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segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Brazilian soul

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico de Geográfico de Piracicaba 

Alma brasileira. Assim tornou-se conhecido o jazz tupiniquim no exterior, com ênfase nos Estados Unidos e na Europa. Muito bebeu-se na Bossa Nova, inspiração sui generis de brasileiros, a qual foi apoderada por diversos crooners ou standards anglo-saxões. Foi isso que deu notoriedade a pessoas como Sérgio Mendes, recentemente falecido, que trocou o Brasil pela cosmopolita Nova Iorque e por Los Angeles.

Quem também se enamorou pela brazilian soul foi Quincy Jones, falecido no início de novembro, dia 3, sem muito alarde em nossa terra. Isso porque ele não era um dos músicos atualmente em evidência. Teve ele seu destaque e posicionamento necessário na música internacional. Basta dizer que ele produziu Michael Jackson em seu álbum “Thriller”, de 1982, o qual comercializou 70 milhões de cópias, sagrando-se como o LP mais vendido em toda a história fonográfica. Foi ele também quem tirou do ostracismo, em 1984, o velho Frank Sinatra, em uma época na qual o vozeirão de décadas atrás já era deixado de lado por um rock pós era discoteque. Vamos dar um grande chute: se Quincy ajudou a vender 150 ... 200 milhões de LPs e ganhou um único dólar por disco vendido, dá para se ter noção de quanto faturou em vida.

Claro que Quincy Jones acordou cedo para a vida. Talvez seja esta a razão do seu sucesso. Viveu 91 anos, dedicou-se 50 anos à indústria musical e começou a trabalhar aos dez anos de idade. Aprendeu e tocar trumpete e animar casamentos com outro jovem, este cego, que depois alcançou fama com o nome artístico de Ray Charles. Nos anos 1950 fez shows pelo mundo, trabalhou como orquestrador e na década seguinte, enfrentando barreiras raciais, chegou a ser um dos chefões da Mercury, importante gravadora norte-americana. Aí vieram os anos 70, 80 e 90. Na década de 1980 talvez esteja ainda fixa em nossa memória seu sucesso “Ai no corrida”, de 1981, muito executada nas emissoras locais, principalmente na então única FM de Piracicaba, a Difusora FM.

Só para saber sua importância, Quincy recebeu uma proposta de Lionel Richie e se juntou novamente a Michael Jackson para produzir o LP “We are the world”. Lembrou da música ? Difícil quem nunca cantarolou ou assobiou esse sucesso. O LP ainda hoje ecoa nas rádios, no streaming, nas mentes das pessoas. “A noite que mudou o pop”, no Netflix, é um documentário de quase duas horas lançado em janeiro passado que narra esse processo, tendo sido a música gravada numa única madrugada com mais de 30 dos popstars do rock americano. Trabalho exausto iniciado às 23 horas e concluído lá pelas cinco ... seis horas do dia seguinte. Quincy é uma ausência sentida nos depoimentos do documentário, talvez pela saúde já debilitada. Quincy, ao ver que pisariam no mesmo estúdio gente como Lionel Richie, Michael Jackson, Diana Ross, Bob Dylan, mais e mais ... colocou na entrada do palco de gravação um cartaz dizendo “DEIXE SEU EGO AQUI FORA”. Era uma briga de foice.

Pois bem, esse era Quincy Jones, maestro, arranjador e pouquíssimas vezes cantor. Negro, foi o expoente da música afro nos poderosos estúdios como Warner, Epic, A&M Records e CBS. Mas foi na Motown que engajou a música que lhe trouxe notoriedade. A “alma brasileira” pôde ser vista no disco “Soul Bossa Nova”, de 1962, inteiramente instrumental, no qual fez um ícone balançante revivido no final dos anos 1990 com os filmes de Austin Powers.

Lembrando que o Brasil também produziu seus expoentes a altura de Quincy, que fizeram do jingado nacional algo adorado no exterior, bebendo a mesma verve que ainda agrada os gringos. Hoje são esquecidos, mas nortearam diretrizes para a MPB ser reconhecida lá fora. Dentre ele estão Bola Sete e Erlon Chaves que, nos anos 1960 e 70, fizeram o que hoje confunde-se com “samba rock”. Beberam na mesma fonte de Quincy Jones. Ganharam fama e dinheiro. Mas caíram no esquecimento com o passar do tempo.


domingo, 15 de dezembro de 2024

Eterno ciclo de renovação

 


Chegamos à época de renovação. Natal e ano novo. Um ciclo eterno criado pelos calendários ao longo dos dois últimos milênios. É um período para parar e pensar no que foi feito ao longo do ano e soltar aquele estupefato: “nossa ! como o ano voou”, sem lembrarmos das promessas feitas um ano atrás, muito menos se as cumprimos. Mas assim é o ciclo natural da vida.

É também um período de conhecimento e reflexão sobre o passado. Aqui cabe resgatar algo além do bom velhinho Noel e lembrar fatos que ocorreram em dezembro na nossa amada Piracicaba.

Para isso nos debruçamos diante dos tradicionais trabalhos feitos através dos Almanaks para Piracicaba de 1900 e 1914, e nos trabalhos preciosíssimos de Mário Neme dos anos 1930 e Samuel Pfrom Netto.

Dezembro é histórico. Neste mês, no ano de 1893, deixa Piracicaba Ernest Lehmann, austríaco de nascimento. Diretor da Escola Real de Agronomia de Monsiedel, veio a Campinas quando recebeu a incumbência de administrar a Fazenda São João da Montanha. Esta área havia sido comprada por Luiz de Queiroz para criar uma escola prática agrícola. Não conseguiu colocar em atividade a escola, queixando-se da falta de recursos financeiros por isso. Deixou Piracicaba em um dezembro.

Foi em dezembro de 1915 que a então Escola Prática de Agricultura Luiz de Queiróz, a atual ESALQ, recebe pela segunda e definitiva vez a presença de Nicolau Athanasoff, emérito professor com estudos superiores na Bélgica, Alemanha e Suíça. Com toda sua carga de conhecimento, foi um dos precursores da zootecnia nesta entidade de ensino. Nascido na Bulgária, naturalizou-se brasileiro e dedicou seus 70 anos ao conhecimento científico, com hábitos humildes: residia numa casa simples situada ao lado do estábulo de bovinos situada nas dependências da Escola Agrícola.

Ainda na Escola de Agricultura, Getúlio Vargas, convidado como paraninfo, não compareceu na formatura da turma de 1938, realizada em dezembro. Enviou como representante Adhemar de Barros, futuro governador de São Paulo, ilustre nativo de Piracicaba.

Uma história que precisa ser relida e recontada é aquela que envolve a atriz Lyson Gaster, espanhola de nascimento que adotou Piracicaba como sua terra. Foi uma das mais reconhecidas atrizes do país. Teve vida ativa nos principais teatros brasileiros de 1919 a 1948. E foi em dezembro deste último ano que ela aposentou-se encerrando as atividades da Companhia de Comédias Lyson Gaster. Fez diversas apresentações no Teatro Santo Estêvão.

Após o 15 de novembro de 1889, quando surgiu a República, Piracicaba tem novidades no comando político. A Câmara de Vereadores é substituída em dezembro de 1891 pelo Conselho de Intendência Municipal, algo similar ao poder executivo atual, sendo comandada por Amador de Campos Pacheco, Antonio Moraes Sampaio, Jacob Diehl, João Batista de Silveira Mello, João Gomes Marques, João Guidi e Paulo de Moraes Barros.

A data máxima da cristandade foi escolhida para a criação da Santa Casa de Piracicaba. José Pinto de Almeida, nascido em Portugal (1811), viveu em nossa cidade até seu falecimento (1885). Inspirado em tradições portuguesas, implantou em nossas terras a Irmandade do Santíssimo Sacramento por volta de 1850. A ordem surgiu na Idade Média e no Brasil existem registros desde 1549 relatados por Manuel da Nóbrega, líder da primeira missão jesuítica a América. Esta iniciativa de José Pinto de Almeida serviu de base para a criação da Santa Casa de Misericórdia de Piracicaba em 1854, completando em 25 de dezembro próximo seus 170 anos de fundação. No início, a Santa Casa funcionava na rua José Pinto de Almeida (Centro) entre as ruas Moraes Barros e XV de Novembro.

E assim, aos poucos, não apenas em dezembro, mas ao longo dos doze meses de vários anos, Piracicaba foi se delineando e deixando muita história que compete a nós resgatar.

(Publicado no Jornal de 15 de dezembro de 2024)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

A história em formato digital

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Muito em breve deixaremos de ser acumuladores, um vício cultuado como hábito o qual aprendemos com nossos pais, os quais aprenderam com seus pais e assim por diante. Uma tradição que passa gerações.

Um livro que nos agrada, colocamos na estante para ler um dia. E nunca mais lemos. Uma música que adoramos retemos como aprisionamos um passarinho numa gaiola, seja essa canção em qualquer formato disponibilizado pelo mercado, como CD, LP, MP3. Um filme que nos fez chorar ou aflorar qualquer sensibilidade cultuamos e também o colocamos em uma estante, seja em celuloide, VHS, DVD ... Um imenso álbum de fotografias era aberto e colocado entre as pernas, e ao nosso lado a família se juntava para relembrar fatos passados. Hoje a fotografia é individual, pois fica em nosso bolso, no smartphone e quando você inventa de mostra-la para alguém vem aquele exercício de vai e vem para adaptar o foco à nossa cansada visão.

Assim é com a história, perpetuada por livros físicos, fotografias impressas, filmes e outras formas de guardar para o futuro o momento presente ou passado. Está chegando ao fim ter em casa dezenas de livros que nos tornam mais sábios. Revistas ? Nem falo nada. Sejam em quadrinhos, sobre tricô ou receitas, ou informativas, já tiveram seu tempo, levando à bancarrota diversas de suas editoras.

Bom, tudo isso para dizer que estamos no mundo digital a muito tempo. Lembro que entrei na internet em 1996, poucos anos depois dela comercialmente aportar no Brasil. Não tinha o que fazer com ela. As ferramentas foram se formando aos poucos, moldando o formato que conhecemos hoje. Celular não era smart, servia apenas para ligações telefônicas no local em que você estivesse. Bem ... tinha alguns lugares que não funcionava nem com reza braba, isso é verdade.

O Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba tem sua vertente digital sobre a história de Piracicaba. Desde a década de 2000 não mede esforços para propagar fatos que compuseram Piracicaba, na sua ocupação, urbanização, industrialização e tudo mais. É curioso ver fotos do passado e comparar com a atualidade, tirando o pó de nossa “massa cinzenta” resgatando memórias afetivas de locais ou eventos pelos quais passamos. Um homem sem passado, não tem história.

Todo acervo que, além de provocar imensa rinite ou outras irritações alérgicas, embasaram estudos, teses acadêmicas e resgataram o passado. O IHGP tem jornais, livros, filmes, discos em formato físicos. Alguns inacessíveis ao público por conta do desgaste ocasionado pelo tempo, como por exemplo o jornal “Gazeta de Piracicaba” da década de 1880. Impossível abrir tal acervo à sociedade sendo que qualquer folhear irá esfacelar suas páginas.

Dos anos 2000 para cá, e olhe que são 25 anos, vários voluntários se uniram para digitalizar esta história, como o livro de enterramentos do Cemitério da Saudade, que hoje pode ser consultado à distância. Fotografias que definiram a sociedade piracicabana no século passado podem ser vistas e ter download feito pelo Flickr da entidade. E, o melhor, de forma gratuita. São hoje 10.500 registros disponíveis com 3 milhões de visualizações individuais. Nosso Wiki pôde ser consultado com verbetes do “Dicionário de Piracicabanos”, catalogado pelo professor Samiel Pfromm Neto. Quer saber quem foi Fulano de Tal ? Coloca no Wiki do IHGP e você terá sua biografia. O serviço hoje está indisponível. Tal formato vem sendo estudado para 2025 com foco exclusivo para os descendentes de italianos, como forma de celebrar os 150 anos da imigração dos ítalos. Livros, antes restritos ao papel, já podem ser acessados pelo site do IHGP. Não são e-books e sim as versões digitais em PDF do que foi impresso.

Recentemente o IHGP uniu-se a WRPD Informática e criou o Nhô Chat, ferramenta de inteligência artificial que auxilia a inteligência humana. Não é um buscador como foi confundindo por algumas pessoas. Para isso já existe o Google ou o Wikipedia. É uma ferramenta para compor mensagens, buscar informações catalogadas no acervo do IHGP que conta atualmente com cerca de 70 livros publicados. É uma ferramenta que colabora com pesquisas em livros e outros meios. O Nhô Chat é recente. Ainda é um bebê que mama e está formando sua capacidade intelectual. Ainda não é um adulto pós-graduado. Isso forma-se aos poucos, como é a inteligência, seja artificial ou orgânica. Tem chão para engatinhar e futuro para despontar como um bom aluno e, aí sim, virar um mestre.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 8 de dezembro de 2024) 


quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

A câmera, essa estranha

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Por mais de uma década circularam pela internet trechos de um documentário feito pela Independencia Film, expondo Piracicaba durante as comemorações do centenário da Independência, em 1922. Os trechos mostravam um Arco do Triunfo reproduzido ao final da rua Boa Morte, próximo a Estação da Paulista, um grupo de escoteiros partindo por um comboio que passa pela rua Benjamin Constant, ou pessoas realizando o “footing” na praça José Bonifácio.

No dia 21 novembro, o Teatro Erotides de Campos, no Engenho Central, teve lotação total para assistir ao filme completo e restaurado pela Urgência Films. Foram 1h30 de um celuloide muito bem recuperado com efeitos sonoros e música ao vivo. Já, em 12 de dezembro, houve apresentação no Museu Prudente de Moraes.

A obra merece atenção de estudiosos e de todos os piracicabanos que amam a cidade. Traz algumas curiosidades, entre elas mostra que existe preocupação maior do que aquela que se tornou um estigma local: a demolição do Hotel Central. Houve muitos prédios imponentes que sumiram com o passar do tempo que nos deixam boquiabertos e saber que os perdemos em prol da melhoria urbanística da cidade. A plateia riu quando, Piracicaba então com 50 mil habitantes, passou a conhecer uma obra pública denominada de “Avenida da Independência” que vai de um dos trechos do Ribeirão do Itapeva na avenida Armando de Salles Oliveira e se finda próximo a Esalq. Os risos não foram por isso. É que do local em que Piracicaba foi mostrada – talvez próximo a rua XV de Novembro – tal ponto da Avenida Independência era um mato só, algo que hoje só vemos na zona rural.

A Independencia Film foi a empresa paulista contratada pela Comissão Organizadora do Centenário da Independência Brasileira para filmar o estado de São Paulo. A empresa pertencia o reconhecido Menotti del Picchia e seu irmão José del Picchia e Armando Pamplona. Sua equipe aporta em Piracicaba e grava cenas icônicas como o rio, a Esalq, o Cemitério da Saudade, a praça Sete de Setembro, a Estação da Paulista, a Ponte Irmãos Rebouças e mais. O objetivo era ganhar dinheiro, papel principal da indústria de entretenimento cinematográfica. Exibir o documentário na cidade e em outras como atrativo para um país que estava em crescimento. Em 1922, ano que o documentário foi apresentado, o cinema ainda era mudo. Mas, com toda certeza, piracicabanos e piracicabanas queriam se ver na telona. É possível identificar Fernando Febeliano da Costa e o Padre (depois Monsenhor) Rosa, entre outros.

Curioso é ver trechos rápidos como a partida entre o XV de Novembro e o Guarani. Era um time ainda em formação. O alvinegro estava prestes a chegar aos seus nove anos de formação. Na plateia, grande maioria de terno, numa cidade considerada quente demais, e alguns com guarda-chuvas fazendo dele a vez de sombrinha para diminuir o poder do sol. Nas imagens dá para se ver a arquibancada meio metro da lateral do estádio. Muito ouvi falar que no Gomes Pedrosa dava para dar facilmente um tapa na orelha do juiz auxiliar.

Piracicaba sempre foi uma cidade acolhedora e com coração quente. Diz, mais ou menos o documentário. Assim é registrado ao final de uma das missas na Matriz de Santo Antonio, quando, para as filmagens, a mendicância é apresentada com imagens e legendas. O mendigo que ficou sentado à direita da porta nunca recebeu tanta esmola em dinheiro como desta vez durante a filmagem. Não entendam essas linhas como ironia ou outra coisa qualquer, mas é curioso ver como Piracicaba e seu povo eram 102 anos atrás. Uma cidade curiosa com ruas largas feitas para pessoas andarem, já que são poucos os veículos que vemos nas cenas. Crianças de manga cumprida, muitas com coletes ou blazers. A elegância toma conta no celuloide preto e branco restaurado com a qualidade 4K divididos em colorizações como a sépia.

Curioso é ver o comércio local como a empresa de pastifícios Fábrica de Macarrão Emílio Bertozzi & Co., com suas massas sendo secadas ao sol ou suas tiras tendo armazenadas sem os cuidados atuais como o uso de gorro ou luva. Piracicaba também teve seu biotônico anunciado como Biogol fabricado pela Phamacia Faria, do farmacêutico Ernani Braga. As cenas mostram o interior da farmácia e mais para frente é possível ver publicidade do produto no alto do bonde da Esalq.

Interessante é ver as pessoas se depararem com a câmera. Ninguém teve seu mise-en--scène e é comum alguém dando um tchau para a tela, uma jovem enrubescer na praça ou o guia que passeia pelo salto do rio gesticular para onde ele deveria ir. Era algo novo: uma câmera filmadora, essa estranha e desconhecida máquina.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 24 de novembro de 2024 e na Tribuna Piracicabana em 14 de dezembro de 2024)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Pira nunca esqueceu

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Piracicaba nunca esqueceu. Mas talvez nem sem lembre. Foi numa sessão, talvez a tarde, do Cine Politeama, na praça José Bonifácio, situado onde está hoje o Itaú e o estacionamento do Bradesco. Pode ter sido nos anos 1940 ou nos anos 50. Alguns agricolões resolvem fazer uma aposta e tumultuar uma das sessões. Colocam um urubu vivo numa sacola, compram ingressos para o cinema e entram com a ave. Em determinado momento, tal ave é solta e começa a voar pelo no alto do cinema. Ninguém entendeu nada. Mulheres se apavoraram. O filme foi interrompido e o urubu foi resgatado atrás da tela, assustado. Não sei como foi, só sei que foi assim. Assim ouvi de meu pai e meu tio e recentemente a lembrança foi ativada com a professora Marly Therezinha Germano Perecin, minha “ídala”, numa conversa informal, a qual disse lembrar da situação contada por seu pai.

Pira nunca esqueceu que até os anos 1950 ou 1960 era obrigatório ir ao cinema com terno e gravata, para os homens, lógico, e roupa longa ou extremamente social para as mulheres. Se não estivesse assim, não entrava.

Pira talvez não se lembre, mas nunca esqueci quando fui assistir à uma reprise de “Sansão e Dalila” no mesmo Politeama, na segunda metade dos anos 1970. É exatamente aquele clássico de 1949 com Hedy Lamar e Victor Mature. Nos anos 70, a censura era ferrenha e novos filmes raramente eram exibidos, abrindo chances para incansáveis reprises. Eu tinha entre oito e nove anos. Fui acompanhado de meu irmão mais velho. Voltamos para casa sem ver o filme. O bilheteiro disse que crianças menores de idade – eu – não poderiam ver o filme. Uma clássico ! Um filme bíblico ! Descomunal, isso !!! Anos mais tarde, fique sabendo que, durante seu lançamento nos anos 1940, Groucho Marx teria comentado que era o primeiro filme em que havia visto o mocinho (Mature) ter mais peito que a mocinha (Hedy Lamar). Tolerância zero para a falta de pudor. Lastimável. Nem o valor do ingresso foi devolvido.

Pira não esqueceu quando Grande Otelo fugiu do hospital para participar da inauguração do Cine Arte no Teatro Losso Netto. Dizem que isso é lenda. Ele não estava no hospital. Mas importa é que ele veio, para abrir as portas de uma das – senão a única – cinematecas da cidade.

Pira nunca esqueceu dos cinemas itinerantes exibidos de forma arcaica em circos como o Piranha ou o Veneno, ou ainda o cinema do Clube Atlético Piracicabano que, nos anos 1980, atraia dezenas de pessoas na sede da entidade na avenida Barão da Serra Negra, ao lado da praça da matriz da Vila Rezende.

Pira nunca esqueceu a inauguração do Cine Tiffany, em 1981, na rua São José, com noite de gala para assistir à cenas quentes de amor entre Brooke Shields e Christopher Atkins em “A lagoa azul”. Ou ainda “Dirty Dancin’ – Ritmo Quente” que ficou por longos três ou quatro meses no Cine Arte. Mesmo local desativado depois de um enorme alagamento ocorrido durante exibição de “Titanic” !!!

Pira pode esquecer, mas eu não. Do “Chico Andia” e seu pioneirismo com relação às salas exibidoras, como o Rivoli, Colonial, Tiffany e o Plaza, no Edifício Luiz de Queiroz, o Comurba, que ruiu 60 anos atrás, lembrados em novembro. Me lembro bem no final dos anos 1980 de ir ao seu escritório no Edifício Sisal Center retirar press-releases e retirar convites para as críticas que eu publicava no extinto “O Diário”. Era sempre bem recebido pela Edna e pela Ana Lúcia Santos. Gente que mora no nosso coração.

Tudo isso para parabenizar Dara Oliver pelo documentário “Pira nunca esqueceu”, ela filha de Luiz Andia Filho e sobrinha de Francisco Andia. Quem assistiu à avant premiere no Cine Araújo dia 21 de setembro, se emocionou ... chorou ... Cinemas de rua viraram nostalgia e memória de muita gente. Parabéns, Dara. Seu trabalho é um exemplo que deve ser seguido !