coletou Brasil afora.

Nesta linha, Piracicaba foi seguidora deste ícone. Sua fauna aparece em duas publicações acadêmicas. Uma é “Aves do campus Luiz de Queiróz”, coletânea de autores com 200 espécies de aves no campus USP de Piracicaba. “Aves do campus Unicamp”, também coletânea, registra 170 espécies que vivem no dia a dia da Universidade. Um viva a Dalgas que inspirou todo esse universo !