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quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Já vivemos sem iluminação

 Edson Rontani Júnior é jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

As tempestades dos últimos dias provocaram uma reviravolta na vida de muitas pessoas. Na capital paulista, cerca de 100 mil lares ficaram sem energia elétrica e, com isso, perderam mantimentos conservados sob refrigeração. Banho ? Só se for gelado. Nem energia para carregar o celular as pessoas tiveram acesso. Distrair como ? Sem celular, sem televisão, sem internet, sem luz.. Muito se falou sobre a poda preventiva de árvores, a privatização do fornecimento de energia elétrica, a culpa política da situação.

Mas como fazíamos no passado ? Explicam curiosos locais como Leandro Guerrini, Samuel Pfromm Neto e Maria Celestina Teixeira Mendes Torres com suas publicações sobre a história de Piracicaba. Antes da luz, fez-se o fogo. Não é a toa que ainda usamos expressões como “segurando vela” ou os mais antigos citavam que ao ir no supermercado deveriam comprar uma lâmpada de 40 velas, em parâmetros para o posterior watts quando surgiu a energia elétrica.

Em fevereiro de 1873, a Câmara de Piracicaba envia solicitação ao Governo Provincial solicitando 50 lampiões de querosene para instalação na cidade. São Paulo na ocasião havia trocado os postes de querosene por iluminação a gás. Assim, os postes anteriores seriam inservíveis, interessando à edilidade piracicabana que custearia o transporte da capital para cá.

Deve ter passado despercebido por grande maioria, mas meu papel aqui é lembrar alguns destes fatos, dentre eles o de termos comemorado neste 2024 os 150 anos da iluminação pública na “Noiva da Colina”. Sim ! Foi no dia 14 de fevereiro de 1874 que a cidade ganhou postes com iluminação à querosene. Claro que a iluminação não era aquela maravilha e nem dava tanta claridade, mas o piracicabano de então tinha segurança em voltar para casa, retornar de uma visita ou buscar algo na farmácia ou no comércio se é que funcionavam à noite. Lembremos que daí vem outra expressão “dormir e acordar com as galinhas”, sendo que estas se põem a dormir com o escurecer ou levantam piando com o raiar do dia. A iluminação pública era como o lampião de querosene utilizado nas residências. Tinha uma quantidade do líquido e um pavio de tecido. Leandro Guerrini, por sua vez, cita o “Almanak de Piracicaba para 1900”, dizendo que o cessionário da iluminação pública local foi um tal de Manuel Ernesto da Conceição.

Guerrini lembra que os postes ficavam nas esquinas. O querosene em cada poste tinha uma determinada medida que garantia a iluminação até as 22 horas. Lampiões similares ficavam no interior das residências e estabelecimentos que serviam gastronomia aos comensais. À escuridão, sem Netflix, celular ou qualquer outro entretenimento, os olhos cerravam mais rápido atraindo o sono e jogado nossos ilustres cidadãos aos braços de Morfeu. E tenha uma boa noite !

Mas, - pergunta o curioso leitor- e o gelo, o sorvete, a carne congelada ? Vamos com calma. A refrigeração veio décadas depois. Carne durava se colocada em imersão de sal, igual ao bacalhau que conhecemos.

Algumas semanas – acho que foram várias semanas – escrevemos aqui sobre a iniciativa de Luiz de Queiroz em assumir a iluminação local através da energia elétrica, alcançada com geradores movidos pela água do rio Piracicaba em sua fábrica de tecidos, hoje lembrada como Boyes. Pouco conhecido é que o caminho pioneiro de Queiroz foi assumido em 1903 por Antônio Augusto de Barros Penteado através da Ignarra Penteado & Cia. Este veio com ares modernos, reformando a empresa, capacitando funcionários e levando não apenas luz às residências, mas também energia elétrica para o que quer que Piracicaba tivesse na época, podendo ser geladeira ou algum aparelho audiovisual, se é que existiam. Sem televisão, internet, games, as pessoas buscavam mais a sociabilidade seja para almoçar na residência de familiares ou amigos ou mesmo para “tricotar” sobre a vida alheia. Aí, fez-se a luz. O mundo nunca foi igual como antes...

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 20 de outubro de 2024 e na Tribuna Piracicabana de 27 de outubro de 2024)


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O fanzine brasileiro

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

De passatempo a ícone da comunicação autoral e alternativa. Assim notabilizou-se o primeiro fanzine publicado no Brasil que, no último dia 12 de outubro, completando seus 59 anos. Como brincadeira de gente grande, o fanzine “Ficção” surgiu para preencher a lacuna entre os fãs das histórias em quadrinhos no final de 1965, numa época de ebulição do mercado editorial brasileiro em que desfilavam grandes editoras que propagavam a nona arte, como O Cruzeiro, Ebal, Vecchi, La Selva, Lord Cochrane, RGE, Bloch e muitas outras que faliram ou se fundiram com multinacionais.

Publicação feita no fundo do quintal e nas horas vagas, o “Ficção” não tinha pretensão de ser o primeiro fanzine do país. Foi lançado como “boletim” e apenas em meados dos anos 1970 recebeu esta denominação por estudiosos em comunicação. Não pretendia ser um marco ao catalogar tudo o que foi lançado no mercado de quadrinhos. Era um delicioso passatempo no qual o funcionário público do estado de São Paulo Edson Rontani se dedicava para falar sobre sua maior paixão.

Tem seus antecedentes. Isso nos anos 1940 quando foi impulsionado pelos seriados de cinema produzidos pela Republic Films, os quais apresentavam os heróis da era dourada dos quadrinhos como Flash Gordon, Batman, Superman, Zorro e tantos outros personagens, hoje sob posse da DC Comics e da Marvel Comics. Estes seriados eram exibidos nos Teatro Santo Estevão e no Teatro São José. Rontani em companhia de seu amigo Oswaldo de Andrade eram tão fascinados em reter estas memórias que criavam seus próprios gibis desenhados a mão e distribuídos entre os amigos. Assim propagavam as emoções vistas na tela.

Esta paixão fez com que anos mais tarde houvesse a necessidade de se profissionalizar e procurar pessoas – fora de Piracicaba – para conversar sobre quadrinhos. Cria-se o “Ficção”, impresso em mimeógrafo, com páginas grampeadas, envelopado e enviado pelos Correios. Recebiam esta publicação grandes expressões da época como Adolfo Aizen, Maurício de Souza, Lyrio Aragão, Jô Soares, José Mojica Marins (o “Zé do Caixão”), Gedeone Malagola e muitos outros. Maioria desconhecidos pelo público que surfa pela internet.

“Ficção” circulou até o início dos anos 1970, período em que professores, comunicadores e estudiosos perceberam seu pioneirismo na comunicação alternativa e autoral. Estabelecia-se então o primeiro fanzine publicado no Brasil, algo ainda reverenciado nos dias atuais.

Os primeiros registros do fanzine são datados dos anos 1920 nos Estados Unidos e hoje – em pleno período de avanço tecnológico digital – ainda é feito tanto lá fora quando no Brasil, de maneira artesanal e com muita paixão. Não é a toa que fanzine é a união das palavras fanatic (fã) e magazine (revista), ou seja, a revista feita pelo fã.

Produto genuinamente piracicabano, terra tão cheia de cultura e com grandes revelações, o fanzine vem sendo reverenciado neste mês por chegar aos seus 59 anos, com atividades realizadas em universidades e republicações que serão feitas em todo o país. Não faltaram manifestações no último final de semana. As mídias sociais digitais, inclusive, impulsionam para que isso se torne mais evidente. É referência inclusive em estudos científicos, embora desconhecido na terra natal de seu autor.

Como passatempo, virou marco na comunicação. Talvez porque seu criador nunca pensou em fazê-lo um trabalho pioneiro - procurava o meio e nunca o fim como reconhecimento, para colher sua devida colocação na arte nacional.


quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Castanho

 


Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

“Sou um comerciante da escrita”, disse certa feita Monteiro Lobato. Isso resume que, além de ter uma língua ácida, provocativa e lúcida, fazia das letras um negócio. Soube bem negociar e fazer dinheiro com tudo que colocou no papel. Fez carreira e fortuna com seus livros lançados numa época em que a imaginação vinha da cabeça do leitor, alicerçada por aquilo que ele discorria nas folhas de livros e jornais.

Ainda não tínhamos a concorrência do rádio e da televisão. Éramos educados e entretidos também pela escrita. Pelo menos uma pequena parcela do país, já que por décadas e décadas, o Brasil formado por pessoas analfabetas. Isso mesmo. A preocupação com o aprendizado da leitura ocorreu a partir de meados da metade do século passado. Vamos lembrar que o ensino educacional até os anos 1930 era feito em francês e até os anos 1960 as missas eram rezadas em latim. Isso mesmo. Aqui no Brasil. Censo de 1920 mostrava que 71% da população brasileira era analfabeta.

O hábito do conhecimento estava entre a classe mais abastada que enviava filhos para os Estados Unidos ou países europeus para graduação em faculdades. O ensino público gratuito, inclusive para adultos e moradores da zona rural, torna-se obrigação do Estado com a Constituição de 1934. Antes, apenas afortunados poderiam pagar para deixar seus rebentos em escolas particulares, externatos ou internatos ou ainda ter professora particular em casa.

Foi aí que Lobato surge num cenário vazio. Foi nosso Júlio Verne, se assim os leitores me permitem comparar, pois utilizou ao máximo da imaginação para criar personagens inverossímeis em situações onde apenas a imaginação podia chegar, quebrando conceitos físicos e sociais. Escreveu uma produção invejável. Fez das crônicas livros de coletânea como “Urupês” cujos capítulos saíram na “Revista do Brasil” e no “Estado de São Paulo”, dando base para nosso caipira Nhô Quim.

Soube negociar seus direitos autorais pois os livros vendiam como água. Isso se utilizarmos as três primeiras décadas do século passado. Foi um exímio e habilidoso espadachim com sua caneta bico de nanquim ou máquina de datilografar, deixando no papel suas reinações que criaram o conceito de um folclore ativo e participativo do imaginário popular. Até então, Cuca não era um dragão verde. Era o dragão que São Jorge combatia na lua, segundo tradições seculares. O jacaré só se esverdeou nos anos 1970 quando virou seriado na TV Globo.

Herdou tudo que seu avô, Visconde de Tremembé, cultivou durante a vida. Não teve vida fácil, claro, mas foi ousado em investir no mercado literário através das Editoras Globo, Cia. Nacional de Livros e Melhoramentos. Quer aguçar sua curiosidade ? Leia Lobato. Assim vendeu e vendeu e vendeu suas obras. Veio buscar petróleo em Águas de São Pedro e Charqueada. Vã Investida. Mas tornou-se notório pelo teor educativo e lúdico de sua obra.

Desde sempre ouço falar que ele divide o reinado com o piracicabano Thales Castanho de Andrade. Ambos pais da literatura infantil. Mas creio que isso seja orgulho apenas de nós piracicabanos. Cada qual teve seu papel na literatura brasileira. Thales viveu 87 anos (1890/1977) e Monteiro 66 anos (1882/1948). Talvez – há quem discorde – Thales não tenha o tino comercial de Lobato, não tenha sido empresariado como este ou não tivesse amigos como a família Mesquita, dona do jornal “Estadão” onde publicava e dirigiu sua redação. Thales, no romance “Saudade”, cuja terceira edição foi publicada pelo Jornal de Piracicaba em 1922, no centenário da Independência, é uma obra de arte inspiradora para a vida juvenil de então, permeada por desenhos icônicos.

A questão não é dizer quem é o melhor, que tem maiores obras ou quem será sempre lembrado. Piracicaba com certeza elegerá Castanho como um dos principais escritores, embora tenha seu nome esquecido até mesmo em setembro, quando a primavera chegou e ele comemoraria 134 anos de nascimento.

Chegando ao período de halloween, onde redes supermercadistas e escolas de inglês já estampam caveiras e abóboras na mais pura importação do folclore anglo-saxônico, fiquemos com a nossa cultura e saudemos nosso caipiracicabano Castanho !


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

O fim estava próximo

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Ainda de setembro de 1932, jornais de Piracicaba traziam ânimos aos conterrâneos que empunhavam armas pela causa constituinte na Revolução iniciada em 9 de julho daquele ano. Eis que em 2 de outubro, as lideranças paulistas cedem e firmam armistício com as forças federais de Getúlio Vargas. Acaba o último conflito armado em solo brasileiro movido pelos paulistas que exigiam uma nova Constituição, a qual viria dois anos depois.

O fim do levante civil pegou todos de surpresa. Em 2 de outubro de 1932, jornais locais – O Momento, Gazeta de Piracicaba e Jornal de Piracicaba – ainda traziam artigos para elevar o moral dos cidadãos que por aqui se dedicavam aos voluntários piracicabanos. Eram duas frentes: as dos piracicabanos que foram ao conflito armado e os piracicabanos e piracicabanas que aqui ficaram e atuavam como cozinheiros, enfermeiras, costureiras e outras formas de mão de obra para garantir o abastecimento das tropas. A partir de 3 de outubro, nenhuma nota mais foi publicada sobre a Revolução. Pudera ! Com seu fim, o estado de São Paulo passou a sofrer retaliações com a deportação para Portugal dos líderes que estavam na capital paulista. Começavam as retaliações, os julgamentos questionáveis, o medo social ...

Por volta do dia 12, pequenas notas nos jornais faziam referências aos piracicabanos que retornavam aos seus lares. Há depoimentos de que alguns que pegaram em armas pensando em conseguir emprego no caso da vitória paulista. Triste realidade, pois, a cidade afundava-se com a falta de insumos desde a farinha para o pão ao combustível para os veículos. Era necessária uma reconstrução local. Não a toa, o comércio se fortaleceu encontrando a necessidade de união criando sua associação comercial exatamente em julho de 1933, um ano após o início da Revolução.

Jornais locais passavam a ouvir os piracicabanos que retornavam. Alguns acusavam companheiros como pode ser visto nas páginas dos matutinos de então, com direito a réplica, tréplica, quadruplica e assim por diante, num incessante bate-boca popular. Houve manifestações, missas em homenagens aos falecidos e constituição de comissões para criar o jazigo do Soldado Constitucionalista no Cemitério da Saudade. O Monumento na Praça 7 de Setembro, só viria no dia 6 de setembro de 1938.

O sentimento, a honra a honestidade eram diferentes na época. Pode notar-se isso na carta de Antonio de Mattos, pertencente à Coluna do Ten. Cel. Romão Gomes: “Eu recusei promoção a sargento porque acho que não tenho competencia. Quero servir a S. Paulo, como soldado mesmo” (Gazeta de Piracicaba, 28/09/1932).

De 30 de setembro a 4 de outubro, silêncio geral. A Gazeta de Piracicaba em 5 de outubro traz mensagem de moradores de Campinas que se refugiaram por aqui, agradecendo a hospitalidade, pois a cidade foi bombardeada pelo ar e em Piracicaba encontraram a paz neste período turbulento. No agradecimento, acreditavam que estava no momento de retornar para a cidade natal.

Dia 6 de outubro, também na Gazeta: “Começam a chegar os primeiros legionários do Ideal, os soldados conscientes da Liberdade, que deram tudo o que podiam dar para reintegrar a Patria na communhão da Lei, da Justiça e do Direito”.

Moral elevado: “E elles chegam – nos olhos o brilho de um enthusiasmo que não esmoreceu – para o aconchego carinhoso da família, para o convívio acalentador dos amigos. Piracicaba, berço do civismo, cidade tradicional que sempre foi vanguardeira nos grandes movimentos de opinião que visaram engrandecer o Brasil, Piracicaba, meiga e carinhosamente recebe com flores os seus filhos queridos, que sempre a fizeram grande e respeitada. Uma multidão incalculavel, toda a sua população, espera nos gares das nossas ferrovias a chegada dos comboios que conduzem os phalangiarios heroicos e bravos da mais nobre elevada causa que jamais se agitou no scenario da nossa vida politica. Partiram sob o olhar maternal e confortados pelo enthusiasmo quente da mãe carinhosa que, agora, no seu regresso – que é glorioso como foi a sua partida – os recebe entre abraços e acclamações. Piracicaba, altiva e patriota, ainda uma vez é digna das sua tradicções gloriosas”. Autoria desconhecida, da redação daquele jornal.