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domingo, 28 de fevereiro de 2021

Cultura com rótulos

Edson Rontani Júnior, jornalista

Houve uma época em que era como sentir perfume... Abrir um LP e exalar o cheiro de sua capa, ou pegar uma revista e aproximá-la do nariz para que o olfato fosse tentado pelo seu cheiro de tinta ... cheiro de novo. Essa época é desconhecida para alguns. Para os conhecedores, é pura nostalgia!

O livro impresso, a música gravada em cassete ou LP, o filme em Super-8 ou VHS, entre outros itens, formavam o supra sumo da cultura com rótulos. Para se ter noção, você colocava o bolachão numa pick-up (toca-discos ou vitrola como diriam os mais antigos) e, num rito supremo, viajava com a música, acompanhava as letras do encarte e se inebriava com as fotos da capas (algumas, inclusive, com certo apelo que mexiam com a libido masculina). 

Foi uma época de cultura com rótulo. Isso mesmo. Como o rótulo que identifica o refrigerante de cola ou a caixa do tênis de marca. O mundo digital acabou com isso. Consumimos livros com capas simples, sem trabalho artístico, com títulos muitas vezes apelativos e conteúdo ínfimo e no formato de e-book. As músicas em streaming ou em MP3 não trazem tais rótulos. Para conhecer o clip ou ler mais sobre seu intérprete, necessitamos de buscadores ou sites de vídeo. Antes, até os anos 1990, ouvia-se a música no rádio, comprava-se a mídia e, nos jornais, revistas e TV, tínhamos o complemento visual do artista. O show midiático diante do mundo de estrelas, mudou muito. Ganhar um disco de platina ou de ouro seguem formatos que caíram em desuso. Não existe mais a “parada de sucesso” com as músicas mais tocadas nas emissoras. Democratizou-se o acesso à música criando-se uma generalização assustadora com opções e formas de acessá-las. Por um outro lado, deixamos de ser reféns de emissoras de tv e rádio que nos injetavam músicas a bel prazer. Nossa única opção era mudar o dial.

Os discos de acetato, conhecidos por 78 rotações, traziam poucas músicas. Uma de cada lado no início. Depois passaram a ter mais. No Brasil, a RCA Victor lança a Victrola, nome comercial para um aparelho que tocava discos. O produto era a música nele gravado e as capas eram simples, impressas em papel jornal. Com o tempo, passaram a receber desenhos e logotipos das gravadoras. Quando o LP surgiu, nos anos 1950, passou-se a ter mais músicas (5 a 6 em cada lado) e a concepção artística mudou com manifestações artísticas entre desenho e fotos em ambos os lados de sua capa. Era comum ter um prefácio na contra capa escrito por alguém de renome. Tivemos um fator de proximidade entre o intérprete e seu público, seus fãs. Quantas jovens não compravam os discos apenas para ter a foto de seu ídolo em papel acartonado em sua estante ...

Na década de 1960, a Phillips cria a fita cassete, tornando portátil o som em veículos e em gravadores de mão. Era uma sensação que cheirava à ostentação. No início dos anos 1980 surge o walkman criado pela Sony. Uma forma individual de ouvir música em fita cassete e o aparelho podia ser acoplado na cintura da calça. 

Em 1981 surge o CD, compact disc. Gravado a laser. Piracicaba foi uma das primeiras produtoras do CD no Brasil, através da Phillips que por aqui se instala na Unileste, partindo em seguida para a Zona Franca de Manaus devido aos incentivos fiscais.

No final dos anos 1990, o Napster cria uma briga comercial envolvendo os direitos autorais, afinal era possível compartilhar pela internet músicas sem autorização alguma. O mercado tenta regular isso com o iPod, tocador digital que foi o princípio dos aplicativos de streaming. Com eles, os rótulos passam a ser excluídos do currículo do artista. Apenas nome e canção são apresentados. Antes, líamos até o seu tempo de execução e os respetivos autores da canção e da letra.

Para se ter noção o quanto importante foram os rótulos das músicas, há de se lembrar que existem livros que catalogaram as 100 melhores capas de LPs divididos por década.

E ainda para comprovar a mudança comportamental que tivemos com as capas, lembra-se daquela língua berrantemente vermelha? Pois, é. Dela poucos sabem quem foi seu autor, mas muitos sabem do que se trata. E, alguns, vão lembrar que foi o ícone artístico que ligou um rótulo ao grupo Rolling Stones. Bons tempos !

(Publicado no Jornal de Piracicaba em 24 de fevereiro de 2021)

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