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quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Divagações natalinas sobre Dickens

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba


Blem ! Blem ! Dez outros blens até completar meia-noite nos sinos da Catedral de Santo Antonio. Ainda insone na cama, retiro meus óculos, acelero o ventilador para afagar o causticante calor de Piracicaba. Noto que, em meu peito, repousa um livro que estava lendo. “Histórias de fantasmas”, coletânea de contos de terror de Charles Dickens, escritos cerca de 200 anos atrás. Não sei por qual motivo, mas havia parado no conto de duendes que sequestram um coveiro.

Eis que me dou conta da presença de alguém sentado em meu quarto. Pronto ... seria a insolação depois de um dia exaustivo com temperaturas próximas aos 40 graus ?

- “Não, senhor ! Sou o fantasma do passado”, disse-me pausadamente.

“Cáspita ! Bem hoje que começam minhas férias?”, balbuciei ... Levanto não de camisolão como vestia Ebenezer Scrooge mas sim de shorts buscando uma camiseta para me cobrir. “Vamos lá seu fantasma do passado, mas não vamos muito longe, não”, disse eu.

Ele me fita. Indaga o que queria eu dizer com “tão longe”. Emendei: não geograficamente e sim pela cronologia. Nada disse, mas como num filme hollywoodiano o relógio volta para trás ... 2000 ... 1990 ... 1980 e estaciona em 1970. Pensei ... ao menos num período que comecei a viver.

Não sou tão avaro quanto Scrooge, nem tenho o seu potencial financeiro. Por que então fui escolhido para viajar na cola do fantasma do Natal passado ? Talvez pelas histórias que vem diariamente por nossas cabeças, não buscando erros ou acertos, mas relembrando com nostalgia de um tempo que não volta mais.

Num clima festivo vamos à rua Governador Pedro de Toledo, com famílias passeando e visitando as vitrines lindamente decoradas. Perdíamos um tempo danado babando nas vitrines que nos apresentavam desejos de consumo impossíveis. Como eram lindas a Loja da Lua, A Musical, Joias Caruso, Briveste e a Som 6 onde ouvíamos música e sequer comprávamos um LP. Que linda decoração da Casa Raya ao lado do Jornal de Piracicaba: colocaram um Papai Noel pedalando uma bicicleta ergométrica. Valeu, seu Armintos Raya ! E aquele bando ali ? “Eles pensam em fazer um salão de humor”, diz o fantasma...

Bom ... a noite é curta. Natal Presente me leva para os anos 1980. Vemos a praça José Bonifácio ganhar novos contornos. Irá virar um calçadão. Monumentos para fora. Opa ! Um pouco mais para a frente do tempo, a cidade ganha dois “shoppings” o Zilliat e o Cidade Alta. Era aquilo que hoje chamamos de malls. Shopping mesmo só viria em 1987. Nada mais ter que ir a Campinas para compras. Na ESALQ, famílias passam para ver a iluminação colocada nos prédios. Mesmo local onde o Guarantã apresenta sua “Paixão de Cristo”, depois levada para o parque da rua do Porto. A praça Alfredo Cardoso em frente ao Mercado Municipal lotada de ônibus. Intransitável ... Placas de todas as cidades da região. Eram as aulas da Unimep no campus Centro. Repentinamente, silêncio ensurdecedor. “Poxa, fantasma do Natal Passado, agora doeu ... nos anos 80 minha geração chegava aos 18 anos ... podia tirar carta ... foi aí que perdi amigos de infância com suas motos, em inabilidades que poderiam ser evitadas, e tê-los ainda hoje ao nosso lado”, sussurro com uma lágrima.

Anos 1990 chegam com uma novidade chamada Cabo Total, televisão por cabo. Adeus, tv com chuvisco ! E aquilo ali na Paulista ? Que aglomeração. Era o Sambódromo da cidade. Nossa ! Nem me lembrava mais !

Anos 2000 ... Anos 2010 ... Muita coisa passou em tão curtos minutos. Impossível descrever aqui... Fim de 2019, na China um vírus mata milhares diariamente. Instala-se a pandemia.

Uma sirene na rua me joga para o outro lado da cama. Uma da madrugada. Eu deitado na cama. Tomo um gole de água. Faz 31 graus. Coloco o livro de terror de Dickens de lado e durmo. Deixemos o futuro para amanhã.

Publicado no Jornal de Piracicaba de 20 de dezembro de 2023 e na Tribuna Piracicabana de 23 de dezembro de 2023.



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