* por Edson Rontani Júnior (matéria publicada no Jornal de Piracicaba em outubro de 2006)
O rótulo tradicional criado por Felício Rotundo
Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro da Cachaça
apresentam um fato curioso. A Caninha Tatuzinho é uma das quatro marcas mais
consumidas no mercado brasileiro de cachaça. Ela detém 7,2% do mercado, segundo
estimativas para 2006 apontadas pelo Instituto, embora o consumo interno venha
diminuindo num ritmo de 2 a
3% ao ano e a exportação tenha se estagnado nos últimos cinco anos.
Um fator interessante a se ponderar é que a Caninha Tatuzinho, produzida
em Piracicaba entre os anos 40 e a década de 70, cultiva ainda uma extensa
lembrança na mente do consumidor, principalmente pela maciça divulgação feita
nos anos 60.
Quem não se lembra do bordão “O melhor aperitivo nacional” ou do jingle
veiculado nas rádios e tvs que cantava “Ai tatu, Tatuzinho, me abre a garrafa e
me dá um pouquinho”? Recentemente, um documentário veiculado pela TV Cultura
apontou este comercial como um dos cem mais lembrados pelo consumidor. Até a
Rede Globo, quando exibiu especiais sobre os seus 30 anos, incluiu o comercial
num desses programas. É possível encontrar referências deste período no Orkut
(www.orkut.com) e no Youtube (www.youtube.com)
A primeira fábrica de bebidas na Travessa Maria Maniero
Anna D´Abronzo, 82, diretora-secretária por quase 30 anos da D´Abronzo
Sociedade Anônima, que engarrafava a Caninha Tatuzinho, lembra que, desde a
venda em 1969 da marca para o Grupo Três Fazendas (hoje Indústrias Reunidas de
Bebidas Tatuzinho 3 Fazendas, com sede em Rio claro), tornou-se clara que a
propaganda em cima da bebida diminuiu. “O que temos retido é uma mensagem
propagada ao longo dos anos 50 e 60, quando foram feitas divulgações nas
principais emissoras de rádio e tv de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná e que se
perpetuaram na cabeça de muitos”, relata. Ainda hoje é comum ligar Piracicaba à
marca Tatuzinho, embora a fábrica situada na Unileste tenha sido desativada.
Publicitários conhecem este fenômeno e
dizem que, quanto maior a massificação na divulgação de uma marca, maior será
sua lembrança no consumidor. Daí surgiram as corriqueiras pesquisas top of mind, lembrando a marca que
primeiro vem à cabeça do comprador. Quem não se lembra da cerveja número um ou
da cerveja dos amigos ? São peças com no mínimo dez anos desde seu lançamento e
que ainda hoje merecem um espaço em nossa lembrança.
Cantores de rádio fazendo marketing da caninha nos anos 50
O publicitário Osvaldo Luis Baptista, 42, professor da Universidade
Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e tecnólogo do marketing no varejo, lembra que
“a propaganda age como um tempero na mente do consumidor, pois a memória tem lembrança de coisas que fazem da
nossa vida um momento inesquecível”. Ele até se recorda de publicidades da
Caninha Tatuzinho vistas e ouvidas quando era criança e, portanto, quando não tinha
idade apropriada para ser um consumidor da bebida. “A explicação mais plausível
é a freqüência e impacto da mensagem e envolvendo a mídia de massa, pontos de
venda, que, nesse caso, seriam os bares, empórios, armazéns, enfim, todo varejo
de bebidas”.
A D´Abronzo Sociedade Anônima, que fabricou a Caninha Tatuzinho de
meados dos anos 1940 a
1969, foi fundada em 1909. Quando vendida 1969, os novos proprietários
decidiram dar continuidade à um mercado já conquistado, sendo que por anos a
Tatuzinho foi a mais consumida no território nacional. Hoje, o produto, apesar
de dificilmente ser encontrado nos super e hiper mercados locais, ainda tem a
apresentação pela qual se notabilizou. “O Grupo 3 Fazendas manteve o mesmo
rótulo (criado por Felício Rotundo, dono de uma gráfica em São Paulo que fazia
embalagens para a Kibon), o mesmo nome e a mesma composição alcoólica da
caninha Tatuzinho fabricada nos anos 50 e 60 demonstrando ser ainda um produto
que provoca a venda”, diz Pasqual D´Abronzo Neto, 51, filho do diretor comercial
da Tatuzinho, Humberto D´Abronzo, já falecido.
Propaganda no auditório de uma emissora de rádio nos anos 50
em São Paulo
Comerciais nas emissoras de rádio eram comuns. Como na época a tv ainda
estava em desenvolvimento, o grande entretenimento das massas era o rádio. Os
principais programas de auditório tinham o patrocínio da Tatuzinho. Isso na
capital paulista, no Rio de Janeiro e no Paraná. O jingle “Me abre a garrafa”
foi veiculado nas rádios e nas tvs por mais de cinco anos. Caiu no gosto
público, assim como o aperitivo.
Nas principais rádios do interior paulista, a Tatuzinho patrocinava os
programas de auditório, as transmissões esportivas e os programas de futebol. A
TV Record e a TV Tupi foram as principais propagadoras da marca Tatuzinho em
todo o país. Conseguiu-se, também, após muita negociação, que o jornal “Gazeta
Esportiva” aceitasse colocar abaixo de seu cabeçalho na primeira página o
slogan “Tatuzinho – O Melhor Aperitivo Nacional”, algo inconcebível para a
liberdade de imprensa.
Out-doors eram raros no Brasil, mas a Tatuzinho investiu
nisso nos anos 50, como este exemplo situado em Santos
História
- A idéia de criar em Piracicaba uma fábrica de bebidas partiu de Paschoal
D´Abronzo, imigrante italiano vindo ao Brasil em 1896. Fixou residência em
Piracicaba onde criou seus cinco filhos (Maria, Humberto, Luzia, Anna e Suzana
– as três últimas, ainda vivas). Em 1909, instala uma fábrica na Travessa Mania
Maniero, Vila Rezende, e passa a produzir refrigerantes (“Jatubaína”, “Gengi-Birra”,
“Gasosa”, “Maçã” e “Moranguinho”), xaropes (groselha, capilé, tamarindo,
abacaxi, limão) e vinagre.
Marketing no varejo – Foto de mercearia tirada em março de
1955 na cidade de Franca
No final dos anos 30, Paschoal começou a engarrafar a pinga adquirida de
um distribuidor, Antonio Basaglia. Ele vendia o aguardente em barris de 100 ou 200 litros. Porém, era
um volume muito grande para o consumidor final. Seu filho, Humberto, teve a
idéia de comprar os barris e envazar garrafas de 750 ml. (medida ainda
utilizada pela maioria das garrafas de vinho). O mercado crescia e a passaram a
ser comprados tonéis de 5 mil e 10 mil litros. Foi uma revolução na época. Hoje
o ocorre o inverso, pois o Instituto Brasileiro da Cachaça aponta que a venda a
granel da cachaça tem aumentando e a venda do produto engarrafado vem
diminuindo. A criação de alambiques caseiros tem sido o principal concorrente
da industrialização.
Anna D´Abronzo diz que “produzir e engarrafar refrigerante nos anos 40 era
enfrentar concorrência com outras marcas que se proliferaravam e a aguardente
ainda era um mercado não explorado”. A cerveja ainda era um investimento alto e
concentrado nas mãos de empresas de grande porte como a Brahma e a Antarctica. A
gigante americana Coca-Cola começa a realizar violentas investidas no mercado
brasileiro.
Marketing no varejo – Foto de mercearia tirada em março de
1955 na cidade de Franca
“A decisão foi motivo de controversas na família – diz Pasqual D´Abronzo
Neto – pois ela foi tomada por Humberto D´Abronzo durante viagem de seu pai,
Paschoal”. Ele partiu de Piracicaba para Congonhas do Campo, Minas Gerais, a
fim de se encontrar com parentes, numa época em que uma viagem dessas demorava
uma semana e a visita se estendia por semanas. Naquela vez, ela durou três
meses. Quando retornou, Paschoal viu Humberto transformar a fábrica de
refrigerante em indústria de engarrafamento de caninha. Foi uma atitude de
risco, mas que o tempo consolidou como lucrativo. A D´Abronzo cessa a
fabricação de xaropes e refrigerantes em 1953 e um ano depois passa
exclusivamente a engarrafar caninha.
A Tatuzinho se expande comprado terrenos na
travessa Maria Elisa e na avenida Rui Barbosa, em prédios ainda hoje existentes
e utilizados pelo comércio da Vila Rezende.
O processo unia o industrial e o manufaturado. Anna D´Abronzo recorda
que após ser mecanicamente engarrafada e sua tampinha lacrada, funcionários da
linha de produção colocavam uma fita de papel no gargalo que era o selo do
governo para produtos industrializados e na seqüência embalada em papel de seda
e colocada em caixas. As
caixas eram uma história a parte. Anna diz que “eram caixas de madeira, pesadas
e que comportavam 24 unidades de garrafa”. Ela considera as atuais caixas de
plástico um invento engenhoso. “As caixas de madeira não se estabilizavam uma
em cima da outra, tinham seu fundo arrebentado facilmente fazendo com que as
garrafas caíssem e quebrassem”. A Tatuzinho tinha um marceneiro que ficava a
disposição 24 horas da empresa para remendos nestas caixas, pois, se faltasse a
caixa, o produto não poderia seguir para a venda. Possuía uma frota de 70 caminhões
que a cada viagem transportavam 6 mil garrafas.
Máquinas do leste europeu e da Argentina foram adquiridas possibilitando
o envazamento de até 45 mil garrafas por hora, capacidade na época alcançada
apenas pela Brahma e Antarctica no segmento cervejeiro. No transporte de uma
das máquinas, que pesava 62 toneladas, de Santos para Piracicaba, houve a
necessidade de interromper o trânsito na Via Anchieta. A máquina ocupava a
pista toda. A D´Abronzo instala 12 tonéis de 800 mil litros cada um em sua chácara
situada no bairro Itaperú para atender a demanda nacional.
Humberto D´Abronzo mostra a Rocha Netto o novo rótulo
utilizado nas garrafas no início dos anos 60
Criador - Humberto D´Abronzo
é o exemplo de imigrante que soube aproveitar a vida. Era o tipo de pessoa que
tinha por hobby o trabalho. Acumulava diversas funções (foi diretor do basquete
masculino local, presidente do XV e lançou-se na política). Era um empreendedor
nato. Tinha a filosofia de que só se ganhava dinheiro quando se gastava
dinheiro. Era formado como contador, mas tinha uma visão mais ampla do mercado.
Foi o responsável pela área comercial da Indústria de Bebidas Tatuzinho. “Como
fabricante, não gostava da caninha pura, mas tinha uma queda pelo vinho nos
almoços de família e, nas festas caseiras, exigia sempre batida de caninha com
maracujá”, lembra seu filho Pasqual D´Abronzo. Como bom italiano, se aliou a um
processo administrativo familiar condenado hoje pelos MBAs e administradores de
sucesso. A diretoria da empresa era composta por familiares. Seus cunhados –
Antonio Martinelli, Sisto Cório e Jorge César de Vargas – comandavam as
negociações com o varejo, vendiam o produto e levavam o nome da “Noiva da
Colina” para muitas cidades, principalmente do sul e sudeste brasileiros. Rio
de Janeiro, São Paulo, Santos e norte do Paraná eram os principais centros
consumidores da Caninha.
Humberto D´Abronzo (esquerda) discute plano de mídia com
diretores do jornal “Gazeta Esportiva”
O publicitário
Osvaldo Baptista crê que a fabricação, divulgação e logística utilizadas na
época foram exemplares. “Um produto líder no seu segmento, paralelo à uma boa
campanha de divulgação, dá a sensação da Tatuzinho ser, na época, uma das poucas
empresas que investiam em marketing, não comparando como a atualidade na qual
temos uma infinidade de marcas disputando mercados”, diz.
O próprio nome “Caninha Tatuzinho” tem sua
história. Caninha pois era feita com uma cana especial, mais fina. Pinga e
cachaça sempre foram nomes pejorativos. Quem gosta de ser chamado de “pinguço”
ou “cachaceiro”? Caninha dava um tom de aperitivo, base para coquetéis e
batidas. Dizem que Tatuzinho veio em decorrência, sem comprovação histórica, de
um indivíduo que, quando bebia, deitava e rastejava no chão como um tatu.
Dizem que muitos bebem para esquecer. Quem bebeu Tatuzinho, nunca se
esqueceu. Sua memória é viva ainda hoje.
Linha de produção da Tatuzinho nos anos 1950, aparecendo entre outros, Jorge César de Vargas, Humberto D'Abronzzo e Anna D'Abronzo
Linha de produção já mecanizada nos anos 1960
Cachaça era moeda de troca por
escravos
O historiador Luis Felipe de Alencastro diz que a cachaça era a moeda
mais valorizada na época do Brasil colônia para o escravagismo. Em “O Trato das
Viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul – Séculos XVI e XVIII” ele
afirma que os portugueses proibiram a comercialização do produto para garantir
ao mercado europeu o consumo da bagaceira e do vinho. A cachaça virou, então,
uma moeda no mercado paralelo para a compra de escravos negros para o Brasil.
Angola e Luanda foram os países que mais comercializavam a mão de obra escrava
pela bebida. Um em quatro negros trazidos destes locais eram trocados pela
cachaça.
D'Abronzo (direita) recebe visita da imprensa paulistana
2 comentários:
Parabéns pela belíssima matéria. Adorei as fotos.
Na época de sua existência aqui, a Tatuzinho levou o nome de Piracicaba por todo o Brasil.
Parabéns pela belíssima matéria. Adorei as fotos antigas.
A Tatuzinho, quando de sua existência aqui, levou o nome de Piracicaba por tod
o o Brasil.
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