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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Novembro

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Chegamos ao nono mês do ano. Ops ! Novembro é o nono ? Sim. Seu nome vem do latim novem, mês anteriormente consagrado a Júpiter. Daí o Império Romano mudou o calendário, acrescentando dois novos meses, completando os 12 atualmente conhecidos. Mas o objetivo aqui não é discutir o sexo dos anjos e sim relembrar alguns fatos que marcaram Piracicaba neste mês, em tempos remotos.

Pode-se dizer que Piracicaba surgiu em novembro. Sim. Foi em 15 de novembro de 1693, ou 331 anos atrás, que foi assinada a carta de sesmaria de nossa região, outorgando a Manuel Peixoto da Mota a incumbência de povoar a região tomada por mato para que tudo é lado, tendo por base central a “cachoeira” existente no rio que divide a área. Por aí é fácil localizar que Piracicaba surgiria a partir do salto do rio Piracicaba. Mota, deixa clara a história, não ocupou a área da sesmaria, não a povoou nem praticou melhorias, sendo que a mesma retorna às mãos da capitania em 1726.

Os documentos sobre a história local são meras referências. Algumas curiosas e sem muitos detalhes. Um dos exemplos foi a grande chuva de pedras que caiu sobre a cidade em 18 de novembro de 1871.

A leitura era um item importante na rotina no século retrasado. Eram poucas as formas de entretenimento, de forma que uma biblioteca, denominada de gabinete de leitura, foi reaberta em 10 de novembro de 1882. Quem queria, podia ler. Não foi o caso do senhor José Antonio da Cruz, cujo falecimento foi anunciado no apanhado de curiosidades do Almanak de Piracicaba para 1900: “dia 4 de novembro de 1887 faleceu o antigo cego José Antonio da Cruz”. Será que ele voltou a enxergar em vida, ou por ter falecido recebeu a alcunha de ex ?

O 15 de novembro é um dos poucos feriados do calendário atual que proporciona uma emenda com o fim de semana. Mas em 1889 acaba o Império e passa a “reinar” a República. No dia 17 seguinte tomam posse de forma “unilateral” e por vontade própria Moraes Barros, Luiz de Queiroz e Paulo Pinto, assumindo a administração de nossa terra. Não houve eleição, nem plebiscito. Simplesmente o trio assumiu o poder sem mais nem menos. São auxiliados pelos vereados de então: João Nepomuceno Sousa, Barão de Rezende, João Manoel de Moraes Sampaio, Manoel da Costa Pedreira, José Carlos de Arruda Pinto e Francisco Florencio da Rocha.

Conturbada a República em seu início, Deodoro da Fonseca, empossado em 1889 presidente da República, passa o governo a Floriano Peixoto em 1891 e três anos depois ao ituano mais piracicabano que ninguém Prudente de Moraes. A busca pelo poder colocou em risco a vida de Prudente em novembro, no dia 1° de 1897, quando este sofre uma tentativa de homicídio, com uma garrucha que não disparou sendo que seu ministro marechal Machado Bittencourt interveio e foi apunhalado por diversos golpes, falecendo em decorrência da atrocidade. O Almanak de Piracicaba para 1900 diz que “alguns dos implicados, mais infelizes, ainda ahi passeiam, castigados pelo remorso, penitenciando-se aos bocadinhos; estes, si conseguiram escapar aos golpes da lei, mas não escaparão nunca à maldicção de povo, e ás tremendas acusações da própria consciência’.

Missão cumprida, Prudente de Moraes retorna a Piracicaba em 23 de novembro de 1898 deixando a presidência do país ao seu sucessor. Aqui aporta para dar sequência à sua vida como cidadão prestante. A recepção calorosa por parte da sociedade dura três dias e três noites com festas e muito falatório.

O Carmelo do Imaculado Coração de Maria e de São José, conhecido por Carmelitas, situa-se na rua José Ferraz de Camargo que faleceu em novembro de 1894, no dia 27. Nascido em Itu, veio a Piracicaba trabalhar no engenho do Monte Alegre. Enviuvou-se de quatro esposas e teve cerca de 40 filhos.

E assim foram poucos fatos sobre a história local no mês de novembro.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Tudo como era antes

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Tudo igualzinho como era antes. Claro que não exatamente como era antes. Vergonha. Promessa descartada. Crescimento pessoal fica para a próxima. Reerguer a cidade. Assim foi Piracicaba 92 anos atrás, ao término da Revolução Constitucionalista de 1932.

Jornais da época noticiam o retorno dos “voluntários de Piracicaba” que pegaram armas para evitar o avanço das forças federais. Armas por uma causa democrática ? Sim ! Afinal, paulistas queriam uma Constituição nova, com ares modernos, conforme Getúlio Vargas havia prometido em 1930 quando tomou posse. Aliás, este ar de nova constituinte já vinha de uma década antes.

Mas, São Paulo “perdeu”. Se rendeu em 2 de outubro para surpresa geral. Os jornais da época falavam que o Estado paulista estava vitorioso, que as mortes registradas até então tinham valido a pena pois a nova lei magna nacional estava surgindo. Ledo engano. Piracicabanos, assim como os demais paulistas, retornavam para casa, para seu lar, talvez conseguissem recolocação no mesmo posto de trabalho... “Teria valido a pena ?”, pensou aquele voluntário que foi se embrenhar nas trincheiras do norte do Estado pensando em conseguir um bom emprego como lhe haveria sido prometido. A cidade teve de se reconstruir. Não que tivesse sido bombardeada, mas a economia estava em frangalhos. A rotina teria que voltar imediatamente à normalidade depois de três meses de imprevistos sociais, econômicos, familiares ... de tudo que é tipo.

Piracicaba perdeu mais que dez filhos na Revolução de 1932. Foram poucos, podem pensar o nobre leitor. Mas, contesto. Foram muitos, pois a famílias despedaçadas sabem o quanto sofreram por suas mortes, perpetuadas por décadas pelos irmãos, filhos e parentes como um todo. Tudo isso sempre foi lembrado nas celebrações anuais do 9 de julho até o falecimento do último Voluntário de Piracicaba, Romeu Gomes, em 17 de junho de 2016, aos 100 anos de idade. Eram pessoas como ele que levantavam a bandeira de todo o entusiasmo que tiveram os piracicabanos que se envolveram com esta que foi a última insurreição armada em solo brasileiro. Falam de 600 ... 800 ... 2.500 envolvidos direta ou indiretamente. Apenas em nossa terra ... O número nunca foi e nunca será exato. Os filhos destes voluntários, como parte natural da vida, também estão indo embora. Torcemos para que tenhamos por aqui alguém que empunhe a bandeira para a celebração do centenário da Revolução Constitucionalista daqui oito anos.

À época, a cidade ainda chorava seus mortos como vemos neste relato: “Os denodados e valorosos voluntarios piracicabanos, que na cidade se encontra de regresso das linhas de fogo, cogitam de levar a effeito uma romaria aos túmulos onde descançam (sic) os seus irmãos de ideal, sacrificados na luta pela redempção do Brasil. Ideia elevada, que partiu de corações nobres, ella demonstra bem o sentimento de fraternidade que a todos irmanou quando da deflagração do movimento constitucionalista”. Jornal “O Momento” de 8 de outubro de 1932.

Jacob Diehl Neto, na Gazeta de Piracicaba, de 19 de outubro de 1932, relata seu desabafo: “Soldado raso do Primeiro Batalhão Piracicabano, que saiu desta cidade em 16 de Julho, como soldado entrei para as trincheiras (...) ao lado de tantos outros bravos camaradas, que me orgulho de haver acompanhado, em Palmeiras, Santa Rita, Tres Pontes, Batalhão, Bocaina, Quebra-Cangalhas e Cóta Queimada, até 24 de Setembro, data em que a minha claudicante saúde, trabalhada por sessenta ásperos dias de campana, pelos meus quarenta e dois annos de edade e pelas ultimas chuvas, me forçou a depor o fuzil e regressar para casa.

(...) Essas Companhias chegaram a Areias altas horas da noite, em caminhões, e os seus soldados tiveram de dormir ao léo... Lembro-me de ter visto o sargento Jones na calçada, o prof. Antonio Oswaldo Ferraz num caminhão, o meu filho numa casa paupérrima e abandonada, estendido no soalho. Depois de muito vagar, achei pouso na sala do jury... No dia seguinte, num rancho commum para os soldados sem transito, tomámos uma caneca de café e recebemos um pão minúsculo. Logo entrámos em fórma, ouvimos algumas palavras do Cel. Andrade e, separados em grupos de vinte ou tinta, sem que pudéssemos ao menos abraçar, e sem almoço, tocámos para as linhas de foto – uns para Palmeiras, outros para Santa Rita, outros mais para Barreiros, outros ainda não sei onde ...”. E, assim, voltamos à normalidade em terras piracicabanas.


domingo, 3 de novembro de 2024

Relou uin

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Edgard tinha um corvo de estimação. Não urubu, mas estes corvos que vimos em “Os pássaros”, de Alfred Hitchcock. Empoleirado, o corvo passa o dia na sala com seu tutor. Este, por sua vez, era avesso às modernidades tecnológicas e adorava ler.

Foi à estante e procurou por livros temáticos para comemorar o tal de Halloween. “Engraçado – pensou ele – na minha infância, os professores falavam sobre personagens folclóricos como o Saci Pererê, a Mula Sem Cabeça, e hoje a molecada endeusa folclores americanizados como Jack O’Lantern (o cabeça de abóbora), Jason, zumbis e toda esta parafernália que, Made in China, vem abarrotar as lojas de departamentos já a várias semanas”, pensa.

É a vida. É o avançar dela. É a evolução social. Mas, adepto às boas publicações em papel, Edgard pegou livros para a semana. Hoje, “A queda da casa de Usher”. Amanhã, uma coletânea do seu xará Edgard Alan Poe. Opa ! Mas a consciência pesa ! Falando na cultura anglo saxã, lembra que o Brasil também teve grandes expoentes na escrita fantasmagórica. Lá se vão os contos clássicos de Álvares de Azevedo, Machado de Assis (sim ! ele escreveu contos de terror), mais e mais. Chatos prá caramba ! Escritos numa época em que a interpretação de texto exigia grande conhecimento cultural, essas escritas brasileiras se tornam enfadonhas. Mas o talento de seus autores é incontestável.

Edgard não se esquece que na prateleira tem coleções de quadrinhos lançados na época ou reedições atuais. Depara com obras de Rubens Luchetti, Flavio Colin, Júlio Shimamoto, ou coletâneas dos anos 1960 e 1970 como Clássicos do Terror. Poxa ! Como os brasileiros desenharam bem, numa época em que os quadrinhos eram artesanais e feitos a nanquim ! Os traços são perfeitos. Verdadeiras obras de arte.


Edgard, não muito chegado à tecnologia e à cultura propagada hoje por estadounidenses, pensa em chamar seus amigos para um chá da tarde, lembrando de Peter, Vicent e Christopher. Antes, porém, liga a TV e acessa seus aplicativos preferidos: Oldflix e Darkflix. Poxa ! Estão com promoção pelo dia das bruxas, com programação de clássicos. “Ah ! Mas ainda dá tempo de ir no Oxxo da esquina e pegar um muffin e um café expresso”, pensa.

Edgard sai rapidamente com sua “roupa de mendigo” – passa o dia de pijama, já que mora sozinho –, volta com seu bolinho de chocolate e café em copo de papel. A TV estava ligada e ele começa a zapear o controle remoto. Opa ! Este vai para os favoritos. Aquele outro também. Adorava produções da Hammer e Amicus, britânicas que deram os melhores clássicos de terror nos anos 1960. Lembra do brasileiro José Mojica Marins, o “Zé do Caixão” ou Joe Coffin como rotularam os americanos, mas a produção britânica lhe distrai a atenção. Também, pudera ! Passam pela tela obras de Edgard Alan Poe, Nataniel Howthorne, além de faces conhecidas do grande público como Peter Cushing, Vincent Price, Cristopher Lee. “Que legal ! Até Roger Corman está na lista”, falou alto, quase respingando café pelo chão.

A hora passa, o dia das bruxas está quase no fim. Zapeia daqui, zapeia dali ... Tanta opção e nenhuma escolha. Muita informação. Eis que Edgard dorme, derruba o café no chão, sem perceber, e o muffin ficaria para o dia seguinte, duro, claro. Assim foi uma tentativa fracassada de curtir uma noite de “relou uin”. Nem teve pesadelo por assistir ou ler algo pesado. O sono venceu.  


quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Já vivemos sem iluminação

 Edson Rontani Júnior é jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

As tempestades dos últimos dias provocaram uma reviravolta na vida de muitas pessoas. Na capital paulista, cerca de 100 mil lares ficaram sem energia elétrica e, com isso, perderam mantimentos conservados sob refrigeração. Banho ? Só se for gelado. Nem energia para carregar o celular as pessoas tiveram acesso. Distrair como ? Sem celular, sem televisão, sem internet, sem luz.. Muito se falou sobre a poda preventiva de árvores, a privatização do fornecimento de energia elétrica, a culpa política da situação.

Mas como fazíamos no passado ? Explicam curiosos locais como Leandro Guerrini, Samuel Pfromm Neto e Maria Celestina Teixeira Mendes Torres com suas publicações sobre a história de Piracicaba. Antes da luz, fez-se o fogo. Não é a toa que ainda usamos expressões como “segurando vela” ou os mais antigos citavam que ao ir no supermercado deveriam comprar uma lâmpada de 40 velas, em parâmetros para o posterior watts quando surgiu a energia elétrica.

Em fevereiro de 1873, a Câmara de Piracicaba envia solicitação ao Governo Provincial solicitando 50 lampiões de querosene para instalação na cidade. São Paulo na ocasião havia trocado os postes de querosene por iluminação a gás. Assim, os postes anteriores seriam inservíveis, interessando à edilidade piracicabana que custearia o transporte da capital para cá.

Deve ter passado despercebido por grande maioria, mas meu papel aqui é lembrar alguns destes fatos, dentre eles o de termos comemorado neste 2024 os 150 anos da iluminação pública na “Noiva da Colina”. Sim ! Foi no dia 14 de fevereiro de 1874 que a cidade ganhou postes com iluminação à querosene. Claro que a iluminação não era aquela maravilha e nem dava tanta claridade, mas o piracicabano de então tinha segurança em voltar para casa, retornar de uma visita ou buscar algo na farmácia ou no comércio se é que funcionavam à noite. Lembremos que daí vem outra expressão “dormir e acordar com as galinhas”, sendo que estas se põem a dormir com o escurecer ou levantam piando com o raiar do dia. A iluminação pública era como o lampião de querosene utilizado nas residências. Tinha uma quantidade do líquido e um pavio de tecido. Leandro Guerrini, por sua vez, cita o “Almanak de Piracicaba para 1900”, dizendo que o cessionário da iluminação pública local foi um tal de Manuel Ernesto da Conceição.

Guerrini lembra que os postes ficavam nas esquinas. O querosene em cada poste tinha uma determinada medida que garantia a iluminação até as 22 horas. Lampiões similares ficavam no interior das residências e estabelecimentos que serviam gastronomia aos comensais. À escuridão, sem Netflix, celular ou qualquer outro entretenimento, os olhos cerravam mais rápido atraindo o sono e jogado nossos ilustres cidadãos aos braços de Morfeu. E tenha uma boa noite !

Mas, - pergunta o curioso leitor- e o gelo, o sorvete, a carne congelada ? Vamos com calma. A refrigeração veio décadas depois. Carne durava se colocada em imersão de sal, igual ao bacalhau que conhecemos.

Algumas semanas – acho que foram várias semanas – escrevemos aqui sobre a iniciativa de Luiz de Queiroz em assumir a iluminação local através da energia elétrica, alcançada com geradores movidos pela água do rio Piracicaba em sua fábrica de tecidos, hoje lembrada como Boyes. Pouco conhecido é que o caminho pioneiro de Queiroz foi assumido em 1903 por Antônio Augusto de Barros Penteado através da Ignarra Penteado & Cia. Este veio com ares modernos, reformando a empresa, capacitando funcionários e levando não apenas luz às residências, mas também energia elétrica para o que quer que Piracicaba tivesse na época, podendo ser geladeira ou algum aparelho audiovisual, se é que existiam. Sem televisão, internet, games, as pessoas buscavam mais a sociabilidade seja para almoçar na residência de familiares ou amigos ou mesmo para “tricotar” sobre a vida alheia. Aí, fez-se a luz. O mundo nunca foi igual como antes...

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 20 de outubro de 2024 e na Tribuna Piracicabana de 27 de outubro de 2024)


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O fanzine brasileiro

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

De passatempo a ícone da comunicação autoral e alternativa. Assim notabilizou-se o primeiro fanzine publicado no Brasil que, no último dia 12 de outubro, completando seus 59 anos. Como brincadeira de gente grande, o fanzine “Ficção” surgiu para preencher a lacuna entre os fãs das histórias em quadrinhos no final de 1965, numa época de ebulição do mercado editorial brasileiro em que desfilavam grandes editoras que propagavam a nona arte, como O Cruzeiro, Ebal, Vecchi, La Selva, Lord Cochrane, RGE, Bloch e muitas outras que faliram ou se fundiram com multinacionais.

Publicação feita no fundo do quintal e nas horas vagas, o “Ficção” não tinha pretensão de ser o primeiro fanzine do país. Foi lançado como “boletim” e apenas em meados dos anos 1970 recebeu esta denominação por estudiosos em comunicação. Não pretendia ser um marco ao catalogar tudo o que foi lançado no mercado de quadrinhos. Era um delicioso passatempo no qual o funcionário público do estado de São Paulo Edson Rontani se dedicava para falar sobre sua maior paixão.

Tem seus antecedentes. Isso nos anos 1940 quando foi impulsionado pelos seriados de cinema produzidos pela Republic Films, os quais apresentavam os heróis da era dourada dos quadrinhos como Flash Gordon, Batman, Superman, Zorro e tantos outros personagens, hoje sob posse da DC Comics e da Marvel Comics. Estes seriados eram exibidos nos Teatro Santo Estevão e no Teatro São José. Rontani em companhia de seu amigo Oswaldo de Andrade eram tão fascinados em reter estas memórias que criavam seus próprios gibis desenhados a mão e distribuídos entre os amigos. Assim propagavam as emoções vistas na tela.

Esta paixão fez com que anos mais tarde houvesse a necessidade de se profissionalizar e procurar pessoas – fora de Piracicaba – para conversar sobre quadrinhos. Cria-se o “Ficção”, impresso em mimeógrafo, com páginas grampeadas, envelopado e enviado pelos Correios. Recebiam esta publicação grandes expressões da época como Adolfo Aizen, Maurício de Souza, Lyrio Aragão, Jô Soares, José Mojica Marins (o “Zé do Caixão”), Gedeone Malagola e muitos outros. Maioria desconhecidos pelo público que surfa pela internet.

“Ficção” circulou até o início dos anos 1970, período em que professores, comunicadores e estudiosos perceberam seu pioneirismo na comunicação alternativa e autoral. Estabelecia-se então o primeiro fanzine publicado no Brasil, algo ainda reverenciado nos dias atuais.

Os primeiros registros do fanzine são datados dos anos 1920 nos Estados Unidos e hoje – em pleno período de avanço tecnológico digital – ainda é feito tanto lá fora quando no Brasil, de maneira artesanal e com muita paixão. Não é a toa que fanzine é a união das palavras fanatic (fã) e magazine (revista), ou seja, a revista feita pelo fã.

Produto genuinamente piracicabano, terra tão cheia de cultura e com grandes revelações, o fanzine vem sendo reverenciado neste mês por chegar aos seus 59 anos, com atividades realizadas em universidades e republicações que serão feitas em todo o país. Não faltaram manifestações no último final de semana. As mídias sociais digitais, inclusive, impulsionam para que isso se torne mais evidente. É referência inclusive em estudos científicos, embora desconhecido na terra natal de seu autor.

Como passatempo, virou marco na comunicação. Talvez porque seu criador nunca pensou em fazê-lo um trabalho pioneiro - procurava o meio e nunca o fim como reconhecimento, para colher sua devida colocação na arte nacional.


quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Castanho

 


Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

“Sou um comerciante da escrita”, disse certa feita Monteiro Lobato. Isso resume que, além de ter uma língua ácida, provocativa e lúcida, fazia das letras um negócio. Soube bem negociar e fazer dinheiro com tudo que colocou no papel. Fez carreira e fortuna com seus livros lançados numa época em que a imaginação vinha da cabeça do leitor, alicerçada por aquilo que ele discorria nas folhas de livros e jornais.

Ainda não tínhamos a concorrência do rádio e da televisão. Éramos educados e entretidos também pela escrita. Pelo menos uma pequena parcela do país, já que por décadas e décadas, o Brasil formado por pessoas analfabetas. Isso mesmo. A preocupação com o aprendizado da leitura ocorreu a partir de meados da metade do século passado. Vamos lembrar que o ensino educacional até os anos 1930 era feito em francês e até os anos 1960 as missas eram rezadas em latim. Isso mesmo. Aqui no Brasil. Censo de 1920 mostrava que 71% da população brasileira era analfabeta.

O hábito do conhecimento estava entre a classe mais abastada que enviava filhos para os Estados Unidos ou países europeus para graduação em faculdades. O ensino público gratuito, inclusive para adultos e moradores da zona rural, torna-se obrigação do Estado com a Constituição de 1934. Antes, apenas afortunados poderiam pagar para deixar seus rebentos em escolas particulares, externatos ou internatos ou ainda ter professora particular em casa.

Foi aí que Lobato surge num cenário vazio. Foi nosso Júlio Verne, se assim os leitores me permitem comparar, pois utilizou ao máximo da imaginação para criar personagens inverossímeis em situações onde apenas a imaginação podia chegar, quebrando conceitos físicos e sociais. Escreveu uma produção invejável. Fez das crônicas livros de coletânea como “Urupês” cujos capítulos saíram na “Revista do Brasil” e no “Estado de São Paulo”, dando base para nosso caipira Nhô Quim.

Soube negociar seus direitos autorais pois os livros vendiam como água. Isso se utilizarmos as três primeiras décadas do século passado. Foi um exímio e habilidoso espadachim com sua caneta bico de nanquim ou máquina de datilografar, deixando no papel suas reinações que criaram o conceito de um folclore ativo e participativo do imaginário popular. Até então, Cuca não era um dragão verde. Era o dragão que São Jorge combatia na lua, segundo tradições seculares. O jacaré só se esverdeou nos anos 1970 quando virou seriado na TV Globo.

Herdou tudo que seu avô, Visconde de Tremembé, cultivou durante a vida. Não teve vida fácil, claro, mas foi ousado em investir no mercado literário através das Editoras Globo, Cia. Nacional de Livros e Melhoramentos. Quer aguçar sua curiosidade ? Leia Lobato. Assim vendeu e vendeu e vendeu suas obras. Veio buscar petróleo em Águas de São Pedro e Charqueada. Vã Investida. Mas tornou-se notório pelo teor educativo e lúdico de sua obra.

Desde sempre ouço falar que ele divide o reinado com o piracicabano Thales Castanho de Andrade. Ambos pais da literatura infantil. Mas creio que isso seja orgulho apenas de nós piracicabanos. Cada qual teve seu papel na literatura brasileira. Thales viveu 87 anos (1890/1977) e Monteiro 66 anos (1882/1948). Talvez – há quem discorde – Thales não tenha o tino comercial de Lobato, não tenha sido empresariado como este ou não tivesse amigos como a família Mesquita, dona do jornal “Estadão” onde publicava e dirigiu sua redação. Thales, no romance “Saudade”, cuja terceira edição foi publicada pelo Jornal de Piracicaba em 1922, no centenário da Independência, é uma obra de arte inspiradora para a vida juvenil de então, permeada por desenhos icônicos.

A questão não é dizer quem é o melhor, que tem maiores obras ou quem será sempre lembrado. Piracicaba com certeza elegerá Castanho como um dos principais escritores, embora tenha seu nome esquecido até mesmo em setembro, quando a primavera chegou e ele comemoraria 134 anos de nascimento.

Chegando ao período de halloween, onde redes supermercadistas e escolas de inglês já estampam caveiras e abóboras na mais pura importação do folclore anglo-saxônico, fiquemos com a nossa cultura e saudemos nosso caipiracicabano Castanho !


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

O fim estava próximo

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Ainda de setembro de 1932, jornais de Piracicaba traziam ânimos aos conterrâneos que empunhavam armas pela causa constituinte na Revolução iniciada em 9 de julho daquele ano. Eis que em 2 de outubro, as lideranças paulistas cedem e firmam armistício com as forças federais de Getúlio Vargas. Acaba o último conflito armado em solo brasileiro movido pelos paulistas que exigiam uma nova Constituição, a qual viria dois anos depois.

O fim do levante civil pegou todos de surpresa. Em 2 de outubro de 1932, jornais locais – O Momento, Gazeta de Piracicaba e Jornal de Piracicaba – ainda traziam artigos para elevar o moral dos cidadãos que por aqui se dedicavam aos voluntários piracicabanos. Eram duas frentes: as dos piracicabanos que foram ao conflito armado e os piracicabanos e piracicabanas que aqui ficaram e atuavam como cozinheiros, enfermeiras, costureiras e outras formas de mão de obra para garantir o abastecimento das tropas. A partir de 3 de outubro, nenhuma nota mais foi publicada sobre a Revolução. Pudera ! Com seu fim, o estado de São Paulo passou a sofrer retaliações com a deportação para Portugal dos líderes que estavam na capital paulista. Começavam as retaliações, os julgamentos questionáveis, o medo social ...

Por volta do dia 12, pequenas notas nos jornais faziam referências aos piracicabanos que retornavam aos seus lares. Há depoimentos de que alguns que pegaram em armas pensando em conseguir emprego no caso da vitória paulista. Triste realidade, pois, a cidade afundava-se com a falta de insumos desde a farinha para o pão ao combustível para os veículos. Era necessária uma reconstrução local. Não a toa, o comércio se fortaleceu encontrando a necessidade de união criando sua associação comercial exatamente em julho de 1933, um ano após o início da Revolução.

Jornais locais passavam a ouvir os piracicabanos que retornavam. Alguns acusavam companheiros como pode ser visto nas páginas dos matutinos de então, com direito a réplica, tréplica, quadruplica e assim por diante, num incessante bate-boca popular. Houve manifestações, missas em homenagens aos falecidos e constituição de comissões para criar o jazigo do Soldado Constitucionalista no Cemitério da Saudade. O Monumento na Praça 7 de Setembro, só viria no dia 6 de setembro de 1938.

O sentimento, a honra a honestidade eram diferentes na época. Pode notar-se isso na carta de Antonio de Mattos, pertencente à Coluna do Ten. Cel. Romão Gomes: “Eu recusei promoção a sargento porque acho que não tenho competencia. Quero servir a S. Paulo, como soldado mesmo” (Gazeta de Piracicaba, 28/09/1932).

De 30 de setembro a 4 de outubro, silêncio geral. A Gazeta de Piracicaba em 5 de outubro traz mensagem de moradores de Campinas que se refugiaram por aqui, agradecendo a hospitalidade, pois a cidade foi bombardeada pelo ar e em Piracicaba encontraram a paz neste período turbulento. No agradecimento, acreditavam que estava no momento de retornar para a cidade natal.

Dia 6 de outubro, também na Gazeta: “Começam a chegar os primeiros legionários do Ideal, os soldados conscientes da Liberdade, que deram tudo o que podiam dar para reintegrar a Patria na communhão da Lei, da Justiça e do Direito”.

Moral elevado: “E elles chegam – nos olhos o brilho de um enthusiasmo que não esmoreceu – para o aconchego carinhoso da família, para o convívio acalentador dos amigos. Piracicaba, berço do civismo, cidade tradicional que sempre foi vanguardeira nos grandes movimentos de opinião que visaram engrandecer o Brasil, Piracicaba, meiga e carinhosamente recebe com flores os seus filhos queridos, que sempre a fizeram grande e respeitada. Uma multidão incalculavel, toda a sua população, espera nos gares das nossas ferrovias a chegada dos comboios que conduzem os phalangiarios heroicos e bravos da mais nobre elevada causa que jamais se agitou no scenario da nossa vida politica. Partiram sob o olhar maternal e confortados pelo enthusiasmo quente da mãe carinhosa que, agora, no seu regresso – que é glorioso como foi a sua partida – os recebe entre abraços e acclamações. Piracicaba, altiva e patriota, ainda uma vez é digna das sua tradicções gloriosas”. Autoria desconhecida, da redação daquele jornal.


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Duzentos anos dos alemães

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Muito se escreveu sobre a Alemanha. Muito se falou sobre a escola de arquitetura Bauhaus, ainda hoje utilizada como exemplo internacional. Muito se falou sobre o consumo interno, com importações que abasteciam o mercado germânico. Muito se sabe, também, sobre o cinema alemão: tanto o expressionismo como o consumo das produções de Hollywood. A Alemanha era um dos – senão o principal consumidor de filmes norte-americanos – definindo produções e roteiros, além de exigir imediatas dublagens para o expectador alemão. Mas, aí veio a Segunda Guerra Mundial e tudo mudou.

O país foi dividido em dois entre 1945 e 1989: Alemanha Ocidental administrado pelos aliados, em especial os Estados Unidos, e a República Democrática (!!!) Alemã, administrada pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS ou União Soviética). Muito antes das mudanças políticas com a ascensão do 3º. Reich nos anos 1930, vários alemães deixavam sua pátria natal, muitas vezes pelas profundas crises econômicas ou, então, pelas constantes guerras na Europa Central ou no Leste do continente.

Duzentos anos atrás, a onda migratória foi estimulada pelo Império brasileiro que dois anos antes se tornara independente de Portugal. Era momento de crescimento e o “Novo Mundo” atraía esperanças tanto no sul quanto no norte da América.

Eis que nesse processo Piracicaba atrai a atenção de muitas famílias que firmaram residência, constituíram famílias e fizeram negócios.

São muitos deles, mas, rememorando ao léu Jacob Wagner, avô do artista plástico Renato Wagner. “Tio” Cecílio Elias Netto lembra que Wagner foi um dos primeiros cervejeiros locais. Um exemplo que segue hoje na cidade com microcervejarias como a Tutta Birra, Cevada Pura, Leuven e Dama Bier. Curioso é saber da revolta dos piracicabanos com o estouro da Primeira Guerra Mundial. Com isso os alemães se tornam perseguidos. Jacob que tinha sua produção na esquina das ruas Dom Pedro II com Benjamin Constant, era “boa gente”. Ao menos na concepção da horda revoltosa que pensou em acabar com seus barris de chopes. No último instante resolveram conter a raiva e voltaram para casa mantendo o estoque de Wagner de sua produção de água, lúpulo e malte. Salute ! Ops ... Skol ! Ou seria Prosit ? Fica aqui a ira do redator, pois, mesmo nestes 200 anos, Piracicaba não tem uma festa a altura para alegria dos convivas e beberrões a exemplo do vemos com a Oktoberfest.

Para não deixar em branco este bicentenário, o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, na última quarta-feira, recebeu, na sede da ACIPI, Carlos Alberto Labate, professor da ESALQ com amplo currículo e que falou de uma figura importante mas pouco conhecida pelos piracicabanos. Ele discorreu sobre a vida de Friedrich Gustav Briege, professor da Universidade de Berlim nos anos 1930 que trocou sua terra natal por ser judeu e antecipar o que ocorreria anos depois. Aportou em Piracicaba onde faleceu nos anos 1980. Foram mais de 80 anos dedicados à genética considerado como um dos pais da genética brasileira. Labate deixou claro que os estudos até então eram feitos no hemisfério norte e não existia embasamento científico para a genética nos trópicos. Briege revolucionou conhecimento e criou pupilos e teses pioneiras. Já o professor Labate discorreu sobre a vida de Briege de uma forma sutil, com detalhes imperdíveis cuja atuação merece um necessário resgate. Em breve no YouTube do IHGP.

Em seguida, outro resgate que merece ser tomado. A vida de Ernst Mahle, cujo pai foi criador e fabricante dos pistões Mahle, uma mina de ouro no cenário industrial. O cirurgião-dentista Raul Gobeth foi quem discorreu sobre este incansável alemão nascido em Stuttgart e que, no auge de seus 95 anos, é referência na música, orquestração, arranjos e óperas, entre outros. Me recordo de ficar vários minutos observando os cataventos que ele criava e expunha no jardim de sua residência na rua São Francisco de Assis, próximo aonde eu morava. Habilidades adquiridas na oficina de seu pai quando criança.

A imigração no Brasil e em Piracicaba é riquíssima. São pessoas que buscavam um novo mundo. Saíram muitas vezes sem malas, apenas com “a roupa do corpo”, passaram fome, deram suor e sangue pela luta de seus ideais. Deixaram história, e neste caso, foram perpetuados com o Bairro dos Alemães, uma das poucas, senão a única denominação geográfica na cidade em homenagem aos imigrantes. E tenham longa vida ! Prosit !

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 22 de setembro de 2024)