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quinta-feira, 4 de julho de 2024

O canto do uirapuru

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Vermelho, preto e amarelo. Uma conjunção de cores berrantes. Um canto incomparável. Assim tomou forma um índio que se apaixonou por uma bela jovem de cabelos negros, pele avermelhada, lábios contidos. Para que não sofresse pelo amor não correspondido, o deus Tupã o transformou nesta pequena ave. Toda vez que via sua amada, como num choro eterno, cantava para ela, atraindo sua atenção sem que a mesma soubesse que ele a admirava.

Assim é a lenda de Quaraçá e Anahi, numa espécie de Romeu e Julieta tupiniquim. É uma lenda forte no norte brasileiro, contada em verso e prosa do amor não correspondido. Outra vertente diz que aquele que ouve o canto do pássaro tem sorte, felicidade, vida eterna ou realiza seu desejo mais profundo. O pássaro é o uirapuru da variação irapurá, ou seja, o pássaro que não é pássaro.

Mas, raios ! Onde encontrar este animalzinho que se esconde fortuitamente por entre a floresta ? Foi o que fez John Dalgas Frisch nos anos 1960 quando passou várias temporadas gravando o cantar de pássaros nas mais diversas áreas deste Brasil. Tudo foi compilado em LPs ouvidos exaustivamente por amantes de pássaros presos em gaiolas. Aí que surge a cultura de colocar o disco para o canário ou o curió, estimulando o enjaulado animalzinho a seguir a sinfonia amazônica gravada em forma fonográfica por Dalgas e outros seguidores.

John Dalgas Frich faleceu dia 22 de junho passado. Houve repercussão de sua morte e seu trabalho pela internet. Foi um pioneiro na fauna brasileira. Não teve quem o igualasse no registro de sons da natureza. Não deixou herdeiros à altura.

Respeitado no exterior, Dalgas foi exemplo do observador da natureza, numa inspiração que teve de seu pai Svend Frisch, consagrado pintor das aves e fauna brasileiras. No início dos anos 1960 lançou seu primeiro disco trazendo para a cidade os sons da selva, num mercado comercial que se tornou interessante, levando o LP a ficar várias temporadas entre os mais vendidos. Publicou livros e outras extensões culturais de seu conhecimento. Perseguiu como um doido o uirapuru, até que o encontrou logo próximo às 7 horas da manhã do dia 9 de novembro de 1962, no Acre, quando caminhava pelo seringal Bagaço em Rio Branco. Nem a respiração de Dalgas era possível ser ouvida na gravação feita com colossais microfones que lembravam os alto falantes Delta tão usuais então ou na atualidade igual às pequenas parabólicas. O LP intitulado “Vozes da Amazônia” mostra ao mundo todo o raro uirapuru, apresentando oito cantos diferentes.

Dalgas escreveu livros (alguns com seu pai, amigo de Picasso), gravou sons reproduzidos atualmente em forma sintetizada. Criou um nicho de atenção histórica e cultural nunca antes explorado no Brasil. Foi “sui generis” ou um autodidata em toda a produção feita ao longo de seus 94 anos de vida.

Foi um observador único da natureza alegando em entrevistas que recebeu um dom divino de ajudar a preservar a vida animal. Quando tinha oito anos, numa área rural em que vivia, um colega pega uma espingarda de pressão e atira na primeira ave que vê. O animalzinho cai sangrando ao chão. A sua companheira começa a gritar ao presenciar a cena. Isso lhe marcou até o final da vida. Naquele momento notou que tinha uma sina importante diante deste mundo terreno.

Lançou em 1974 um compacto curioso voltado às festas natalinas com Noite Feliz e Jingle Bells executados por uma composição de sons de pássaros. Existe até relógios cujas horas são executadas com sons das aves que ele coletou Brasil afora.

Nesta linha, Piracicaba foi seguidora deste ícone. Sua fauna aparece em duas publicações acadêmicas. Uma é “Aves do campus Luiz de Queiróz”, coletânea de autores com 200 espécies de aves no campus USP de Piracicaba. “Aves do campus Unicamp”, também coletânea, registra 170 espécies que vivem no dia a dia da Universidade. Um viva a Dalgas que inspirou todo esse universo !