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domingo, 30 de junho de 2024

Olha o passarinho !

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Confesso que fiquei maravilhado. Era lá por volta de 1981 ... 82 ... Não me recordo ao certo. Num álbum comemorativo que vi na casa de minha avó Julieta deparo com um Nhô Quim em carne em osso. Era um álbum de família de uma comemoração esportiva. Então, uma criança com 12 anos, fiquei boquiaberto. Por vários anos só conhecia o Nhô Quim pelos desenhos de meu pai publicados neste JP.

Ver as fotos, era algo que nos fazia viajar pela imaginação, como o que ocorrera nesta mesma época em que Robin Williams personificou Popeye no cinema. Oras ! Como pode criar vida um personagem criado no bico da pena de nanquim ? No papel é fácil caricaturar (que vem de carregare, em italiano) em detalhes como as bochechas, o bíceps de Popeye e o jeito tresloucado quando come o espinafre enlatado. Mas na vida real, não é nada comum.

Foi assim que notei que o Nhô Quim era igualzinho ao do papel. Bigode, chapéu de palha, calça “pula brejo” e botina, entre outros detalhes. Sim, muito antes do termo existir, o avatar era vivido por Cícero Correa dos Santos, fotógrafo que deixou sua marca na imprensa local no século passado. Nasceu em Rio Claro em 1915 e faleceu em Piracicaba no ano de 1994. Carnavalesco, fã e diretor do XV de Novembro, recebeu o nome da praça onde está a Sapucaia ao lado do Estádio Barão da Serra Negra além de nominar o Centro Poliesportivo das piscinas do Clube Cristóvão Colombo, entre tantas outras homenagens.

Todo este enunciado foi para lembrar um dos retratistas mais queridos da cidade. Pessoa ímpar que fez centenas de amizades e registrou a vida social de Piracicaba.

Outros registros feitos na cidade, aqueles iniciais de nossa história, remontam o ano de 1895. Estes, não fotográficos e sim fonográficos. Adelardo de Aguiar e Souza possui seu nome nos anais de Piracicaba como sendo o proprietário de um – se não o – dos primeiros fonógrafos da cidade. O aparelho era novidade no final do século retrasado. Executava músicas. Era um trambolho mas também gravava sons em cilindros de cera que mais apresentava ruídos e chiados. As pessoas eram felizes mesmo assim, com tamanha tecnologia inovadora. Um destes exemplos, moderno para a época e gravado na década de 1910 pode ser conferido no site da Biblioteca Nacional, na condução de Fabiano Lozano, em meros 30 segundos de zunidos .... ops ... de reprodução. Em setembro de 1895, Adelardo resolveu apresentar sua fantástica novidade tecnológica gravando discursos de Joaquim Morais Sampaio (intendente municipal) e Antonio de Melo Cotrim (professor). Uma curiosidade que era noticiada nos jornais locais !

Voltando à arte fotográfica, a imagem do salto do rio Piracicaba foi impressa, em 1897 (!!!) num poster de 1,20 metro por 30 cm de largura, como presente para o jornal Gazeta de Piracicaba. A obra foi de Arthur Lobenwein, um dos primeiros fotógrafos da cidade. Natural da Áustria, criou em Piracicaba a Fotografia Vienna situada num trecho onde hoje está a rua Governador Pedro de Piracicaba sem maiores referências. Foram de sua inspiração e cessão as fotografias que compuseram o Almanak de Piracicaba para 1900, talvez uma das referências históricas mais importantes da cidade, de forma graciosa, compondo 10 cenas que envolvem a Catedral de Santo Antonio e o Engenho Central.

Assim é o cenário fotográfico de Piracicaba explorado dias atrás nestas páginas e que remontaram curiosidades e manifestações pelas mídias sociais.

A fotografia foi uma arte hoje legada a banalidade pelos smartphones e mídias sociais que expões fatos fulos à nossa rotina numa sequência de informações que nos bombardeiam entre o irreal e o banal. Democratiza e torna acessível uma ferramenta restrita a poucos, anos atrás, mas nos joga num caos de informações que passam por nosso feed como se não tivesse importância alguma.

Aos pioneiros, nossa homenagem !

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Morrer pela bala, não pela fome

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Nascido em Mineiros do Tietê, interior de São Paulo, cidade próxima a Barra Bonita e Jaú, Leônidas Andrade Fogaça veio a Piracicaba na adolescência. Segundo seu filho, Eduval Morales Fogaça, em 1932, quando houve o início do recrutamento dos voluntários na cidade de Piracicaba para a Revolução Constitucionalista, Leônidas e seu amigo Oscarlino Assis se alistaram. Pensando que seus pais teriam orgulho, foi para casa contar o feitio. Sua mãe chorou. O pai, friamente, comento que ele “nada mais havia feito que sua obrigação”.

Embarcou de trem na Estação da Paulista, sobre os prantos do pai. Chegou a Estação da Luz em São Paulo de lá marcharam por 350 quilômetros até Queluz, leste paulista, região de Guaratinguetá. 

Uma das memórias passada ao filho demonstrou uma situação temorosa: “quando precisei usar o fuzil pela primeira vez a arma falhou, não disparou ! A bala ficou presa no cano e tive que desmontá-la para que pudesse ser útil na próxima investida”.

Edu Fogaça comenta que o pai falava sempre da escassez durante o conflito, principalmente de comida. Muitas vezes o que os voluntários dispunham era a xepa, a comida não consumida anteriormente, requentada. Leônidas e Oscarlino se voluntariaram para transportar a comida em um local próximo. Leônidas tinha um irmão que era militar graduado à época, Eliziario de Andrade Fogaça. O capitão do regimento que lhe passou a ordem de transporte salientou do perigo no trajeto, respondendo bravamente: “vim disposto a morrer por bala, não de fome”. “Meu pai fez este trabalho durante determinado tempo, o que lhe valeu uma promoção no campo de luta a tenente, por ato de bravura”, disse Edu.

“Só soube disso muitos anos depois da Revolução. Certa vez passei a notar que ele recebia pelo Correio o Diário Oficial, em cuja etiqueta vinha seu nome escrito tenente. O questionei se não havia erro pois seu irmão é quem tinha esta patente militar. Foi aí que ele me contou a história que relatei. Naquela época os ‘velhos’ eram bem mais discretos”, diz Edu Fogaça.

“Com o tempo ele passou a me dedicar atenção diante de sua experiência na Revolução de 1932. Havia dias em que o fogo da artilharia inimiga era muito intenso. Meu pai e companheiros precisavam ficar deitados no mato por um longo tempo. Certo dia, quando as rajadas pararam, meu pai disse aos amigos que aquele não seria o dia de morte de todos bravamente afirmando: ‘olhem onde eu me deitei !  Estava sem querer em cima de uma medalhinha de Nossa Senhora Aparecida... perdida... inexplicavelmente, no meio do mato”. A razão : ele era devoto de Nossa Senhora.

Leônidas, em pleno campo de batalha recebeu a informação de que sua mãe, Amélia Ferreira Fogaça (casada com João de Andrade) estava gravemente enferma. Ele dirigiu-se ao comandante solicitando autorização para viajar e visitar sua mãe. O pedido foi negado. Foi conversar com o capitão amigo do irmão, o qual lhe disse que seria difícil o comandante voltar atrás na sua decisão.

“Me alistei para matar inimigos. Mas, até agora não vi nenhum na minha frente. Quem me impedir de ver minha mãe, será meu inimigo”, disse. Depois de muita relutância, conseguiu o visto com esforço deste capitão. Como era inverno, o capitão cedeu a Leônidas seu agasalho. Até a Estação da Luz, em São Paulo, ele pensava em como chegar a Piracicaba sem um centavo no bolso. Na plataforma de embarque, um soldado lhe bateu continência. Mais para frente, outros fizeram a mesma reverência. Chega um grupo de soldados quem param à sua frente, batem continência e perguntam se poderiam lhe ajudar. Ele conta a história, recebeu uma refeição e conseguiu passagem a Piracicaba. Muito tempo depois percebeu que o agasalho que lhe fora dado em Queluz era de um capitão, com as divisas militares e ele estava, então, sendo confundido com um militar graduado. Dias depois sua mãe melhorou e ele retornou a Queluz. Contou a situação ao real capitão e riram. O oficial lhe falou que ficava feliz, pela recuperação da mãe, de protegê-lo do frio e ter contribuído para chegar a Piracicaba. Leônidas casou-se com Anna Moraes Fogaça.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Dos Urupês à Noiva da Colina

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Caipira sofrido, sertanista, apático à vida das grandes cidades. Assim é um dos contos de “Urupês”, escritos por Monteiro Lobato entre 1914 e 1917. Essa era a versão do brasileiro esquecido pelo poder público, que carpia, criava porcos e pitava um cigarro de palha. “Urupês” é uma sequência de crônicas criticando o Brasil nas duas primeiras décadas do século passado. Foram publicadas no jornal “O Estado de São Paulo” e na “Revista do Brasil”. O caipira era Jeca Tatu, tema da primeira crônica intitulada exatamente “Urupês”, publicada em 23 de dezembro de 1914 no Estadão.

Urupê é um fungo que forma cogumelos em árvores. Lobato disse, certa feita, que sua mãe lhe chamava de urupê quando vadiava enquanto criança (“parece urupê de pau podre”, dizia). Urupê apresenta um Jeca Tatu descalço, com roupa maltrapilha, barba a fazer e acompanhado de um animal de estimação. Precisava se adequar à modernidade. Eis que surgem ações sanitárias contra doenças típicas do campo, estas encabeçadas pelo Instituto Adolfo Lutz, em especial para conscientizar sobre as condições sanitárias adequadas. Parênteses ... Jeca andava descalço e pisava sobre o esgoto que corria a céu aberto. Com isso, tinha fraquezas e era desmotivado. Eis que Cândido Fontoura tem ideia de promover uma cultura educativa e a venda de itens de seu laboratório Fontoura Serpe & Cia. Foca em doenças parasitárias como o amarelão. Junto ao ilustrador Belmonte, cria o manual Fontoura que alguns conheceram através do elixir Biotônico Fontoura. A cartilha teve mais de 100 milhões de exemplares impressos.

Do urupê criado na capital paulista, demos um salto a Piracicaba em junho de 1948. A cidade, assim como muitas do interior deste Brasil, ainda levava a fama de ser povoada por “caipiras”. Hoje digamos que somos, com muito orgulho, caipira ... caipiracicabanos, sim, senhor !!!

Vamos à rua São José, proximidades da praça José Bonifácio. A sociedade no final dos anos 40 circulava por ali. Espaço ideal para tudo. Clube Coronel Barbosa, Teatro São José, sede do E. C. XV de Novembro e um alto-falante que transmitia programas da Rádio Difusora. O esporte era atração nestas transmissões. Neste trecho também estava o Challet Paulista (embrião da atual Casa Raya), loja de produtos esportivos e apostas comandada por Armintos Raya. O XV estava em campanha para se tornar um time profissional. Eis que o gerente do Challet (cujo nome a história tristemente omitiu ...) decide criar um concurso de desenhos sobre as partidas do alvinegro. Aparece apenas um adolescente de 15 anos que rabisca uns desenhos agradando ao gerente que semanalmente expõe estes traços na vitrine do Challet. Detalhe, os desenhos tinham que fazer referência ao XV.

O jovem, resolve personificar um caipira como representante do XV. Cada partida disputada, um desenho. Não tinha nome este caipira. Nota-se que o caipira que representava o alvinegro tinha sua fonte inspirada no Jeca Tatu. Inicialmente até recebeu este nome: o Jeca. Bom, o XV subiu para a elite do esporte paulista. O desenho era de autoria de Edson Rontani. Rocha Netto, representante da Gazeta Esportiva, pega um destes cartazes, ruma a São Paulo, e o mostra a Thomás Manzoni, diretor do jornal. Achou as linhas mal tracejadas, sem técnicas adequadas (os desenhos eram feitos em sobras de papel a lápis). Pede uma repaginação na arte por Nino Borges, que tinha tradição em desenhar mascotes de times para figurinhas de balas e álbuns. Assim, em janeiro de 1949, a Gazeta publica o nascimento do Nhô Quim, que completa este ano seus 75 anos “oficiais”. O nome da mascote foi dado por Rocha e Thomás, como diminutivo de “sinhô” Quinze.

O Jornal de Piracicaba publica em 1952 o primeiro clichê feito por Eugênio Luiz Losso em cima de desenho de Edson Rontani, num processo caro para a época que vivia prensas tipográficas. De 1952 a 1997, quando faleceu, Rontani, desfilou o caipira por todos os jornais locais.

Teve variações não constantes sob a pena de Archimedes Dutra, Almir Bortolassi, Manolo, Nino Borges, Cardona, Messias de Mello, Orlando Pizzi e Luiz Moreira, entre outros da imprensa paulistana. Para não ser uma cópia fiel da Gazeta, o jornal O Governador mostrou nosso Nhô Quim vestido de terno preto, como um verdadeiro papa-defuntos. Com o tempo torna-se o caipira que conhecemos hoje e remete muito ao caipira “urupê” de Lobato. Um viva ao aniversariante do mês !  

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 2 de junho de 2024)

quinta-feira, 6 de junho de 2024

O cancelamento de Lobato

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

A história se repete constantemente. Uma mente brilhante. Um comerciante das palavras e não um escritor, como ele mesmo se identificava. Monteiro Lobato é alvo constante do cancelamento. Foi jogado à berlinda depois de ter vida e fama feitas através de seus livros. Isso ocorre em 1941 quando foi acusado pelo crime de lesa-pátria por cartas pessoais dirigidas ao presidente Getúlio Vargas. Pegou xilindró por alguns meses.

Seu pensamento eugenista e preconceituoso, que representavam a sociedade do início do século passado, provocam um novo cancelamento endossado inclusive por uma de suas bisnetas que tem tentado reescrever suas obras para a geração atual.

Lobato deixou seu legado. Fez de tudo: crônicas, críticas, poesias, livros de ficção ... E ocupou todos os veículos disponíveis em sua época: cartas, jornais, livros ... É inegável sua contribuição para a história e cultura ao longo de seus 66 anos de vida.

Lobato passou por nossas vizinhanças. Em São Pedro, iniciou uma longa jornada pela qual hoje é esquecido. Lá, ele perfurou a terra na intenção de encontrar petróleo. Com a criação, em 1931 da Companhia Petróleos do Brasil, acreditava que o combustível fóssil jorraria do chão no interior paulista. Passou a perfurar no bairro de Araquá (São Pedro) e no distrito de Riacho Doce (Alagoas). Nunca encontrou petróleo. Gastou toda a riqueza acumulada com seus livros e foi perseguido como agitador social pelo governo Getúlio Vargas. Chegou a visitar Piracicaba por volta de 1907, referindo-se à cidade em carta escrita em março daquele ano, quando assumiu o cargo de promotor público em Areias, no Vale do Paraíba.

Existem registros de que Lobato tenha feito pesquisas e prospecções na divisa norte do município de São Pedro com Charqueada (Xarqueada, no início do século passado), em área que hoje pertence a Águas de São Pedro compradas por Moura Andrade para implantação desta nova cidade. Porém, os passos iniciais não foram feitos por ele e sim pelo Serviço Geológico da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo, cujo governador então era Júlio Prestes e o secretário de agricultura era Fernando Costa. Lobato seguiria os passos em busca do petróleo iniciados pelo italiano Ângelo Ballone que perfurou dois poços os quais chegaram a 1.615 metros, bem além das perfurações de Lobato.

Águas de São Pedro, se hoje tem a fama por suas águas medicinais, deve grande parte à estes pesquisadores. No início do século passado, quando a região passou a ser ocupada por fazendeiros, um determinado trecho de São Pedro apresentava forte cheiro similar ao querosene, que emanava de suas terras. O Bairro do Querosene, que então abrigava a fazenda de Ângelo Franzin, depois comprada por Octávio Moura Andrade para a instalação da estância de Águas de São Pedro, despertou a curiosidade de muitos investidores inclusive o governo federal.

Entre 1915 e 1931 foram feitas diversas análises do material recolhido nos ribeirões de Araquá e Tuncum. Mas não passou disso. Os governos estadual e federal não se empenharam em aprofundar as pesquisas e apenas com a intromissão de iniciativas particulares é que a situação mudou.

Lobato criou a Companhia Petróleos do Brasil devido à forte influência que possuía na sociedade. Buscava investidores prometendo-lhes fortunas. Agregou valores diante de poderosos principalmente ao lançar ações de sua empresa na Bolsa de Valores. Em apenas quatro dias, vendeu metade das ações disponíveis. Chegou a declarar na época que, após o petróleo, a indústria do ferro seria sua futura investida. Um ano depois incorporou a Companhia Petróleo Nacional e em 1936 fundou a terceira sua última empresa mineradora, a Companhia Matro-Grossense de Petróleo. 

No Poço Tuncun, quando chegou-se à uma prospecção de 314 metros, foi recolhida a quantidade de 20 litros de petróleo. Os ânimos ficam mais fervorosos. Chega-se a uma escalada de 758 metros terra abaixo. Encontraram-se várias camadas de terra impregnada à óleo. Em setembro de 1928, encontrou-se a presença de petróleo com base parafínica de cor verde. Não se sabe porque, mas o poço foi tapado e abandonado.

Lobato acabou com sua fortuna nesta tentativa de mostrar que “o petróleo é nosso”. E a história mais um vez foi cancelada.

(Publicado na Tribuna Piracicabana de 07 de junho de 2024)