Páginas

domingo, 12 de outubro de 2025

Rua sem saída

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Na última quarta-feira (8 de outubro de 2025), a história de Piracicaba foi reescrita. Mais uma vez reescrita. E desta vez sua história foi resgatada à oito mãos, sendo dedilhada por Barjas Negri, Miromar Rosa, Kátia Mesquita e Fábio Bragança. Com a publicação do livro “1001 Ruas”, produção independente dos autores, resgata-se não apenas uma lista de endereços e sim personalidades homenageadas em logradouros como ruas, avenidas, vielas, travessas, viadutos e afins.

Para quem não tem destino, qualquer caminho serve, já dizia um velho ditado. Porém, as ruas são referência para nossa rotina diária. Imagine como eram as referências no passado: pegue a rua direita (que partia do rio Piracicaba), siga até o bairro alto (no alto da colina esquerda do rio) e próximo você encontra o bairro dos alemães (em homenagem à colônia germânica aqui estabelecida). São pequenos exemplos que nos norteiam na direção a ser tomada.

Passear pelas ruas é um conhecimento curioso e gostoso. Afinal, vamos à Governador visitar as lojas sem muitas vezes estudar quem foi Pedro de Toledo, interventor federal em São Paulo no início dos anos 1930, deportado para Portugal por ter colaborado com os paulistas na Revolução Constitucionalista. Aliás, existem poucas referências – apenas em anúncios em jornais – sobre a rua João Pessoa, anteriormente denominada de rua do Commércio e posteriormente Pedro de Toledo. A mudança de nome de qualquer logradouro hoje demanda não apenas da mudança das placas em cada esquina e sim na mudança cartorial e suas avenças financeiras.

Temos bairros com ruas que homenageiam a Segunda Guerra Mundial (Monte Castelo e Pistóia, no bairro Verde), assim como cantores (Francisco Alves e Ataulfo Alves, também no bairro Verde), países, aves, flores e outros. Mas “1001 Ruas” busca homenagear as pessoas que fizeram e construíram Piracicaba, num abecedário com diversas verbetes. Não são biografias extensas, mas referência necessária para saber quem é o nome estampado nas esquinas quando se coloca o pé na calçada ou no asfalto.

Também é uma forma de viajarmos no tempo com nossa memória que às vezes fica empoeirada. Talvez poucos se lembrem dos carros batidos, amassados e recolhidos pela Ciretran em sua sede ao lado da praça da Boyes, na rua Luiz de Queiroz onde hoje serve-se uma das melhores gastronomias locais. Ou de um tempo de antanho quando a rua do Porto era aquela conhecida hoje por rua Moraes Barros, já que ela é quem dava destino ao porto no rio Piracicaba. A própria rua do Porto, ao lado da avenida Alidor Pecorari era uma zona residencial até os anos 1980. Nos dias atuais é um centro comercial movido pela gastronomia servida à mesa.

Andar pelas ruas de qualquer cidade é possível ver belezas (como as grafites no Largo dos Pescadores) e as “feiuras” como lixo ou a má conservação das calçadas, entre outros.

O livro evoca memórias e esclarece algumas pessoas que não fazem ligação que alferes era a atual patente de tenente no Exército Português. E que José Caetano (Rosa) foi vereador, dono de usina e escravocrata. Além disso, foi um dos principais arruadores da cidade, numa era em que tudo era feito nos “zóio”, sem GPS nem nada.

Aliás, já que abordamos localizadores, alguns deverão se lembrar de como era difícil viajar para São Paulo, Campinas e Santos sem o Mapa Rodoviário 4 Rodas, publicado pela revista da Editora Abril. Dirigir sem ela era difícil. Mas dirigir com ela era pior já que o mesmo ocupava quase todo o painel dos veículos.

Neste interim surgiu o GPS. Tínhamos de pagar para suas atualizações. Não era como hoje no celular. Semáforos, radares, ruas sofriam alterações... dá-lhe atualização! E pagava-se por ela. Hoje, você viaja com o celular que lhe dá conselhos sobre policiamento a frente, ou veículo parado mais adiante ou objeto no meio da estrada. Ficou mais fácil. Ou, seja: o Waze é meu pastor e ele me guiará...

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 12 de outubro de 2025)

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Saci teve um pé em Piracicaba

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Saci teve um pé em Piracicaba. Aliás, teve seu único pé em Piracicaba. E não é ironia. Vamos usar uma história para descrever o porque disso. Há 100 anos atrás, as pessoas liam uma obra de Bram Stocker intitulada “Drácula” e, cada cabeça imaginava um jeito como deveria ser o Vlade Tapes, mais conhecido como o vampiro que se alimentava de sangue humano e vagava como um intrépido insone, fugindo do sol. Porém, foi Tod Browing em conjunto com Carl Laemmle Jr. que deu a imagem que conhecemos hoje, longe dos livros. Um sujeito de cara fechada, vestido de roupa negra e uma longa capa. Pronto ! Estava feito o estereótipo do vampiro noturno !

Pouco mais de 100 anos atrás, sem televisão, cinema e internet, a imaginação corria à solta. A conversação arrepiava as pessoas. Foi daí que se propagaram lendas urbanas e rurais, dentre elas o saci.

Coitado do nosso Pererê... Teve de caminhar a duras penas para que no imaginário popular tivesse a composição de uma pessoa de meia idade, segurando um cachimbo, vestido apenas de shorts e um gorro na cabeça. Sabia-se que ele era terrível para com todos, que dava assobios ensurdecedores, aparecia em redemoinhos os quais surgiam do nada ! Mas, como se elaborou esta aparência ?

Pois, bem. Monteiro Lobato, lá por volta de meados da década de 1910, utilizava as páginas do jornal “O Estado de São Paulo”, para fazer seus inquéritos. Foi aí que ele criou, em crônicas, seus pensamentos sobre o homem interiorano, depois reunidos no livro “Urupês”. Surge o Jeca Tatu, típico caipira, desleixado que vive no campo, pita um cigarro, e espera a vida acontecer. Foi neste Jeca que surgiu o nosso Jeca, o “Nhô Quim”, mascote do Esporte Clube XV de Novembro de Piracicaba. Uma história puxa a outra.

Foi nestes inquéritos do Estadão que Lobato questionou o vanguardismo da Semana da Arte Moderna, hoje inconteste revolução artística. Na época, ele considerava os trabalhos de Anita Mafalti como aberrações em forma de telas. O tempo foi cruel com Lobato, mostrando-lhe que os rabiscos de Anita criaram fama e alcançaram milhares de dólares quando postos a venda nos leilões.

“Inquérito sobre o sacy-pêrêrê” foi uma das suas articulações para que, em conjunto com os leitores pude criar a “cara” desta lenda contada em todo o Brasil. “Mythologia brasílica” era o nome da coluna. Aí é que Saci coloca o pé – com perdão para a expressão – na cidade de Piracicaba. Em 1º de março de 1917, o Estadão publica carta de Sebastião Nogueira de Lima ajudando a compor esta face do negrinho que aprontava suas estripulias, seguindo tradições indígenas e africanas que povoaram por muitos séculos as tradições orais.

Nogueira – que foi vereador, delegado e interventor federal em São Paulo – lançava curiosidades interessantes sobre o Pererê, criando inclusive uma música (também publicada naquela edição) sobre como deveria ser o assobio do perneta, lembrando o seu forte silvo.

Nogueira conta uma face admirada por Lobato: o saci sentimental. Aliás, não é o saci e sim vários sacis, todos com feições iguais, mas com sexos diferentes e idades também diferentes. Ele mesmo cita que, quando criança, ficou ensurdecido com o silvo de um saci chamando sua amada, num solfejo a la “rhtymo de polka”, conforme descrito naquela edição.

“Inquerito sobre o Sacy” virou um livro escrito por Monteiro Lobato. O depoimento de Sebastião Nogueira consta nele. Não dá para dizer, então, que Saci Pererê não seja piracicabano. E viva nosso cidade !




(Publicado na Tribuna Piracicabana de 11 de outubro de 2025)

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

História acessível

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Um acervo acessível. Não naquilo que se trata de acessibilidade com rampas. Mas, sim, acessível onde a pessoa estiver. É para isso que o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba tem trabalhado nos últimos anos. Pois, com a pandemia aprendemos muito. Surgiram aplicativos e plataformas de consulta a distância sem a necessidade de presença para pesquisar no material físico. Empresas aprenderam com o home office ou o modelo híbrido. Dias atrás foi destaque a demissão de 1 mil funcionários que estavam nestas condições num banco de renome no país.

Recentemente, folheando um jornal de 50 anos atrás notei que deveria tomar total cuidado pois ao virar de forma rápida o mesmo tenderia a rasgar. Não era este meu propósito. Se estou folheando um veículo da imprensa local lançado meio século atrás, quem seria eu nesta ordem? Não queria ser a ferramenta que impediria de tê-lo conservado por mais e mais anos.

Isso nos ensina muito. Institutos locais e centros de documentação estão cada vez mais restritivos com relação às consultas pessoais. Por conta destas condições e também por ações consideradas como vandalismos, as quais posso enunciar algumas aqui: o surrupiar de um bem; o recorte de parte da página; ou rasgar a página toda de um livro, um caderno etc.

Há receio de abrir documentos originais por vários motivos. Um foi enunciado acima. Outro é sua conservação. Três pastas encontradas recentemente em nosso acervo destaca a vida de Antonio Pádua Dutra, tudo muito bem conservado, com seus telegramas enquanto em terras europeias, assim como suas correspondências manuscritas um século atrás. Separadas em papel manteiga, estavam fotos da época. Tudo daria um livro. Se não for inventariado, não pode ser aberto à população.

Pois, bem. Há mais de dez anos nas gestões de Pedro Caldari e Vitor Pires Vencovsky, o IHGP tem se lançado ao mundo digital como forma de facilitar a propagação da história de Piracicaba. Para isso tem na plataforma Flickr mais de 13 mil registros fotográficos. O acervo de fotos do Jornal de Piracicaba dos anos 1980 a 2000 aos poucos está sendo disponibilizado. Importante salientar é que todo o acervo pode ser visto e baixado gratuitamente, em resoluções que vão da versão web até para a confecção de imensos painéis, como pode ser visto em redes supermercadistas locais.

Há o que ser feito. Há muito a ser feito, diga-se. O IHGP tem vídeos e palestras em plataformas de streaming. Está lançando agora em setembro seu podcast no Spotify. Em breve terá uma sequência entrevistas no seu videocast. Tudo para registrar a atualidade para o futuro e resgatar o passado com gente que possui muito conhecimento.

A história de Piracicaba remonta 258 anos de vida. Até mais, se formos levar em conta as expedições que por aqui se aportaram, mas não fincaram raízes, ou as monções discutidas mas nunca efetivadas pelos povoadores. Não temos toda esta história. Algumas delas só é possível em consulta presencial em Portugal, para onde eram enviadas cartas e deliberações em geral para escrutínio da coroa real.

Assim, criamos vários públicos que se interessam por um passado longínquo e curioso. Outro que viveram meados do século passado e lembram muito mais do que nós, porque conviveram com outras pessoas naquele período. E a geração que vive a expansão de Piracicaba com, por exemplo, as boates, os parques industriais, os shoppings centers e aquela memória mais afetiva que ainda povoa nossa lembrança, sejam elas dos anos 70, 80 ou 90... Ao estarmos no primeiro um quarto do atual século, cabe lembrar que os anos 2000 já têm uma carga histórica de passado. Uma carga preciosa a ser preservada e divulgada.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 21 de setembro de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 27 de setembro de 2025)

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Tadinho do “seu” Vitório ...

Nelson Gonçalves e Cobrinha

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba


Numa saudade que punge e mata, nos esquecemos do “seu” Vitório. Cancioneiro daqueles que não existem mais, cujos olhos vibravam enquanto entoava seu violão, que fazia serestas para doces mulheres que se prostravam nas sacadas das residências. Sacadas hoje nem existem! Ou estão cercadas por concertinas ou tiveram instaladas grades.

Vitório Angelo Cobra foi um resgate que o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba fez na sessão comemorativa de seus 58 anos de fundação no último dia 26 de agosto, na Câmara de Vereadores. Fizemos questão que o Hino de Piracicaba fosse executado por uma antiga gravação conseguida por um LP de 1974. Eis que na ocasião, a Miss Bicentenário Maria Graziela Victorino França veio e me confessou: “nos 200 anos de Piracicaba, a Câmara não tinha uma sede e a solenidade de aniversário ocorreu no palco do Teatro São José; enquanto estava eu para receber o título de Miss, ao nosso lado estava o ‘seu Cobrinha’ para tocar este hino”. Foi emocionante para ela na ocasião e foi emocionante ver no telão da Câmara a voz do “seu” Vitório Angelo estalar seu gogó em letras marcantes quando se refere a Piracicaba como “cheia de flores, cheia de encantos”. Por mais que seja uma gravação simples acompanhada de um violão e um teclado, foi importante este resgate. Isso porque na atualidade, Cobrinha vem sendo legado ao ostracismo, provocado por plataformas digitais de músicas, por mídias digitais que sequer pensaram em digitalizar obras locais como do próprio e referido Vitório Angelo, Pedro Alexandrino, Parafuso e outros seresteiros. Tal Hino de Piracicaba hoje é acessível e fácil de ser conferido nas vozes de Craveiro e Cravinho ou Aninha Barros. Novas versões, novas roupagens. Mas, nada tira o brilho de nosso cancioneiro mor acompanhado muitas vezes no teclado por Caçulinha. Quem nasceu em 1967 foi presenteado pelo poder público municipal com um compacto composto por quatro músicas cuja performance foi de Cobrinha, incluindo tal hino.

Me lembro nos anos 1990, quando funcionário da Rádio Alvorada AM, ter visitado Cobrinha em sua residência no Bairro Alto. Titio Luiz, ou Luiz Antonio Cópoli, não deixava escapar uma. “Pega o carro, vai na casa do Cobrinha e faz uma entrevista com ele pelo telefone”, dizia. Seu Vitório já estava cansado. Mas nunca disse não. Faleceu em 1995. Deixou um legado necessariamente a ser resgatado. Aos 15 anos de idade começou a dedilhar o violão ao lado dos irmãos Pedro, Salvador, João e Antonio, que formavam o grupo “Choro Cobra”. Foi pioneiro, pois tal “Piracicaba” chegou a ser gravada por ele e Mariano 93 anos atrás, em 1932, nos Estúdios da Columbia, em São Paulo, naqueles pesados discos de 78 rotações. No auge da carreira, foi membro de bandas nas quais estavam, entre outros, Leandro Guerrini e Francisco Lagreca. Dividiu o microfone com pesos pesados como Francisco Alves, Silvio Caldas, Orlando Silva e Vicente Celestino. Só feras!

Em agosto, numa das idas ao Cemitério da Saudade, parei no bolsão de estacionamento em frente e fitei por alguns minutos o busto de Cobrinha empunhando um violão na praça Vitório Angelo Cobra, Cobrinha. No local, de 1981 a 1988 ficou instalado o Monumento ao Soldado Constitucionalista, que retornou ao seu local de origem na praça José Bonifácio após acórdão com o Supremo Tribunal Federal. Na praça, lá está Cobrinha no alto do monumento olhando para o Cemitério e dedilhando para aqueles que hoje não mais estão no meio de nós.

Porém, o tempo é cruel. Ele acompanha o esquecimento de mãos dadas. O próprio poder público, que em julho de 1993, instituiu uma Semana em sua homenagem esqueceu desta festividade. Aproveite a vida, pois na morte, todos tomamos o caminho do esquecimento. E salve o “seu” Vitório !


quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Mensagem para nosso futuro

 Edson Rontani Júnior

Jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Não estou nesta fase, mas preservo as amizades com septuagenários e octogenários. Essas amizades surgiram 30 ... 40 anos atrás. Talvez mais, talvez menos. Eu também era mais jovem. Não faço qualquer diferença. Pelo contrário, mais ouço que falo pois sei que da mente destas pessoas sai muita vivência, história de um longo passado gostoso de ouvir pois confio em tudo e saboreio cada palavra dita.

Henrique Cocenza, escritor e professor na Unimep, escreveu certa feita um livro com o título “Antes que eu me esqueça”, se não me engano, no início dos anos 1990. Sábio título. Sábio pois o ser humano por sua natureza tem o dom de esquecer. Memorizamos apenas aquilo que repetimos sempre. Cocenza colocou no papel passagens de sua vida as quais tinha medo de esquecer com o passar o tempo. Ele faleceu, mas sua palavra e seu pensamento permanecem. Eu próprio, quando pego meus textos de 15 ... 20 anos atrás, estranho algumas passagens. Não me lembro delas. E fico boquiaberto pensando: “fui eu mesmo quem escreveu isso?” ...

Leandro Karnal dias atrás publicou na imprensa um imenso artigo de reflexões voltadas para a sua própria velhice. Mensagens escritas no hoje para ele mesmo daqui 20 anos. O ser humano é mutável, seu pensamento é perecível. É curioso compararmos o hoje em outros tempos. É como ver um caderno escrito por nós mesmos no passado. A gente estranha.

Desta forma, ficam algumas dicas para todos nós seja daqui dez ou 20 anos. Vamos à elas ?

- Espero que eu e você em 2045 tenhamos controlado o tempo. Quando jovens temos tempo, mas falta tudo à nossa volta, desde uma casa, um carro ou o dinheiro. Queremos comer uma pizza com a namorada mas falta a bufunfa. Quando estamos ativamente na vida, o tempo nos come tornando os dias curtos achando chato festas, aniversários, pizzarias, enquanto podíamos estar encolhidos em casa para tirar o atraso do sono ou daquele “não fazer nada” aos finais de semana. Devemos ser sábios em domar o tempo e não deixa-lo nos dominar, assim como devemos aprender com o dinheiro. Não sejamos escravo dele. Tomara que no futuro, tudo isso aqui faça sentido !

- Seja sociável. Com o passar do tempo, trocamos o olhar no olho pela revista, pelo álbum de fotografia, pela televisão e agora pela internet. Mesmo em rodas de conversa, é comum ver as pessoas sentadas ao nosso lado remexendo o Instagram num nocivo stalkear para saber o que fulano está fazendo, o que sicrano está comendo, e assim vai. Isso tem nome, chama-se FOMO, uma síndrome já tratada como doença. Gostoso mesmo, é jogar baralho, um jogo de tabuleiro, independente de fazer calor ou chover lá fora. Importante é sentir pessoas ao seu lado que um dia nos deixarão e, muitas vezes, sem dizer um “te amo” ou um “tchau”. Espero que entendamos isso no futuro.

- Não seja teimoso ! Sim. Você e eu não devemos ser teimosos com o passar o tempo. Parece que isso anda de mão dada na velhice. Semanas atrás estava eu numa farmácia na rua Governador esperando ser atendido. Repentinamente um barulhão. Olho para a entrada, um homem caído ao chão. Celular para cá, documentos para lá e ele estendido no chão com a cara espatifada. Caiu sabe-se lá como. O erguemos, colocamos numa cadeira e o mesmo começou a reclamar que doía sua face, a qual começou apresentar sinais de sangramento. Aparentava ser octogenário. “O senhor quer que avise alguém da família?”, disse minha esposa. A resposta: “eles não ligam para mim, estão passeando e de nada adianta ligar”. Para mim, pura teimosia. Sentimos dó, mas notamos um vazio na vida do mesmo num momento em que quatro ou cinco estranhos o socorreram e o mesmo negava ajuda de pessoas “sangue do seu sangue”, os familiares que estavam passeando.

Fórmula boa e fácil não existe. Talvez daqui uma semana eu leia isso tudo e pense que escrevi a maior besteira. Não sei, talvez leia tudo isso em 2045. Sem pressa, aliás.  

 

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

A sopa para a mosca pousar

Edson Rontani Júnior, jornalista e cinéfilo 

A teledramaturgia e o cinema parecem estar andando de mãos dadas à qualidade, coerência e na infinitude de ideias. Pouco antes da pandemia surgiram produções biográficas sobre expoentes de nossa música popular brasileira, a famosa MPB, termo que surgiu nos anos 1960 contrapondo à bossa nova. Muitas destas produções superaram expectativas. Podem não ter rendido o esperado na bilheteria, mas se destacam como excelentes peças na telona ou no streaming.

Eis que aparece “Raul Seixas – Eu Sou” lançado em março pela Globoplay e exibido a partir desta semana em sinal aberto pela TV Globo. São oito episódios que relatam a vida deste ícone do rock brasileiro e figura inconteste da sociedade brasileira. Vale destacar que o seriado é mais que Raul, é Ravel Andrade na pele do personagem principal, numa surpreendente interpretação aliada à fantasia como os brainstorms com Paulo Coelho na criação de letras das músicas.

A cada capítulo um espelho crescente como uma opereta maluca na qual sua infância na Bahia nos leva ao Raul criança, sonhador com extraterrestres, iludido com livros com conteúdo fantásticos que reverberam Jules Verne, Alexandre Dumas, Edgard Alan Poe e outros. De terno, gravata e pasta 007, ele perambula pelos escritórios da CBS do Rio de Janeiro mostrando seu desconforto em ser um “cidadão respeitado que devia estar alegre e satisfeito por morar em Ipanema”, como dizia seu hit “Ouro de Tolo”.

O seriado passa de meados dos anos 1960 até 1989 quando o ídolo morreu aos 44 anos de idade. Tem cenas surreais como a do elevador no qual encontra-se com Jesus Cristo e Elvis Presley. São ícones de sua fase grã-cavernista na qual procurava uma sociedade alternativa em plena ditadura militar. Até explicar que esta sociedade era uma religião e não uma ordem social, houve um hiato imenso, pago, aliás, por Paulo Coelho, comunista de carteirinha e autor de mirabolantes letras cantadas pelo mago do rock brasileiro.

É nesta ligação que cito outras obras do cinema nacional como “Tim Maia” (2014), “Elis” (2016), “Minha Fama de Mau” (2019). Todos mostram astros ricos, populares, rodeados de tietes, donos de sucessos musicais, porém presos a drogas e ao álcool. Raul era mais. Seguia o bordão: “drogas, sexo e rock’n’roll”. Vivia de festas até com estranhos. Bebia o dia todo além de atirar-se como corpo e alma no fumo e nas drogas. Mas é inconteste a capacidade de criar música, arranjos e, principalmente, letras em sucesso que lhe renderam shows e discos de ouro na época em que eram conquistados a cada 100 mil LPs vendidos. Subiu rapidamente e caiu rapidamente. Passou a ser contratado com desconfiança de que não terminaria seus shows de forma sóbria.

Era um “maluco beleza” no jeito de se vestir. Teve esposas e mulheres, assim como filhas. “Raul Seixas : Eu Sou” deixa evidente sua necessidade de estar presente no passado, como espelho ideal de sua vida. O pai ausente que esteve compondo, tomando suas “biritas” ou procurando seu ego enrustido numa religiosidade extraorbital. “Carimbador Maluco” foi o início da queda. “Eu gravando uma música para um programa infantil?”, chega a dizer. Rendeu-se à sociedade convencional para não morrer de fome.

A obra merece mais que ser vista e revista. “Raul Seixas: Eu Sou” é uma concepção concreta de que a teledramaturgia já segue os passos dos seriados americanos anos dos anos 2000 e 2010 e dos doramas coreanos da atualidade. Ou seja, estamos em plena sintonia com o streaming mundial ofertando bons produtos, consumidos facilmente, mesmo que Donald Trumpo invente de taxar nosso cinema e nossa televisão.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

A montanha dos abutres

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba


 

Uma pessoa curiosa fica presa numa caverna ao procurar relíquias indígenas. Soterrado, ele tem o auxílio de desconhecidos para se alimentar. Mas as rochas que caíram sobre ele impedem seu resgate. A história ocorre na cidade de Albuquerque, estado do Novo México, Estados Unidos. Um jornalista aproveita a situação para fazer o que se chamou em outras época de “jornalismo marrom”, ou seja, tirar proveito da situação para alcançar leitura e venda do material impresso.

Claro que a época é outra. No caso do curioso a ser resgatado, estamos na virada da década de 1940, quando os jornais tinham milhões de exemplares por dia, em que não existia concorrência da televisão muito menos da internet. As pessoas se informavam com o papel impresso, como este jornal. Um repórter que estava buscando um “furo jornalístico” e, quem sabe, reascender profissionalmente, vê no caso da caverna uma chance de brilhar. Como será feito o resgate? A vítima passa bem? O que ela pensa sobre seu futuro? Tudo era um capítulo atrás do outro, como vemos em novelas ou seriados. O jornalista nota que isso aumenta a venda do jornal impresso e eleva seu faturamento publicitário.

Porém, ele pensa: quando acabar, tudo volta ao normal. Minha reputação retorna à estaca zero. Meu ganho financeiro, também. Por que, então, nos postergar o resgate? Assim, ele começa a impedir o avançar da retirada do indivíduo do buraco.

Este é o filme “A montanha dos sete abutres”, de 1951, estrelado por Kirk Douglas como o inescrupuloso jornalista, dirigido pela batuta do polonês Billy Wilder. Ele foi um dos melhores diretores norte-americanos do cinema. Toda sua carreira é permeada por sucessos comerciais e filmes que colocam nossa mente em parafuso.

Bom, de 1951 para 2025 são 74 anos de distância. A sociedade mudou. O jornal impresso mudou. O engajamento em mídias digitais é algo contemporâneo que alterou o meio que vinha numa boa cadência desde os anos 1800.

Dias passado chegou a nós a informação da publicitária paulistana que caiu na boca de um vulcão na Indonésia, resgatada dias depois sem vida. Alguma similaridade com o filme anteriormente citado? Entre sua queda e seu resgate, foram poucos dias. Mas o engajamento nas mídias sociais mexe com algoritmos que interessam aos processos midiáticos atuais. Tanto que o assunto ainda é pautado, semanas depois. No mesmo final de semana, um balão com mais de 20 pessoas pega fogo, em Praia Grande, Santa Catarina, e eleva os algoritmos digitais.

A curiosidade do ser humano hoje é guiada por altos e baixos do Instagram, Tik Tok e outros. A curiosidade em ver “o circo pegar fogo” com os outros é peculiar do ser humano. Nelson Rodrigues já falava que é mais curioso ver o que ocorre na esquina de casa do que nos Estados Unidos. Não à toa criou seu espetacular “O beijo no asfalto”. George Orwell em “1984” ditou regras que hoje movimentam milhões de dinheiro com a fórmula do “grande irmão”, ou o big brother como conhecemos. Olhamos pelos canais disponíveis o que as pessoas fazem trancafiadas numa casa.

O voyeurismo passou a ser palavra de ordem. Celular na mão e o processo midiático passando na nossa frente. Risada daqui, comoção dali ... alimentos que movem o ser humano.

Submarino russo que submergiu e nunca mais voltou a tona em 2000. Mineiros soterrados no Chile em 2010. O padre que saiu voando com bexigas. Avião que caiu na Índia em junho. Avião com o time do Chapecoense que caiu em 2016. Estes são exemplos de recordações que fixam em nossa mente e nunca mais desgrudam. Precisamos disso?

Assim como a jovem de 25 anos que caiu na boca de um vulcão indonésio, fica a reflexão passada por Amir Klink, durante navegação que ele fez em águas antárticas: o silêncio. Ele é ensurdecedor pois não se ouve nada entre geleiras. E com isso ele olhou para seu interior e descobriu a solidão fazendo desta força uma forma de buscar e garantir a vida.

(Publicado no Jonal de Piracicaba de 29 de junho de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 5 de julho de 2025)

quinta-feira, 26 de junho de 2025

“Meu melhor amigo”

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Domingo. Dia de descanso, do almoço demorado, da televisão à toa e do cochilo a tarde. Não sei porque, mas pela manhã me veio à mente um livreto intitulado “Manuscritos do Mar Morto”, publicado por um jornal local na década de 1950. Confesso que já o folheei mas não o li por completo, isso há cerca de 30 anos atrás. Ainda no domingo, mais a tarde, baixa-me a tristeza, a solidão e o silêncio. Quietude. Algo inexplicável que se encaixa posteriormente. Mas, naquele momento, a distância entre a razão e o coração torna-se imensa e não consigo ligar os fatos. Bola para a frente! Eis que no início da noite me vem a informação de que falecera Oswaldo de Andrade. Explica-se aí esta sensibilidade que tenho, já vivida tantas e tantas outras vezes com a partida de parentes como se eles viessem me dar seu adeus e eu, ingenuamente, não conseguia unir as situações.

Oswaldo de Andrade foi uma referência em toda minha vida. Amigo de infância de meu pai, Edson Rontani, fizeram uma parceria como Oliver Hardy e Stan Laurel ou Ginger Rogers e Fred Astaire, para citar aquilo que eles mais gostavam: o entretenimento. Andrade teve sua profissão como advogado, mas colaborou com a imprensa local por diversas vezes. As mais recentes colaborações foram artigos de cultura em O Diário e também no Jornal de Piracicaba. Quem folhear os arquivos de 50 anos atrás encontrará nas páginas destes matutinos a assinatura deste escritor agora saudoso. Partiu no último domingo.

Encontrei-o pela última vez no jantar pelo dia do cirurgião-dentista em outubro passado, ainda recuperando-se do falecimento de sua filha Fernanda. Estava alegre com uma gravata borboleta ao lado de sua amada Zenaide para a homenagem de gala ao seu filho Oswaldo Scopin de Andrade, profissional de reconhecimento internacional na odontologia, que na ocasião seria homenageado como o Dentista do Ano. Haaa ... se eu soubesse que aquele seria nosso último encontro ... A vida é assim. Temos conhecimento que um dia termina. Pensamos ser forte para encarar a morte, mas quando ela chega, desabamos e chão algum segura.

Rontani pai morava na rua Boa Morte, quase esquina da rua Ipiranga. Eram os anos 1940. Ainda guri, estudou com Oswaldo da Andrade que morava a poucas quadras dali, na rua dom Pedro I em frete à Societá Italiana de Mutuo Soccorso. Quando Rontani entrou pela primeira vez na casa de Andrade, ficou maravilhado. O pai de Oswaldo era gerente da Rede Férrea Sorocabana e tinha em sua casa todo aparato necessário para a rotina administrativa, como papel, lápis, borracha, carimbos ... Rontani já tinha paixão por desenho, arte que o tornou conhecido até as gerações atuais, através do personagem Nhô Quim do XV de Novembro, do fanzine ou da coluna Você Sabia? publicada no Jornal de Piracicaba. O que ele não tinha são estes materiais. “Seu pai ficou admirado quando viu em casa tantos recursos que meu pai dispunha”, disse seu Oswaldo certo tempo atrás durante uma ligação telefônica que fiz a ele. Era muita ostentação para quem desenhava em papel de pão com um lápis para poder usar a borracha, apagar tudo o que tinha feito e desenhar de novo.

Andrade também era fã do desenho. Do cinema também. Rontani e Andrade recolhiam de tudo que era vendável – estamos falando aqui de pequenos petizes de 10 ... 12 anos de idade. Pegavam jornal e vidro (sim era reciclável e bem pago devido à escassez provocada pela Segunda Guerra). Juntavam, vendiam no ferro-velho e compravam ingressos para assistir aos seriados no Cine São José. Estes seriados eram lançados pela Republic, Columbia e outras produtoras americanas, tinham duração de 15 a 20 minutos e apresentavam um episódio por semana (situação depois copiada pela TV). Lá desfilavam Nyoka, Flash Gordon, O Sombra, Superman e tantos outros. Era tanta emoção que existia a vontade de eternizar aqueles momentos. Rontani e Oswaldo desenhavam, assim, seus próprios personagens em revistas de quadrinhos, com base no que viam na telona, que depois eram emprestadas aos amigos das escolas. Estes originais ainda hoje existem. Com o tempo, cada um seguiu seu caminho. Lembro do meu Rontani ainda adulto fazendo almanaques de Natal em nosso sítio do Iteperu-Guaçu para presentear Oswaldo. Todo este conhecimento, trouxe a Piracicaba o título de cidade que criou o primeiro fanzine da América Latina. Feito no fundo de quintal de casa, mas deixou história perpetrados nos anais comunicação.

Confesso que uma das heranças recebidas em vida foram as amizades passadas de geração em geração. De pai para filho. Algo intangível de grande valor sentimental. Foi assim com Oswaldo de Andrade, Waldemar Bilia, Arthemio de Lello, Antonio Oswaldo Storel e tantos outros que foram amigos de meu pai e se tornaram meus amigos. Com isso se fez uma amizade de longa data.

O céu receba seu Oswaldo para que junto ao seu melhor amigo possa continuar a dar sequência nessa fascinação pelo fantástico.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 25 de junho de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 28 de junho de 2025)