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quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Piracicaba fantástica

 

Edson Rontani Júnior, jornalista, vice-presidente do IHGP e diretor da Academia Piracicabana de Letras

 

“Não saia na rua a noite senão o ‘ligera’ vai pegar você”. Muitas crianças se assustavam com essa ameaça paterna ou, principalmente, materna. Tal pessoa era conhecida também como andante, pedinte, mendigo ou “o homem do saco”, que pegava as criancinhas, colocava-as em um saco e seguia não se sabe para onde. Falavam que tal figura devorava as crianças. Nos anos 1970, quando cinquentões como eu curtíamos a infância, era um motivo para não sair de casa.

Eis que Waldemar Iglésias Fernandes publica, numa edição pioneira do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba (IHGP), o livro “Lendas e crendices de Piracicaba e outros estados”, datado de 1975, vendido principalmente em jornaleiros e bancas de revistas da cidade. “Bertico”, o Alberto Thomazi, era autor da capa ilustrando um ritual católico diante da morte, presumindo-se ocorrer na época do escravagismo.

Eis que em sua página 21, apresenta-se a história do turco (!!!) que come criança. Xenofobia pura ou preconceito étnico nos dias de hoje. O popular “politicamente incorreto”. Iglésias mostra estupefação ao dizer que os piracicabanos “não simpatizavam com esses civilizados e cultos orientais, vindos de tão longe com língua tão estranha”. Há registros de muitos anos atrás nos jornais de Piracicaba de queixas à polícia por pais aflitos contra os turcos “antropófagos”. Essa é a Piracicaba fantástica, com suas histórias surpreendentes, algo que a torna única diante de outras regiões.

O autor do livro fez um apanhado de lendas e crendices que viajaram o interior do país, oriundas de uma miscigenação cultural, de culturas estrangeiras e nacionais, como aquelas perpetuadas pelos índios. Lembra da tal “cobrona” que virá no final dos tempos comer os pecadores e está com parte do corpo instalado embaixo da matriz de Santo Antonio ? Existem variantes da mesma situação no Amazonas e no Centro-Oeste. Dizem que esta lenda dominou muitos encontros indígenas diante da fogueira instalada ao lado das ocas.

Iglésias nasceu no Bairro Alto. Foi lá que nos anos 1930 brincou na rua, com terra batida, e ouviu muitas dessas culturas compiladas na publicação. Era comum se reunir embaixo dos postes elétricos para contar estórias ...  Época em que a imaginação pegava carona apenas nos livros de Jules Verne. Quando lançado em 1975, as lendas e crendices ainda fazia arrepiar os petizes. A época era outra. Até King Kong, Drácula e Piranha nos faziam pular dos assentos de cinema. O efeito hoje é o mesmo ? Não entremos neste mérito ... Quando adulto, Iglésias fez um abecedário de todas as lendas, crendices e músicas que ouviu “com o precioso socorro dos irmãos e irmãs”, salienta.

Interessante é ver que desde o lançamento do livro até hoje, alguns conceitos mudaram. Como por exemplo, o “véu da noiva” que é confundido com aquela canalização que percorre o Mirante e deságua próximo a ponte pênsil. Na verdade, o véu é a bruma que cobre o leito do rio Piracicaba de madrugada, em determinadas épocas do ano.

O sono do salto, o rio que seca, o coqueiro assombrado, a matriz sobre um vulcão, Nossa Senhora dos Prazeres X Santo Antonio ... São contos acrescidos de vertentes pessoais que Waldemar Iglésias Fernandes nos presenteia neste livro que tem uma necessidade de ser reeditado, haja visto o interesse e sucesso pela “Coleção Lendas de Piracicaba”, livros lançados por Ivana Maria França de Negri ilustrados por sua neta Ana Clara de Negri Kantovitz. “A Cobrona” lançado recentemente na Biblioteca Municipal e outros espaços tem atraíram o interesse dos petizes que ainda não se iniciaram no mundo digital.

Uma ótima pedida para que lendas e crendices não se afastem de nosso tão rico folclore e, tristemente, um dia virem lenda !

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