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domingo, 12 de outubro de 2025

Rua sem saída

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Na última quarta-feira (8 de outubro de 2025), a história de Piracicaba foi reescrita. Mais uma vez reescrita. E desta vez sua história foi resgatada à oito mãos, sendo dedilhada por Barjas Negri, Miromar Rosa, Kátia Mesquita e Fábio Bragança. Com a publicação do livro “1001 Ruas”, produção independente dos autores, resgata-se não apenas uma lista de endereços e sim personalidades homenageadas em logradouros como ruas, avenidas, vielas, travessas, viadutos e afins.

Para quem não tem destino, qualquer caminho serve, já dizia um velho ditado. Porém, as ruas são referência para nossa rotina diária. Imagine como eram as referências no passado: pegue a rua direita (que partia do rio Piracicaba), siga até o bairro alto (no alto da colina esquerda do rio) e próximo você encontra o bairro dos alemães (em homenagem à colônia germânica aqui estabelecida). São pequenos exemplos que nos norteiam na direção a ser tomada.

Passear pelas ruas é um conhecimento curioso e gostoso. Afinal, vamos à Governador visitar as lojas sem muitas vezes estudar quem foi Pedro de Toledo, interventor federal em São Paulo no início dos anos 1930, deportado para Portugal por ter colaborado com os paulistas na Revolução Constitucionalista. Aliás, existem poucas referências – apenas em anúncios em jornais – sobre a rua João Pessoa, anteriormente denominada de rua do Commércio e posteriormente Pedro de Toledo. A mudança de nome de qualquer logradouro hoje demanda não apenas da mudança das placas em cada esquina e sim na mudança cartorial e suas avenças financeiras.

Temos bairros com ruas que homenageiam a Segunda Guerra Mundial (Monte Castelo e Pistóia, no bairro Verde), assim como cantores (Francisco Alves e Ataulfo Alves, também no bairro Verde), países, aves, flores e outros. Mas “1001 Ruas” busca homenagear as pessoas que fizeram e construíram Piracicaba, num abecedário com diversas verbetes. Não são biografias extensas, mas referência necessária para saber quem é o nome estampado nas esquinas quando se coloca o pé na calçada ou no asfalto.

Também é uma forma de viajarmos no tempo com nossa memória que às vezes fica empoeirada. Talvez poucos se lembrem dos carros batidos, amassados e recolhidos pela Ciretran em sua sede ao lado da praça da Boyes, na rua Luiz de Queiroz onde hoje serve-se uma das melhores gastronomias locais. Ou de um tempo de antanho quando a rua do Porto era aquela conhecida hoje por rua Moraes Barros, já que ela é quem dava destino ao porto no rio Piracicaba. A própria rua do Porto, ao lado da avenida Alidor Pecorari era uma zona residencial até os anos 1980. Nos dias atuais é um centro comercial movido pela gastronomia servida à mesa.

Andar pelas ruas de qualquer cidade é possível ver belezas (como as grafites no Largo dos Pescadores) e as “feiuras” como lixo ou a má conservação das calçadas, entre outros.

O livro evoca memórias e esclarece algumas pessoas que não fazem ligação que alferes era a atual patente de tenente no Exército Português. E que José Caetano (Rosa) foi vereador, dono de usina e escravocrata. Além disso, foi um dos principais arruadores da cidade, numa era em que tudo era feito nos “zóio”, sem GPS nem nada.

Aliás, já que abordamos localizadores, alguns deverão se lembrar de como era difícil viajar para São Paulo, Campinas e Santos sem o Mapa Rodoviário 4 Rodas, publicado pela revista da Editora Abril. Dirigir sem ela era difícil. Mas dirigir com ela era pior já que o mesmo ocupava quase todo o painel dos veículos.

Neste interim surgiu o GPS. Tínhamos de pagar para suas atualizações. Não era como hoje no celular. Semáforos, radares, ruas sofriam alterações... dá-lhe atualização! E pagava-se por ela. Hoje, você viaja com o celular que lhe dá conselhos sobre policiamento a frente, ou veículo parado mais adiante ou objeto no meio da estrada. Ficou mais fácil. Ou, seja: o Waze é meu pastor e ele me guiará...

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 12 de outubro de 2025)

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Saci teve um pé em Piracicaba

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Saci teve um pé em Piracicaba. Aliás, teve seu único pé em Piracicaba. E não é ironia. Vamos usar uma história para descrever o porque disso. Há 100 anos atrás, as pessoas liam uma obra de Bram Stocker intitulada “Drácula” e, cada cabeça imaginava um jeito como deveria ser o Vlade Tapes, mais conhecido como o vampiro que se alimentava de sangue humano e vagava como um intrépido insone, fugindo do sol. Porém, foi Tod Browing em conjunto com Carl Laemmle Jr. que deu a imagem que conhecemos hoje, longe dos livros. Um sujeito de cara fechada, vestido de roupa negra e uma longa capa. Pronto ! Estava feito o estereótipo do vampiro noturno !

Pouco mais de 100 anos atrás, sem televisão, cinema e internet, a imaginação corria à solta. A conversação arrepiava as pessoas. Foi daí que se propagaram lendas urbanas e rurais, dentre elas o saci.

Coitado do nosso Pererê... Teve de caminhar a duras penas para que no imaginário popular tivesse a composição de uma pessoa de meia idade, segurando um cachimbo, vestido apenas de shorts e um gorro na cabeça. Sabia-se que ele era terrível para com todos, que dava assobios ensurdecedores, aparecia em redemoinhos os quais surgiam do nada ! Mas, como se elaborou esta aparência ?

Pois, bem. Monteiro Lobato, lá por volta de meados da década de 1910, utilizava as páginas do jornal “O Estado de São Paulo”, para fazer seus inquéritos. Foi aí que ele criou, em crônicas, seus pensamentos sobre o homem interiorano, depois reunidos no livro “Urupês”. Surge o Jeca Tatu, típico caipira, desleixado que vive no campo, pita um cigarro, e espera a vida acontecer. Foi neste Jeca que surgiu o nosso Jeca, o “Nhô Quim”, mascote do Esporte Clube XV de Novembro de Piracicaba. Uma história puxa a outra.

Foi nestes inquéritos do Estadão que Lobato questionou o vanguardismo da Semana da Arte Moderna, hoje inconteste revolução artística. Na época, ele considerava os trabalhos de Anita Mafalti como aberrações em forma de telas. O tempo foi cruel com Lobato, mostrando-lhe que os rabiscos de Anita criaram fama e alcançaram milhares de dólares quando postos a venda nos leilões.

“Inquérito sobre o sacy-pêrêrê” foi uma das suas articulações para que, em conjunto com os leitores pude criar a “cara” desta lenda contada em todo o Brasil. “Mythologia brasílica” era o nome da coluna. Aí é que Saci coloca o pé – com perdão para a expressão – na cidade de Piracicaba. Em 1º de março de 1917, o Estadão publica carta de Sebastião Nogueira de Lima ajudando a compor esta face do negrinho que aprontava suas estripulias, seguindo tradições indígenas e africanas que povoaram por muitos séculos as tradições orais.

Nogueira – que foi vereador, delegado e interventor federal em São Paulo – lançava curiosidades interessantes sobre o Pererê, criando inclusive uma música (também publicada naquela edição) sobre como deveria ser o assobio do perneta, lembrando o seu forte silvo.

Nogueira conta uma face admirada por Lobato: o saci sentimental. Aliás, não é o saci e sim vários sacis, todos com feições iguais, mas com sexos diferentes e idades também diferentes. Ele mesmo cita que, quando criança, ficou ensurdecido com o silvo de um saci chamando sua amada, num solfejo a la “rhtymo de polka”, conforme descrito naquela edição.

“Inquerito sobre o Sacy” virou um livro escrito por Monteiro Lobato. O depoimento de Sebastião Nogueira consta nele. Não dá para dizer, então, que Saci Pererê não seja piracicabano. E viva nosso cidade !




(Publicado na Tribuna Piracicabana de 11 de outubro de 2025)

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

História acessível

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Um acervo acessível. Não naquilo que se trata de acessibilidade com rampas. Mas, sim, acessível onde a pessoa estiver. É para isso que o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba tem trabalhado nos últimos anos. Pois, com a pandemia aprendemos muito. Surgiram aplicativos e plataformas de consulta a distância sem a necessidade de presença para pesquisar no material físico. Empresas aprenderam com o home office ou o modelo híbrido. Dias atrás foi destaque a demissão de 1 mil funcionários que estavam nestas condições num banco de renome no país.

Recentemente, folheando um jornal de 50 anos atrás notei que deveria tomar total cuidado pois ao virar de forma rápida o mesmo tenderia a rasgar. Não era este meu propósito. Se estou folheando um veículo da imprensa local lançado meio século atrás, quem seria eu nesta ordem? Não queria ser a ferramenta que impediria de tê-lo conservado por mais e mais anos.

Isso nos ensina muito. Institutos locais e centros de documentação estão cada vez mais restritivos com relação às consultas pessoais. Por conta destas condições e também por ações consideradas como vandalismos, as quais posso enunciar algumas aqui: o surrupiar de um bem; o recorte de parte da página; ou rasgar a página toda de um livro, um caderno etc.

Há receio de abrir documentos originais por vários motivos. Um foi enunciado acima. Outro é sua conservação. Três pastas encontradas recentemente em nosso acervo destaca a vida de Antonio Pádua Dutra, tudo muito bem conservado, com seus telegramas enquanto em terras europeias, assim como suas correspondências manuscritas um século atrás. Separadas em papel manteiga, estavam fotos da época. Tudo daria um livro. Se não for inventariado, não pode ser aberto à população.

Pois, bem. Há mais de dez anos nas gestões de Pedro Caldari e Vitor Pires Vencovsky, o IHGP tem se lançado ao mundo digital como forma de facilitar a propagação da história de Piracicaba. Para isso tem na plataforma Flickr mais de 13 mil registros fotográficos. O acervo de fotos do Jornal de Piracicaba dos anos 1980 a 2000 aos poucos está sendo disponibilizado. Importante salientar é que todo o acervo pode ser visto e baixado gratuitamente, em resoluções que vão da versão web até para a confecção de imensos painéis, como pode ser visto em redes supermercadistas locais.

Há o que ser feito. Há muito a ser feito, diga-se. O IHGP tem vídeos e palestras em plataformas de streaming. Está lançando agora em setembro seu podcast no Spotify. Em breve terá uma sequência entrevistas no seu videocast. Tudo para registrar a atualidade para o futuro e resgatar o passado com gente que possui muito conhecimento.

A história de Piracicaba remonta 258 anos de vida. Até mais, se formos levar em conta as expedições que por aqui se aportaram, mas não fincaram raízes, ou as monções discutidas mas nunca efetivadas pelos povoadores. Não temos toda esta história. Algumas delas só é possível em consulta presencial em Portugal, para onde eram enviadas cartas e deliberações em geral para escrutínio da coroa real.

Assim, criamos vários públicos que se interessam por um passado longínquo e curioso. Outro que viveram meados do século passado e lembram muito mais do que nós, porque conviveram com outras pessoas naquele período. E a geração que vive a expansão de Piracicaba com, por exemplo, as boates, os parques industriais, os shoppings centers e aquela memória mais afetiva que ainda povoa nossa lembrança, sejam elas dos anos 70, 80 ou 90... Ao estarmos no primeiro um quarto do atual século, cabe lembrar que os anos 2000 já têm uma carga histórica de passado. Uma carga preciosa a ser preservada e divulgada.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 21 de setembro de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 27 de setembro de 2025)

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Tadinho do “seu” Vitório ...

Nelson Gonçalves e Cobrinha

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba


Numa saudade que punge e mata, nos esquecemos do “seu” Vitório. Cancioneiro daqueles que não existem mais, cujos olhos vibravam enquanto entoava seu violão, que fazia serestas para doces mulheres que se prostravam nas sacadas das residências. Sacadas hoje nem existem! Ou estão cercadas por concertinas ou tiveram instaladas grades.

Vitório Angelo Cobra foi um resgate que o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba fez na sessão comemorativa de seus 58 anos de fundação no último dia 26 de agosto, na Câmara de Vereadores. Fizemos questão que o Hino de Piracicaba fosse executado por uma antiga gravação conseguida por um LP de 1974. Eis que na ocasião, a Miss Bicentenário Maria Graziela Victorino França veio e me confessou: “nos 200 anos de Piracicaba, a Câmara não tinha uma sede e a solenidade de aniversário ocorreu no palco do Teatro São José; enquanto estava eu para receber o título de Miss, ao nosso lado estava o ‘seu Cobrinha’ para tocar este hino”. Foi emocionante para ela na ocasião e foi emocionante ver no telão da Câmara a voz do “seu” Vitório Angelo estalar seu gogó em letras marcantes quando se refere a Piracicaba como “cheia de flores, cheia de encantos”. Por mais que seja uma gravação simples acompanhada de um violão e um teclado, foi importante este resgate. Isso porque na atualidade, Cobrinha vem sendo legado ao ostracismo, provocado por plataformas digitais de músicas, por mídias digitais que sequer pensaram em digitalizar obras locais como do próprio e referido Vitório Angelo, Pedro Alexandrino, Parafuso e outros seresteiros. Tal Hino de Piracicaba hoje é acessível e fácil de ser conferido nas vozes de Craveiro e Cravinho ou Aninha Barros. Novas versões, novas roupagens. Mas, nada tira o brilho de nosso cancioneiro mor acompanhado muitas vezes no teclado por Caçulinha. Quem nasceu em 1967 foi presenteado pelo poder público municipal com um compacto composto por quatro músicas cuja performance foi de Cobrinha, incluindo tal hino.

Me lembro nos anos 1990, quando funcionário da Rádio Alvorada AM, ter visitado Cobrinha em sua residência no Bairro Alto. Titio Luiz, ou Luiz Antonio Cópoli, não deixava escapar uma. “Pega o carro, vai na casa do Cobrinha e faz uma entrevista com ele pelo telefone”, dizia. Seu Vitório já estava cansado. Mas nunca disse não. Faleceu em 1995. Deixou um legado necessariamente a ser resgatado. Aos 15 anos de idade começou a dedilhar o violão ao lado dos irmãos Pedro, Salvador, João e Antonio, que formavam o grupo “Choro Cobra”. Foi pioneiro, pois tal “Piracicaba” chegou a ser gravada por ele e Mariano 93 anos atrás, em 1932, nos Estúdios da Columbia, em São Paulo, naqueles pesados discos de 78 rotações. No auge da carreira, foi membro de bandas nas quais estavam, entre outros, Leandro Guerrini e Francisco Lagreca. Dividiu o microfone com pesos pesados como Francisco Alves, Silvio Caldas, Orlando Silva e Vicente Celestino. Só feras!

Em agosto, numa das idas ao Cemitério da Saudade, parei no bolsão de estacionamento em frente e fitei por alguns minutos o busto de Cobrinha empunhando um violão na praça Vitório Angelo Cobra, Cobrinha. No local, de 1981 a 1988 ficou instalado o Monumento ao Soldado Constitucionalista, que retornou ao seu local de origem na praça José Bonifácio após acórdão com o Supremo Tribunal Federal. Na praça, lá está Cobrinha no alto do monumento olhando para o Cemitério e dedilhando para aqueles que hoje não mais estão no meio de nós.

Porém, o tempo é cruel. Ele acompanha o esquecimento de mãos dadas. O próprio poder público, que em julho de 1993, instituiu uma Semana em sua homenagem esqueceu desta festividade. Aproveite a vida, pois na morte, todos tomamos o caminho do esquecimento. E salve o “seu” Vitório !


quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Mensagem para nosso futuro

 Edson Rontani Júnior

Jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Não estou nesta fase, mas preservo as amizades com septuagenários e octogenários. Essas amizades surgiram 30 ... 40 anos atrás. Talvez mais, talvez menos. Eu também era mais jovem. Não faço qualquer diferença. Pelo contrário, mais ouço que falo pois sei que da mente destas pessoas sai muita vivência, história de um longo passado gostoso de ouvir pois confio em tudo e saboreio cada palavra dita.

Henrique Cocenza, escritor e professor na Unimep, escreveu certa feita um livro com o título “Antes que eu me esqueça”, se não me engano, no início dos anos 1990. Sábio título. Sábio pois o ser humano por sua natureza tem o dom de esquecer. Memorizamos apenas aquilo que repetimos sempre. Cocenza colocou no papel passagens de sua vida as quais tinha medo de esquecer com o passar o tempo. Ele faleceu, mas sua palavra e seu pensamento permanecem. Eu próprio, quando pego meus textos de 15 ... 20 anos atrás, estranho algumas passagens. Não me lembro delas. E fico boquiaberto pensando: “fui eu mesmo quem escreveu isso?” ...

Leandro Karnal dias atrás publicou na imprensa um imenso artigo de reflexões voltadas para a sua própria velhice. Mensagens escritas no hoje para ele mesmo daqui 20 anos. O ser humano é mutável, seu pensamento é perecível. É curioso compararmos o hoje em outros tempos. É como ver um caderno escrito por nós mesmos no passado. A gente estranha.

Desta forma, ficam algumas dicas para todos nós seja daqui dez ou 20 anos. Vamos à elas ?

- Espero que eu e você em 2045 tenhamos controlado o tempo. Quando jovens temos tempo, mas falta tudo à nossa volta, desde uma casa, um carro ou o dinheiro. Queremos comer uma pizza com a namorada mas falta a bufunfa. Quando estamos ativamente na vida, o tempo nos come tornando os dias curtos achando chato festas, aniversários, pizzarias, enquanto podíamos estar encolhidos em casa para tirar o atraso do sono ou daquele “não fazer nada” aos finais de semana. Devemos ser sábios em domar o tempo e não deixa-lo nos dominar, assim como devemos aprender com o dinheiro. Não sejamos escravo dele. Tomara que no futuro, tudo isso aqui faça sentido !

- Seja sociável. Com o passar do tempo, trocamos o olhar no olho pela revista, pelo álbum de fotografia, pela televisão e agora pela internet. Mesmo em rodas de conversa, é comum ver as pessoas sentadas ao nosso lado remexendo o Instagram num nocivo stalkear para saber o que fulano está fazendo, o que sicrano está comendo, e assim vai. Isso tem nome, chama-se FOMO, uma síndrome já tratada como doença. Gostoso mesmo, é jogar baralho, um jogo de tabuleiro, independente de fazer calor ou chover lá fora. Importante é sentir pessoas ao seu lado que um dia nos deixarão e, muitas vezes, sem dizer um “te amo” ou um “tchau”. Espero que entendamos isso no futuro.

- Não seja teimoso ! Sim. Você e eu não devemos ser teimosos com o passar o tempo. Parece que isso anda de mão dada na velhice. Semanas atrás estava eu numa farmácia na rua Governador esperando ser atendido. Repentinamente um barulhão. Olho para a entrada, um homem caído ao chão. Celular para cá, documentos para lá e ele estendido no chão com a cara espatifada. Caiu sabe-se lá como. O erguemos, colocamos numa cadeira e o mesmo começou a reclamar que doía sua face, a qual começou apresentar sinais de sangramento. Aparentava ser octogenário. “O senhor quer que avise alguém da família?”, disse minha esposa. A resposta: “eles não ligam para mim, estão passeando e de nada adianta ligar”. Para mim, pura teimosia. Sentimos dó, mas notamos um vazio na vida do mesmo num momento em que quatro ou cinco estranhos o socorreram e o mesmo negava ajuda de pessoas “sangue do seu sangue”, os familiares que estavam passeando.

Fórmula boa e fácil não existe. Talvez daqui uma semana eu leia isso tudo e pense que escrevi a maior besteira. Não sei, talvez leia tudo isso em 2045. Sem pressa, aliás.  

 

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

A sopa para a mosca pousar

Edson Rontani Júnior, jornalista e cinéfilo 

A teledramaturgia e o cinema parecem estar andando de mãos dadas à qualidade, coerência e na infinitude de ideias. Pouco antes da pandemia surgiram produções biográficas sobre expoentes de nossa música popular brasileira, a famosa MPB, termo que surgiu nos anos 1960 contrapondo à bossa nova. Muitas destas produções superaram expectativas. Podem não ter rendido o esperado na bilheteria, mas se destacam como excelentes peças na telona ou no streaming.

Eis que aparece “Raul Seixas – Eu Sou” lançado em março pela Globoplay e exibido a partir desta semana em sinal aberto pela TV Globo. São oito episódios que relatam a vida deste ícone do rock brasileiro e figura inconteste da sociedade brasileira. Vale destacar que o seriado é mais que Raul, é Ravel Andrade na pele do personagem principal, numa surpreendente interpretação aliada à fantasia como os brainstorms com Paulo Coelho na criação de letras das músicas.

A cada capítulo um espelho crescente como uma opereta maluca na qual sua infância na Bahia nos leva ao Raul criança, sonhador com extraterrestres, iludido com livros com conteúdo fantásticos que reverberam Jules Verne, Alexandre Dumas, Edgard Alan Poe e outros. De terno, gravata e pasta 007, ele perambula pelos escritórios da CBS do Rio de Janeiro mostrando seu desconforto em ser um “cidadão respeitado que devia estar alegre e satisfeito por morar em Ipanema”, como dizia seu hit “Ouro de Tolo”.

O seriado passa de meados dos anos 1960 até 1989 quando o ídolo morreu aos 44 anos de idade. Tem cenas surreais como a do elevador no qual encontra-se com Jesus Cristo e Elvis Presley. São ícones de sua fase grã-cavernista na qual procurava uma sociedade alternativa em plena ditadura militar. Até explicar que esta sociedade era uma religião e não uma ordem social, houve um hiato imenso, pago, aliás, por Paulo Coelho, comunista de carteirinha e autor de mirabolantes letras cantadas pelo mago do rock brasileiro.

É nesta ligação que cito outras obras do cinema nacional como “Tim Maia” (2014), “Elis” (2016), “Minha Fama de Mau” (2019). Todos mostram astros ricos, populares, rodeados de tietes, donos de sucessos musicais, porém presos a drogas e ao álcool. Raul era mais. Seguia o bordão: “drogas, sexo e rock’n’roll”. Vivia de festas até com estranhos. Bebia o dia todo além de atirar-se como corpo e alma no fumo e nas drogas. Mas é inconteste a capacidade de criar música, arranjos e, principalmente, letras em sucesso que lhe renderam shows e discos de ouro na época em que eram conquistados a cada 100 mil LPs vendidos. Subiu rapidamente e caiu rapidamente. Passou a ser contratado com desconfiança de que não terminaria seus shows de forma sóbria.

Era um “maluco beleza” no jeito de se vestir. Teve esposas e mulheres, assim como filhas. “Raul Seixas : Eu Sou” deixa evidente sua necessidade de estar presente no passado, como espelho ideal de sua vida. O pai ausente que esteve compondo, tomando suas “biritas” ou procurando seu ego enrustido numa religiosidade extraorbital. “Carimbador Maluco” foi o início da queda. “Eu gravando uma música para um programa infantil?”, chega a dizer. Rendeu-se à sociedade convencional para não morrer de fome.

A obra merece mais que ser vista e revista. “Raul Seixas: Eu Sou” é uma concepção concreta de que a teledramaturgia já segue os passos dos seriados americanos anos dos anos 2000 e 2010 e dos doramas coreanos da atualidade. Ou seja, estamos em plena sintonia com o streaming mundial ofertando bons produtos, consumidos facilmente, mesmo que Donald Trumpo invente de taxar nosso cinema e nossa televisão.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

A montanha dos abutres

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba


 

Uma pessoa curiosa fica presa numa caverna ao procurar relíquias indígenas. Soterrado, ele tem o auxílio de desconhecidos para se alimentar. Mas as rochas que caíram sobre ele impedem seu resgate. A história ocorre na cidade de Albuquerque, estado do Novo México, Estados Unidos. Um jornalista aproveita a situação para fazer o que se chamou em outras época de “jornalismo marrom”, ou seja, tirar proveito da situação para alcançar leitura e venda do material impresso.

Claro que a época é outra. No caso do curioso a ser resgatado, estamos na virada da década de 1940, quando os jornais tinham milhões de exemplares por dia, em que não existia concorrência da televisão muito menos da internet. As pessoas se informavam com o papel impresso, como este jornal. Um repórter que estava buscando um “furo jornalístico” e, quem sabe, reascender profissionalmente, vê no caso da caverna uma chance de brilhar. Como será feito o resgate? A vítima passa bem? O que ela pensa sobre seu futuro? Tudo era um capítulo atrás do outro, como vemos em novelas ou seriados. O jornalista nota que isso aumenta a venda do jornal impresso e eleva seu faturamento publicitário.

Porém, ele pensa: quando acabar, tudo volta ao normal. Minha reputação retorna à estaca zero. Meu ganho financeiro, também. Por que, então, nos postergar o resgate? Assim, ele começa a impedir o avançar da retirada do indivíduo do buraco.

Este é o filme “A montanha dos sete abutres”, de 1951, estrelado por Kirk Douglas como o inescrupuloso jornalista, dirigido pela batuta do polonês Billy Wilder. Ele foi um dos melhores diretores norte-americanos do cinema. Toda sua carreira é permeada por sucessos comerciais e filmes que colocam nossa mente em parafuso.

Bom, de 1951 para 2025 são 74 anos de distância. A sociedade mudou. O jornal impresso mudou. O engajamento em mídias digitais é algo contemporâneo que alterou o meio que vinha numa boa cadência desde os anos 1800.

Dias passado chegou a nós a informação da publicitária paulistana que caiu na boca de um vulcão na Indonésia, resgatada dias depois sem vida. Alguma similaridade com o filme anteriormente citado? Entre sua queda e seu resgate, foram poucos dias. Mas o engajamento nas mídias sociais mexe com algoritmos que interessam aos processos midiáticos atuais. Tanto que o assunto ainda é pautado, semanas depois. No mesmo final de semana, um balão com mais de 20 pessoas pega fogo, em Praia Grande, Santa Catarina, e eleva os algoritmos digitais.

A curiosidade do ser humano hoje é guiada por altos e baixos do Instagram, Tik Tok e outros. A curiosidade em ver “o circo pegar fogo” com os outros é peculiar do ser humano. Nelson Rodrigues já falava que é mais curioso ver o que ocorre na esquina de casa do que nos Estados Unidos. Não à toa criou seu espetacular “O beijo no asfalto”. George Orwell em “1984” ditou regras que hoje movimentam milhões de dinheiro com a fórmula do “grande irmão”, ou o big brother como conhecemos. Olhamos pelos canais disponíveis o que as pessoas fazem trancafiadas numa casa.

O voyeurismo passou a ser palavra de ordem. Celular na mão e o processo midiático passando na nossa frente. Risada daqui, comoção dali ... alimentos que movem o ser humano.

Submarino russo que submergiu e nunca mais voltou a tona em 2000. Mineiros soterrados no Chile em 2010. O padre que saiu voando com bexigas. Avião que caiu na Índia em junho. Avião com o time do Chapecoense que caiu em 2016. Estes são exemplos de recordações que fixam em nossa mente e nunca mais desgrudam. Precisamos disso?

Assim como a jovem de 25 anos que caiu na boca de um vulcão indonésio, fica a reflexão passada por Amir Klink, durante navegação que ele fez em águas antárticas: o silêncio. Ele é ensurdecedor pois não se ouve nada entre geleiras. E com isso ele olhou para seu interior e descobriu a solidão fazendo desta força uma forma de buscar e garantir a vida.

(Publicado no Jonal de Piracicaba de 29 de junho de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 5 de julho de 2025)

quinta-feira, 26 de junho de 2025

“Meu melhor amigo”

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Domingo. Dia de descanso, do almoço demorado, da televisão à toa e do cochilo a tarde. Não sei porque, mas pela manhã me veio à mente um livreto intitulado “Manuscritos do Mar Morto”, publicado por um jornal local na década de 1950. Confesso que já o folheei mas não o li por completo, isso há cerca de 30 anos atrás. Ainda no domingo, mais a tarde, baixa-me a tristeza, a solidão e o silêncio. Quietude. Algo inexplicável que se encaixa posteriormente. Mas, naquele momento, a distância entre a razão e o coração torna-se imensa e não consigo ligar os fatos. Bola para a frente! Eis que no início da noite me vem a informação de que falecera Oswaldo de Andrade. Explica-se aí esta sensibilidade que tenho, já vivida tantas e tantas outras vezes com a partida de parentes como se eles viessem me dar seu adeus e eu, ingenuamente, não conseguia unir as situações.

Oswaldo de Andrade foi uma referência em toda minha vida. Amigo de infância de meu pai, Edson Rontani, fizeram uma parceria como Oliver Hardy e Stan Laurel ou Ginger Rogers e Fred Astaire, para citar aquilo que eles mais gostavam: o entretenimento. Andrade teve sua profissão como advogado, mas colaborou com a imprensa local por diversas vezes. As mais recentes colaborações foram artigos de cultura em O Diário e também no Jornal de Piracicaba. Quem folhear os arquivos de 50 anos atrás encontrará nas páginas destes matutinos a assinatura deste escritor agora saudoso. Partiu no último domingo.

Encontrei-o pela última vez no jantar pelo dia do cirurgião-dentista em outubro passado, ainda recuperando-se do falecimento de sua filha Fernanda. Estava alegre com uma gravata borboleta ao lado de sua amada Zenaide para a homenagem de gala ao seu filho Oswaldo Scopin de Andrade, profissional de reconhecimento internacional na odontologia, que na ocasião seria homenageado como o Dentista do Ano. Haaa ... se eu soubesse que aquele seria nosso último encontro ... A vida é assim. Temos conhecimento que um dia termina. Pensamos ser forte para encarar a morte, mas quando ela chega, desabamos e chão algum segura.

Rontani pai morava na rua Boa Morte, quase esquina da rua Ipiranga. Eram os anos 1940. Ainda guri, estudou com Oswaldo da Andrade que morava a poucas quadras dali, na rua dom Pedro I em frete à Societá Italiana de Mutuo Soccorso. Quando Rontani entrou pela primeira vez na casa de Andrade, ficou maravilhado. O pai de Oswaldo era gerente da Rede Férrea Sorocabana e tinha em sua casa todo aparato necessário para a rotina administrativa, como papel, lápis, borracha, carimbos ... Rontani já tinha paixão por desenho, arte que o tornou conhecido até as gerações atuais, através do personagem Nhô Quim do XV de Novembro, do fanzine ou da coluna Você Sabia? publicada no Jornal de Piracicaba. O que ele não tinha são estes materiais. “Seu pai ficou admirado quando viu em casa tantos recursos que meu pai dispunha”, disse seu Oswaldo certo tempo atrás durante uma ligação telefônica que fiz a ele. Era muita ostentação para quem desenhava em papel de pão com um lápis para poder usar a borracha, apagar tudo o que tinha feito e desenhar de novo.

Andrade também era fã do desenho. Do cinema também. Rontani e Andrade recolhiam de tudo que era vendável – estamos falando aqui de pequenos petizes de 10 ... 12 anos de idade. Pegavam jornal e vidro (sim era reciclável e bem pago devido à escassez provocada pela Segunda Guerra). Juntavam, vendiam no ferro-velho e compravam ingressos para assistir aos seriados no Cine São José. Estes seriados eram lançados pela Republic, Columbia e outras produtoras americanas, tinham duração de 15 a 20 minutos e apresentavam um episódio por semana (situação depois copiada pela TV). Lá desfilavam Nyoka, Flash Gordon, O Sombra, Superman e tantos outros. Era tanta emoção que existia a vontade de eternizar aqueles momentos. Rontani e Oswaldo desenhavam, assim, seus próprios personagens em revistas de quadrinhos, com base no que viam na telona, que depois eram emprestadas aos amigos das escolas. Estes originais ainda hoje existem. Com o tempo, cada um seguiu seu caminho. Lembro do meu Rontani ainda adulto fazendo almanaques de Natal em nosso sítio do Iteperu-Guaçu para presentear Oswaldo. Todo este conhecimento, trouxe a Piracicaba o título de cidade que criou o primeiro fanzine da América Latina. Feito no fundo de quintal de casa, mas deixou história perpetrados nos anais comunicação.

Confesso que uma das heranças recebidas em vida foram as amizades passadas de geração em geração. De pai para filho. Algo intangível de grande valor sentimental. Foi assim com Oswaldo de Andrade, Waldemar Bilia, Arthemio de Lello, Antonio Oswaldo Storel e tantos outros que foram amigos de meu pai e se tornaram meus amigos. Com isso se fez uma amizade de longa data.

O céu receba seu Oswaldo para que junto ao seu melhor amigo possa continuar a dar sequência nessa fascinação pelo fantástico.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 25 de junho de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 28 de junho de 2025) 

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Conversa com a intelectualidade

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Chego, abro a porta e acendo a luz. Vejo longinquamente uma cadeira. Ótimo. Uma mesa grande cheia de quinquilharia. Terei de dividir a mesa com coisas que não deveriam estar ali. Mas, estão ! Assim, o espaço se torna restrito. Porém, isso não me afeta. O foco não é este.

Assento-me não muito confortavelmente, pois a tarefa me obriga a constantemente levantar-me, pegar um punhado de papéis velhos e seguir com meu prazer solitário (no bom sentido). A rinite acaba de ser acionada. Corro ao banheiro para assoar as narinas. Talvez usar uma máscara. Mas lembro-me do incômodo que era a máscara facial durante o auge da pandemia da covid. Hoje, parece que ela me sufoca. Tira minha respiração em sua totalidade. Querendo enganar não sei quem, coloco a mesma sobre parte das minhas narinas para que a respiração ocorra na “maior” normalidade, tampando por completo a boca. Mas o foco não era este.

Na sala que abriga o acervo material do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba olho para minha missão: catalogar pastas e mais pastas doadas por pessoas e famílias. Penso: papel velho ? Não ! História ! Nestas sulfites pautadas e escritas de forma datilográfica estão os intelectos de muitos. Estão vidas, alegrias, sofrimentos e muito conhecimento de vida. Além do tangível, os jornais e a papelada velha trazem uma história não mensurável de riquíssimo conteúdo individual ou social.

Um café cairia bem, penso. Mas, me alimento da informação, do anseio em saber como foi a vida de alguém, como num big brother que tem o prazer em espionar e interpretar as linhas de diários, de artigos em jornais, de pensamentos profundos de outrora. Mas, peralá ! Outrora ? Isso foi escrito em 1970 ! Você já parou para pensar que são 50 anos atrás ? Parece que envelhecemos mas nossa cabeça não acompanhou o processo do envelhecimento físico. A cabeça entra em parafuso. Paro com tudo.

Ao parar com pensamentos que me levam à depressão e me colocam em conflito com meu foco, paro com tudo por instantes. Não sei se caio no cochilo. Mas, num piscar de olhos, vejo ou percebo alguém sentado ao meu lado. Eu e esta figura ficamos calados numa simbiose inimaginável. Não é possível. Já vi esta figura em fotografias lá de 1920 assinadas por J. Cozzo, ou como membro de uma banda chamada Jazz Band Mozart Piracicaba. Tocou com Erothides de Campos nos cinemas na época dos filmes mudos. Nem pestanejo, pois tinha certo que o vulto presente era Leandro Guerrini. Como, assim ? Estava sonhando ou colhendo um pouco de sua vida ? Claro ! O vi consultando no passado as folhas da Gazeta de Piracicaba e no curioso Almanak de Piracicaba para 1900. Ele conta sobre a forca em Piracicaba, o pelourinho como fundamento de justiça para uma Piracicaba do século retrasado. Pirei, pensei. Vendo vultos que nem conheci mas que admiro pelas leituras que tenho. Uma espécie de dejá-vu se apossa de mim. Dou uma chacoalhada na face tentando acordar, num sentimento de que fosse eu um Ebenezer Scrooge que vê o passado circular em sua frente.

Esse cara está doido, alguns pensarão. Mas existem ícones locais que nos fazem ou fizeram viajar, colaborando para uma impressão intimista do que se imagina do passado. Alguns pensarão que tudo é besteira. Fulano era um “zé ninguém” e não merece tanto destaque assim. Mas, por ser um artigo assinado e assim expressar minha opinião pessoal, reservo-me ao direito de vasculhar aquilo que me foi importante no passado.

Desta forma, ainda sentado, com celular na mão fotografando uma página aqui e ali de jornais antigos, passam pela minha imaginação pessoas como Jair Toledo Veiga, Hugo Pedro Carradore, Waldemar Iglésias, Mario Neme e outros nomes os  quais não recorro agora. Muita informação em pouco tempo.

Acabo me levantando vendo no chão pedaços de jornais que amarelaram no físico, mas que na mente continuam como sendo do dia de ontem. Resta apenas a incógnita de que no futuro não serei eu um destes fantasmas que habitam o imaginário coletivo de Piracicaba.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 10 de junho de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 13 de junho de 2025)


quinta-feira, 5 de junho de 2025

No mundo da lua

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Ela já foi cortejada por muita gente, mas continua lá. Por mais que o ser humano tenha nela pisado, ainda é um objeto de obsessão e desejo. Foi cantada por poetas ao longo de vários milênios. A Lua é tão distante e tão próxima da Terra que ainda instiga a ciência e os corações apaixonados.

Aliás, foi um galante Cary Grant ou James Stewart que prometeu laçar a lua para sua namorada num filme do sempre impecável ítalo-americano Frank Capra. No cinema ela inspirou até James Bond e o vilão Gru que a reduziu, trancafiando o satélite natural em sua casa misteriosa. Mas, qual sua influência ? No passado era a guia para as marés, para as plantações e – acho que ainda hoje – serve para agendarmos a visita ao cabelereiro ou barbeiro.

Glenn Miller imortalizou seus vistosos raios romantizados por nós, terráqueos, em 1939 através de sua “Moonlight Serenade”, composição que ele próprio fez com Mitchell Parish. Vira e mexe, a serenata ao luar retorna em novas releituras e volta ao topo das execuções musicais. Pena que Miller não pôde nunca mais pode ver a Lua, já que repousa no fundo das águas devido à queda de seu avião na viagem que ele fazia da Grã-Bretanha para Paris durante a Segunda Guerra Mundial. Triste história para quem fez uma elegia para um dos mais belos fenômenos da natureza.

A Lua também foi motivo de briga política entre as grandes potências internacionais. Era o ponto de chegada dos humanos caso uma guerra nuclear viesse a ser desencadeada, conforme grande corrente dos anos 1950 e 60. Ou você tinha um bunker em casa para enfrentar a radiação ou partia para a Lua na tentativa de colonizá-la como tivemos na Guerra Fria com americanos e russos enviado ao espaço símios e cães, e depois homens. Não deu certo. Tivemos que continuar vivendo em solo terrestre cantando e versejando sobre os raios lunares. Agora por que “lunar” se falamos “lua”? Coisa de nossa língua que sofre forte influência do latim, do grego, do árabe ... É algo como freio e frenagem.

Nossa tão cansada MPB também elegeu a lua para grandes hits. Raul Seixas se enamorou por ela louvando São Jorge montado num jumento. Aliás, foi no dragão que São Jorge combatia que Monteiro Lobato se inspirou para criar sua Cuca que marcava presença em seu Sítio. Guilherme Arantes estava no mundo da lua em “No lindo balão azul”, alegando que era cientista e vivia num papo futurista.

Eis o xis da questão. Devaneios, pensamentos distantes, fases de num namoro ou paixão sempre são interrompidos com um “ei ! tá no mundo a Lua?”. O distanciamento nos coloca em solo lunático.

Porém, a história demonstra outra situação já que “viver no mundo da Lua” veio dos pensamentos pré Revolução Industrial de alguns ingleses não muito bem vistos pela sociedade de então. Os membros da “Sociedade Lunar de Birmingham”, cidade da Inglaterra, eram considerados extremos malucos pois pensavam em criar veículos movidos a motor automáticos e não por animais, ou, ainda, fazer um balão voar pelos ares manuseado por um ser humano. Parecia a mais profunda verve da imaginação de Jules Verne. Mas, não era. Foram eles os criadores dos protótipos do veículo e do avião. Só que ninguém os entendia. A “Sociedade” queria criar melhores condições de vida para a humanidade. Ciência não existia e dogmas religiosos eram contra boa parte das inovações benéficas para a humanidade. A igreja demonizou a criação de garfos por possuímos pinças naturais conhecidas por dedos. O tempo demonstrou que o pensamento de gente que se encontra hoje nos anais da ciência mundial tenderia a prevalecer melhorando nossa vida. Entre os membros da “Sociedade Lunar”, aqueles que viviam com a cabeça na Lua, estavam Erasmus Darwin (avô de Charles), Joseph Priestley (que descobriu o oxigênio – chegando a misturá-lo à água) e James Watt (criador da bomba de combustão que drenava água para minas de carvão depois utilizada em locomotiva e veículos).

Resumindo, se alguém lhe falar que você está no mundo da Lua. Tenha orgulho. As grandes invenções surgiram das mentes de lunáticos.


quinta-feira, 29 de maio de 2025

Imprensa local

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Ainda evocando a mídia local, vários nomes surgem. Muitos deles são dos impressos, tal qual das pessoas que fizeram a arte da escrita diária na Noiva da Colina. Universo estritamente masculino por muito tempo, relembraremos alguns profissionais que escreveram nossa história dia a dia. Outros conduziram a imprensa como diretores ou proprietários. Aliás, rica é a história de Piracicaba contada na época do Império através das páginas da Gazeta de Piracicaba que surgiu em 1882 e até o final do século narrou a rotina local, sendo fonte de pesquisa para os Almanaks posteriores assim como para historiadores como Mário Neme, Leandro Guerrini, Guilherme Vitti e tantos outros aos quais Piracicaba deve se render por ter viva esta tão longínqua memória.

“Piracicaba”, pelos registros existentes, foi o primeiro jornal local. Totalmente precário – era escrito a mão – com textos de Brasílio Machado que aguça a curiosidade de qualquer um para saber como ele enxergava a sociedade no ano de 1874 quando lançou o periódico em 4 de julho. Assim como outros jornais, circulava de quarta e sábado, cobrindo os fatos semanais. Curioso é ver que esta periodicidade reinou na cidade quase até os anos 1940. Quem sabe Piracicaba fosse pacata demais e as notícias não circulavam como na atualidade...

A Gazeta teve como proprietário Mário Arantes, renomado professor do ensino elementar. Antes dele, na sua primeira circulação em 10 de junho de 1882, seus responsáveis foram Vitalino Ferraz do Amaral e José Gomes Xavier. Ferraz era conhecido por seus discursos inflamados sendo orador na inauguração da água encanada e na comemoração pela proclamação da República.

Outro professor de renome nacional foi Alceu Maynard Araújo que por muitas vezes utilizou-se do pseudônimo Almayara, numa corruptela das iniciais de seu nome. Recentemente, a Cinemateca Brasileira resgatou uma obra sua, não impressa, e sim um documentário em celuloide que mostra as regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste brasileiro. Foi um expositor exemplar das culturas e do folclore interioranos.

Dias atrás, aqui nestas páginas, foi escrito sobre o vínculo de piracicabanos com Monteiro Lobato, grande inteligência deste país. Pedro Ferraz do Amaral foi um destes nativos que partiu para a capital atuando como secretário de redação nos anos de 1923 e 1924 da “Revista do Brasil”, importante produção de Lobato em parceria com Breno Ferraz do Amaral (seu irmão). Pedro também atuou na imprensa paulistana em “A Tarde”, “Correio Paulistano”, “Gazeta”, “Diário da Noite” e “Diário Nacional”. Breno do Amaral foi levado à capital pelo amigo Léo Vaz. Aqui em Piracicaba ambos assinaram o semanário “A Noiva da Colina”. Na capital atuou no “Estado de S. Paulo”, “Diário Nacional” e “Correio de S. Paulo”.

Se houve quem fazia a matéria-prima do jornalismo, existiu também aquele grupo que colocava palavras e pensamentos no físico, o tangível jornal, ou a revista ou ainda o livro. Um destes que por toda a vida dedicou-se ao texto impresso foi Fernando Aloisi, falecido em 1965. Deixou uma herança ainda viva em muitas hemerotecas e bibliotecas. A Tipografia Aloisi publicou os principais trabalhos dos grandes pensadores locais. Aloisi esteve na fundação do jornal “O Momento” e também no segundo “Diário de Piracicaba”, 1935.

Nas páginas dos matutinos, “Piracicaba não é cidade morta” nominou uma coluna publicada no “Jornal de Piracicaba” por Silvio de Aguiar Souza, pela alcunha de Antônio Calixto. Ironia ácida sobre a sociedade local com direito a colocar o dedo na ferida. Seu pai, Osório Dias de Aguiar e Sousa lhe inspirou a verve jornalística. Este, por sua vez, colaborou com jornais locais e de Capivari, onde nasceu. Escrevia sob o pseudônimo Orênio Sabaúna. Além da escrita de extensa criação de poesias e artigos, foi jurista e juiz de direito em várias cidades interioranas. Rica história.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Imprensa

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

A imprensa local sempre foi fonte de informação e credibilidade. Esta velha imprensa está completando 225 anos. Pelo menos é o que se pode afirmar com base em testemunho dos anos 1970 dado por Jair Toledo Veiga que, na ocasião, disse ter encontrado jornais do início do século 1800. Eram rústicos, escritos a mão, com poucas cópias e entregues aos letrados. Na redação, o depois senador Vergueiro fazia críticas à sociedade que possuía menos de 2 mil habitantes.

Cravado na história ficou o semanário “O Piracicabano”, cujas algumas edições podem ser consultadas online na Biblioteca Nacional. O coronel Joaquim Moreira Coelho era seu proprietário. Respirava ares da monarquia entre 1876 e 1885, mas tinha seu viés crítico contra quem estivesse no poder. Coelho também imprimiu “Lavrador Paulista” a partir de janeiro de 1888.

“O Diário da Manhã” foi outro representante da imprensa noivacolinense, porém, com vida curta, já que circulou de 1928 a 1930. São raras as edições existentes ainda hoje deste veículo mantido por Ernani (Leite do Canto) Braga. Embora formado em farmácia, exercia o jornalismo de forma legal, pois não havia na época estudo acadêmico para isso. Deixou artigos e poesias publicados principalmente no “Jornal de Piracicaba”.

Das prensas locais, conterrâneos também se destacam nos jornais além rio Piracicaba no auge do jornalismo (antes do rádio e da TV). Otacílio Silveira de Barros fez parte de “O Estado de S. Paulo” atuando na época de Monteiro Lobato. Leonel Vaz de Barros ou Léo Vaz também trabalhou neste jornal paulistano. Porém, lá por 1911, deixou suas pegadas em Piracicaba com o semanário “Noiva da Colina”. Foi na cidade de São Paulo que participou da criação da “Folha da Noite” em 1921 e do “Diário da Noite” em 1925. Na época, os jornais chegavam aos leitores no período da manhã. Para atualizá-los mais rapidamente, em todo o país pipocaram jornais a tarde ou a noite. Léo Vaz conheceu Monteiro Lobato e juntos atuaram na “Revista do Brasil”, hoje um ícone da imprensa que reuniu os principais pensadores brasileiros dos anos 1920. Vaz foi supervisor da revista de Lobato.

Bento de Arruda, nascido em Piracicaba, partiu para São Paulo onde também se associou a Monteiro Lobato. Foi na sua editora que ele publicou, em 1924, o livro “Por campos e vales”. Era amantes de plantas e caças. Colaborou como a “Revista do Brasil” e a revista “Chácaras e Quintais”, dois grandes sucessos entre os anos 1920 e 1950.

Um importante jornal local esquecido pelo tempo foi “O Momento” que teve seu peso na balança enquanto circularam o “Jornal de Piracicaba” e a “Gazeta de Piracicaba”. Um de seus proprietários foi Moacyr Amaral dos Santos, de 1931 a 1936, que chegou a ser juiz do Supremo Tribunal Federal nos anos 1960. Neste matutino também escrevia Haruni Al Rachid, pseudônimo utilizado por Elias Barreto, jornalista e escritor que atuou no Jornal de Piracicaba e em Limeira.

A imprensa local também foi trampolim para muitas carreiras políticas. Antonio de Moraes Barros foi redator da “Gazeta de Piracicaba” na década de 1890. Formado em direito, exerceu quatro legislaturas como deputado estadual além de deputado federal. Era sobrinho de Prudente de Moraes.

Cada exemplar, uma voz. Por isso surgiam vários títulos na cidade. Jornais, como expressado anteriormente, sempre foram fonte de credibilidade da sociedade. Neste pensamento, surgiu “O Popular”, que circulou de agosto de 1899 a fevereiro de 1890. José Gomes Xavier de Assis era seu proprietário. Criou-o quando estava na “Gazeta de Piracicaba”, auxiliado por Vitalino Ferraz do Amaral em sua manutenção. “O Popular” tinha como proprietário o Barão de Rezende e na sua tônica, pensamentos monarquistas.

Samuel Pfromm Neto nos ensina que o “Diário de Piracicaba” surgiu na cidade em janeiro de 1935 circulando até maio do ano seguinte. Estavam no comando Jacob Diehl Neto, Octaviano de Assis e Fernando Aloisi. Linotipos e prensas rodaram soltos na cidade. Afinal, são mais de dois séculos de história.  

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Eu, gênio

Edson Rontani Júnior, jornalista e cinéfilo 

Temente a Deus e com vontade de dormir. Duas condições humanas assumidas por um gênio no filme “Era Uma Vez Um Gênio” (2022). Nesta produção hollywoodiana vemos um George Miller menos comercial, muito intimista, e buscando suas raízes. O australiano de 80 anos consegue colocar nossa cabeça em parafuso ao abordar o tema de um Aladim em tempos atuais. Vai além das concepções profundas do amor, do desejo e da desilusão pregadas por Jung ou Freud.

Miller deu umas derrapadas em sua carreira para o bom amante do cinema, mas que renderam ótimas bilheterias, como “Babe” e “Happy Feet”, filmes para família ou infantis. Começou com uma carreira promissora com a franquia Mad Max em 1979. Era visto como um inovador da sétima arte nos anos 1980.

“Era Uma Vez Um Gênio” não é um estrondo comercial nem um filme feliz. Joga para a atualidade a solidão de um gênio enclausurado diversas vezes em uma garrafa, lamparina ou vidro de perfume por tentar entender o universo feminino ou interferir no mundo das mulheres. Cria-se dó ao assistir à produção, que, como grande estraga-prazeres, digo que termina com final feliz.

Os gênios tiveram vida promissora no ocidente a partir dos anos 1700 quando foram compiladas diversas histórias populares presentes no oriente médio desde os anos 800. Era um folclore riquíssimo que nunca havia sido colocado no papel. Quem contava um conto, colocava um ponto a mais. No dito popular, chegou aos dias de hoje uma conjunção de dramas, comédias, aventuras, romances e tudo mais que no início servia de moral aos costumes sociais. Foi aí que surgem os volumes de “Os contos das mil e uma noites”. Difícil é dizer como Sherazade sobreviveu sendo que os contos chegam a 300 deles o que não daria para completar a quantidade de noites propostas no título.

Muitos contos foram ouvidos na Síria pelo francês Antoine Galland que via nesta história um sucesso maior do que a sociedade europeia consumia nos livros, então um mercado promissor para a imaginação e o entretenimento. A matriz veio do livro Hazār afsāna, ou “Mil contos” no idioma persa. As “Mil e Uma Noites” foi uma coletânea que envolveu árabes, turcos, franceses e sírios.

Galland notou que as veia inspiradora estava se esgotando e incluiu fábulas chinesas como as histórias de gênios. Aladin, portanto, veio da China. No original, o Aladin trazia dois gênios, um preso num anel e outro preso numa lamparina. Gênio vem da palavra jinn (descobriu o porquê da série Jeannie é um Gênio?). Jinns são entidades protetoras presentes em religiões, mas que povoaram o imaginário coletivo como anjos da guarda e realizadores de desejos ocultos. Estiveram na TV e no cinema através da Disney, Hanna-Barbera, Barbara Eden e outros. Eram gênios bons.

É nesta tônica que George Miller envolveu Tilda Swinton e Idris Elba, artistas que formam o elenco principal. Ela, desiludida por um amor não correspondido. Ele, desiludido por ter se dedicado a amores que não geraram frutos e o aprisionaram. Tiraram sua liberdade e o direito de uma vida digna. Um encontra o ombro amigo no outro. Detalham histórias míticas – afinal é um filme de gênios! – envolvendo o expectador até o final.

Crises existenciais fazem deste um filme maduro na carreira de Miller que, nas duas décadas passadas lutou e conseguiu levar pessoas aos cinemas vendo crescer a bilheteria de suas produções, e agora busca seu espaço no mundo do streaming onde determinados filmes podem ser assistidos gratuitamente. Uma fábula do cinema na qual não existe gênio que consiga transpor pessoas nos assentos do cinema e grana no bolso dos produtores. Vale o escapismo.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 14 de maio de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 17 de maio de 2025)

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Contadores de história

Edson Rontani Júnior, jornalista e cinéfilo 

Versão: seu ponto de vista ou modo de contar o que assimilou sobre determinado conteúdo. Assim Walt Disney fez com “Branca de Neve e os Sete Anões”, de 1937, o primeiro longa-metragem da empresa, feito com tecnologia inovadora à época. Disney adaptou à sua moda a versão clássica de um conto popular. A obra motivou “O Mágico de Oz”, em 1939, pela Warner Bros. Também inovador. Em desenho, carne e osso ou live-action, são versões de contos folclóricos, autorais ou não.

Os Estúdios Disney retornam agora com a franquia das princesas dirigida por Mark Webb a qual teve estreia nacional em março passado. Evite comparações. Assim como os desenhos animados de grande sucesso no passado repaginados como “Rei Leão”, “A Pequena Sereia” ou “Aladim”. O jeito de pensar mudou nas últimas décadas e com isso inovações são necessárias como a inclusão de gêneros sexuais ou empoderamento feminino, ou ainda aversão ao tabaco e a luta na preservação do meio-ambiente.

Branca de Neve era um conto com sua versão original propagada de geração em geração na Europa. Um conto para adultos, aliás. Assim como boa parte dos atuais contos infantis. Você já leu o original de Chapeuzinho Vermelho? Arrepia qualquer um! Já a Branca tem situações aversas à ilusão criada por Disney. Dormia com um dos anões. Não foi salva pelo beijo de um príncipe, que, diga-se, a despertou ocasionalmente quando carregava seu caixão, tropeçando e fazendo, diante da queda, com que ela cuspisse o miolo da maçã que havia comido e entalado em sua garganta.

A nova Branca de Neve da Disney tem pontuações atuais. Branca de Neve sonha em liderar o povo no condado em que vive. Não pregando guerra e sim bondade e generosidade, como fizeram seus pais. O príncipe encantado é trocado por um serviçal do rei que a denuncia quando está roubando mantimentos do castelo real. Os anões também foram adaptados ao politicamente correto contemporâneo: não são anões pois isso geraria apologia ao nanismo. Possuem a mesma altura da Branca de Neve e são descritos como criaturas mágicas com mais de 1/4 de milênio de vida.

As histórias originais nunca foram criadas para acolher corações frágeis. O escapismo é uma alternativa criada pelo cinema como forma de arrecadar bilheteria, através do tal “final feliz”. Contos clássicos foram feitos para assustar os adultos com moral de punição, barbárie social e assim vai.

O cinema prepara a terceira versão Disney – não feita por este estúdio – com tons de horrores. Alladin começa a ser filmado em maio por Charley McDougall. Anteriormente, Ursinho Pooh e Mickey arrepiaram os amantes da sétima arte. Ninguém gostou, claro.

Mas, de onde surgiram essas versões? Os contos da mil e uma noites tem sua origem no Oriente Médio, mas foi somente lá por 1700 que alguém os colheu e publicou numa única produção impressa. Isso graças à prensa criada por Gutenberg lá por volta de 1450. Agora era possível tirar várias cópias de documentos. Era um trabalhão. Mas a matriz era propagada e perpetuada concorrendo com a língua viva.

Foi neste pensamento comercial que surgiram iniciativas como a do francês Antoine Galland que compilou histórias coloquiais árabes como os Contos da Mil e Uma Noites. Não que a cultura árabe detenha o original de certas obras, isso por que na Índia já eram contadas essas histórias, por longos séculos.

Charles Perrault, outro francês, no final do século 1600 teve ideia idêntica e criou o livro “Contos dos tempos passados”, um estrondoso sucesso com Bela Adormecida, O Gato de Botas, Cinderela e outros que caíram no gosto popular.

Já os irmãos Grimm – Jacob e Wilhelm, linguistas alemães, registraram as principais fábulas infantis que conhecemos por livros, revistas ou pelo cinema, utilizando inclusive os originais de Perrault. De originalidade, nenhuma. Colocaram no papel aquilo que era falado no dia a dia, vindo de povos antigos como os indígenas. E, como contaram um conto, acabaram sempre aumentando um ponto. E tire assim, sua melhor versão do que você assimila.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 1º de maio de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 10 de maio de 2025)


quinta-feira, 1 de maio de 2025

Prensas

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Em busca de homens honestos, Diógenes saía pelas ruas empunhando uma lanterna. O filósofo grego viveu 400 anos antes de Cristo. Perambulava pelas e morava nas ruas. Suas ideias não eram bem aceitas pela sociedade, a qual considerava corrupta. A mesma o condenava ser lelé da cuca por procurar gente honesta, numa crítica aos regimes políticos.

A imprensa local também buscou encontrar os honestos. Porém, um dos jornais tendia no maior estilo non sense já visto em Piracicaba. Um jornal que tinha como redator responsável um tal de King Kong não era bem o que o leitor esperava e muito menos inspirava credibilidade. Mas assim foi o semanário “A Lanterna de Diógenes”, publicado no início dos anos 1930. O responsável era Ângelo Sangirardi, membro por quase duas décadas antes do Instituto Histórico de São Paulo. Este é um dos jornais que guardo a sete chaves, tendo-o recebido de meu pai. Nele estão exemplos esquecidos da grande imprensa, seja pela crítica feroz assim como o jornalismo sem qualquer pretensão informativa.

“A Lanterna” foi um jornal satírico ou como estampava sua capa “órgão de caráter piadístico e espinafrativo”. Sua organização era apresentada por pseudônimos como Conselheiro Espinafre ou o Espadachim das Arcadas. A crítica era ao jeito das pessoas e seus costumes citando nomes irreais mas que lembravam a sociedade como Sebastião Solene (para Sebastião Nogueira de Lima, delegado), Lauro Capilé (para Lauro Catulé de Almeida, professor e vereador), entre outros.

À época, a sociedade não entendia bem esse mise-en-cène das prensas locais. Mas a coisa pegou como sátira numa época de repressão pela Revolução de 1930 e logo em seguida pela censura imposta na Revolução Constitucionalista. Isso se torna evidente pois desfilavam pelas páginas da “Lanterna” patrocínios de empresa renomadas como A Porta Larga, Casa Pernambucanas, macarrão Aurora, Gatti Relojoaria e os advogados Jacob Diehl Netto e Moacir Amaral dos Santos (ministro do STF).

O estilo ácido e irônico era seguido através dos AlMANHAques (A Manha era uma corruptela do jornal A Manhã) do Barão de Itararé, o jornalista Apparício de Torelly que possuía uma tremenda criatividade numa época em que as prensas ainda viviam da linotipia e somente muitos anos depois renderam-se ao past-up. Um humor que nos anos 1980 foi sugado pela TV Pirata na Rede Globo e pelos jornais Casseta Popular e Diário Planeta, que se fundiram e na TV renderam o Casseta Planeta.

Mas as prensas locais tiveram muitos expoentes que são esquecidos dos estudos acadêmicos. Um destes foi João Gomes de Escobar que montou uma tipografia (Popular) na cidade na segunda metade do século 1800. Foi ele o autor do segundo jornal publicado na cidade intitulado “O Piracicaba” cuja primeira edição circulou em 1° e março de 1876. Ao contrário de “A Lanterna”, as produções de Escobar eram bem mais sérias. Ela professor e poeta e “agitador” social com ideias avançadas. “Palavras de Deus” foi outro jornal sob sua responsabilidade, servindo de porta voz para os protestantes locais. Também dirigiu “A Democracia” (1878), um libelo contra a monarquia e foi redator de “A Alvorada” (1880) com críticas à sociedade de então. 

Décadas depois, mais precisamente nos anos 1970 tivemos a revista Aldeia que, de forma suave, pretendia ser o Pasquim da terrinha. Muito bem feito e conduzido, merecedor de um destaque futuro. Com vida curta mas com marcas deixadas, O Jornal do Povo Piracicabano também contestava a sociedade e a política. Deixou uma história que nos faz repensar e reestudar as prensas locais.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 27 de abril de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 3 de maio de 2025)


segunda-feira, 7 de abril de 2025

Ainda estamos aqui

 Edson Rontani Júnior, jornalista e cinéfilo

O sonho da infância, alimentado pela juventude, corroído pelo tempo e findado com a morte. Isso tudo desde o big bang até a atualidade, passando pelos dinossauros, o cometa que destruiu a Terra, a era do gelo, a dominação dos Estados Unidos e conclusão em 2024. Tudo isso em mera 1 hora e 40 minutos sob a ótica de Robert Zemeckis no filme “Aqui”. Uma produção que não deve ser deixada de lado.

O autor quis recriar “Forrest Gump – O Contador de História”, utilizando, inclusive parte de seu elenco deste, que nasce, fica jovem e termina na velhice com ajuda da inteligência artificial. Estranhei muito que o filme tenha ficado poucos dias – poucos mesmo –, pois só o vi anunciado tarde da noite de novembro numa sexta-feira em uma das salas do Shopping Piracicaba.

A produção cinematográfica não dá detalhes de todas essas passagens descritas anteriormente. Não é um filme sobre os milhões de ano da existência da Terra. Ela centraliza-se num ponto da terra e da tela, com uma câmera estática com idas e voltas no tempo, desde a construção da casa em 1900 até a atualidade. Em relances mostra tempos anteriores, como povos indígenas que habitaram os Estados Unidos antes da colonização holandesa e britânica. Tudo usado para mostrar o quanto a vida é reles e frágil. Em pouco mais de uma hora, nascimentos, doenças e mortes. Ciclos naturais da vida, permeados por festas, felicidades, tristezas, boas e más notícias. Rotina pura, mas muito bem elaborada.

É um filme para se assistir e, após o seu fim, voltar ao início para ver elementos que na introdução passam despercebidos, mas que são peças fundamentais no seu desenrolar. Assim como toca em assuntos rotineiros que são fúteis para nós, mas mandam seu recado. Em 124 anos de história, lembra passagens essenciais para a humanidade como a gripe espanhola (no velório do aviador), do crescimento de casos de AVC, do mal de Alzheimer e da covid. Introduz elementos contemporâneos como a hispânica que atua como doméstica na casa dos habitantes atuais e repentinamente perde o olfato. Em seguida a família recebe a notícia de sua morte. A covid marca presença sem ser citada. Ou ainda o jovem negro que acaba de tirar sua carteira de habilitação e seu pai lhe explica detalhe por detalhe de como agir se um dia for parado por um policial branco, dizendo como proceder durante a abordagem e “agradecer por aquele policial ter tomado seu café naquele dia”. Reflexo de uma sociedade que busca sua identidade.

A reflexão que o filme nos traz é sobre o conteúdo de nossas vidas. Passadas sempre no mesmo local, com tristeza e alegrias, mas que muitas vezes não damos a devida importância aos fatos ou às pessoas. As transformações social e mental mexem com qualquer um.

Zemeckis tem uma sequência de obras bem pontuadas. Amigo de Steven Spielberg, fez memoráveis longas metragens como a trilogia “De Volta Para o Futuro”, “Expresso Polar”, “Náufrago” e “A Morte Lhe Cai Bem”. Com “Aqui” não teve boa receptividade. Seu faturamento atingiu três vezes dos 15 milhões de dólares investidos. Não que seu estilo já esteja no fim. É que a indústria cinematográfica busca novos conceitos e tem o poder de queimar ou fazer um filme virar sucesso. O quinto Indiana Jones ficou poucas semanas em cartaz, eclipsado por “Oppenheimer” e “Barbie”. Tentaram fazê-lo faturar no streaming. Mesma situação de “Aqui”, que pode ser visto nas principais plataformas.

A nova produção do diretor Robert Zemeckis é para ser assistida com uma caixa de lenços ao lado. Faz a cabeça virar em parafuso. Foi baseada em uma história em quadrinhos de Richard McGuire lançada no final da década de 2000. Se você sentiu sono ao assisti-lo, tenha certeza ... você não está sabendo ligar as referências. Mostra um triste ciclo da vida pelo qual “ainda estamos aqui”.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Ano cinco

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Já entrou para a história. Não podemos nem discutir. Embora não faça tanto tempo assim, temos de buscar no fundo da memória situações às quais nunca vivemos antes. Agora em março faz cinco anos que entramos na pandemia da covid. Foi exatamente em março de 2020 que ficamos estarrecidos ao saber que locais como o Shopping Center Piracicaba estavam cerrando suas portas proibindo a circulação das pessoas.

Foi em março daquele ano que foram implantadas as medidas profundas contra a doença que era desconhecida, não tinha cura nem vacina. Toda a sociedade vira de perna para o ar da noite para o dia. Chegava o “novo normal”.

Até então, as notícias ecoavam da China. Na cidade através da antiga Net, era possível, desde novembro de 2019, assistir ao que ocorria no país através do canal CGTN, programação chinesa em inglês para o mundo todo. Por ele desfilavam situações que acreditávamos estar distante de nós. Ao final dos programas, nomes e mais nomes de mortos pelo temível vírus.

A doença se alastrou pela Europa e Ásia. Corpos eram deixados na rua, sepultamentos eram reservadíssimos, feito às escuras e sem velórios. Em Roma, o Papa Francisco circulou pelas ruas dando a benção de remissão dos pecados a todos com ruas vazias, já que a ordem era ficar em casa, evitando o contato.

Pensar que tudo isso nunca seria realidade em Piracicaba era comum. Eis que os noticiários trazem a informação da primeira morte no município. Empresas diminuem suas jornadas, enviam seus funcionários para casa, estabelecimentos são obrigados a fechar. Na cidade, durante o período de restrição funcionaram apenas supermercados e farmácias, além de hospitais e outros setores essenciais. Estudantes tiveram que se distanciar das lousas aderindo ao EAD – ensino a distância, desprovidos de recursos necessários como webcam, material didático e acesso à internet. Tudo era novo.

A necessidade de uso da máscara facial fez com que sua caixa saltasse de uma hora para outra dos 10 reais para 120 reais. Mesmo assim, houve falta do produto, considerado por muitos um incômodo. As ruas da cidade ficaram um marasmo. Todos em casa. Não circulava ninguém. Até a criminalidade diminuiu.

Hospitais montam atendimento de urgência e qualquer espirrinho era suspeito de ser covid. Aniversários foram cancelados. Jogos do XV dispensados. Missas também cessaram. Na TV, novelas tiveram suas gravações interrompidas e passaram a exibir reprises. O mesmo ocorreu com o futebol. Sem jogos, vamos ao replay de partidas clássicas da Seleção Brasileira de Futebol, muitas das Copas do Mundo de décadas atrás.

Através de aplicativos de mensagens, as informações estarreciam todos. “Sabe fulano ? Morreu de covid. E fulana ? Está no hospital intubada”... Perdemos muitos amigos. Hoje nem lembramos da neura de passar constantemente o álcool gel nas mãos ou no material em que pegamos. Houve uma iniciativa de lavar tudo o que era trazido do supermercado ou até de esquentar jornal com ferro de passar roupa para evitar a propagação da covid. Com o passar dos anos e com a blindagem das várias vacinas que foram colocadas a disposição, esquecemos disso tudo. Aperta-se as mãos das pessoas como antes, pega-se na maçaneta sem qualquer escrúpulo e ainda há aquele que sai do banheiro sem lavar as mãos. Cinco anos atrás isso tudo seria uma ofensa.

Foi difícil comparar a pandemia atual – a qual não acabou ainda – com a da Gripe Espanhola em 1918. São poucos os relatos na cidade. Esperamos que algumas poucas linhas como estas possam deixar um legado para o futuro, pois como diz aquela máxima que nunca aprendemos a praticar : é olhando para os erros do passado que devemos nos espelhar no futuro para não cair nos mesmos erros. 

sábado, 15 de março de 2025

Primeira aparição do Nhô Quim


Capa da Gazeta Esportiva de 28 de maio de 1949. Nesta data o E. C. XV de Novembro se tornava time profissional ao vencer a Lei de Acesso e ser o primeiro time do interior paulista à ir para a elite do esporte paulista. O Nhô Quim havia sido desenhado antes em material rústico e exibido nas vitrines do Challet Paulista de Armintos Raya. A criação foi de Edson Rontani. Porém, esta arte – mais profissional – é de Nino Borges. O Nhô Quim era apresentado aos times que na época faziam vibrar o torcedor de São Paulo. Foi a primeira aparição do mascote em um veículo oficial de imprensa. Reprodução do acervo da Gazeta Esportiva

sábado, 1 de março de 2025

Nhô Quim na Gazeta


A Gazeta Esportiva Ilustrada edição da primeira quinzena de 1955. Uma capa com os principais times de futebol da elite paulista. Dentre eles, estava o Nhô Quim, representando o E. C. XV de Novembro de Piracicaba, que aparece na ilustração logo abaixo ao centro. A ideia da criação de mascotes de times futebolísticos surge nos anos 1930 com Nino Borges que criou personagens para uma promoção lançada por um fabricante de balas. Este confiava no colecionismo e acabou criando escola. O XV em 1955, fazia cerca de seis anos que havia se profissionalizado e tinha um time à altura dos grandes times do Estado

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Carnaval de 1957


Foto de autoria ignorada, datada de 1957 nas dependências do Clube Social Coronel Barbosa. Tomava corpo o carnaval daquele ano os associados e convidados do clube. Para a decoração, muita tinta, dedicação e suor em termas que lembram as concentrações carnavalescas de antigamente. Na foto, de costas, um artista não identificado. Ao meio, Edson Rontani e a direita Jairo Ribeiro de Mattos. E assim, neste ano, o piracicabano curtiu os dias de folia no reinado de Momo.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025


Publicidade veiculada no jornal O Estado de São Paulo, edição de 17 de abril de 1962. A Paulista – Rede Ferroviária Paulista, FEPASA – deu nome ao bairro criado a partir de seu terminal. O anúncio previa preços promocionais para viagens inclusive de outras cidades para Piracicaba, em especial partindo da capital do estado de São Paulo. A Estação da Paulista foi inaugurada em 1922 e agora junho completa 103 anos, preservada como importante centro cultural e de lazer. As atividades da linha férrea ocorreram de 1922 a 1977. 

 

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Bendito Carnaval

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Pensei em ir aos órgãos de defesa do consumidor. Mas, nada adiantaria. Me senti ludibriado dias destes ao ouvir uma canção de 1969 denominada “País Tropical”. Nela, Jorge Ben, alegremente brindava : “em fevereiro, em fevereiro, tem Carnaval, tem Carnaval”. Fevereiro acaba daqui alguns dias e nada de Carnaval ! Não pude subir à tamancas pela simpatia que tenho por Jorge Ben, mas ele sim escalou montanhas quando teve que mudar de nome para Jorge Ben Jor ao notar que recebia menos direitos autorais porque estes royalties eram repassados não a ele e sim para um quase xará seu, George Benson. Como os gringos confundiam um com outro, aí sim o nosso Jorge foi aos órgãos competentes exigir seus direitos.

Mas, afinal, quem define quando é o Carnaval ? E por que Jorge Ben (Jor) resolveu marcar na MPB fevereiro como o mês desta folia popular ? Tudo depende da Páscoa, que a grosso modo é precedida pela Quaresma. Já a Páscoa ocorre no primeiro domingo após o equinócio de março, tendo por base sua primeira lua cheia. A lua muda de fase semanalmente mas nunca cai no mesmo dia. A Páscoa exige uma marcação que vai além da lógica. Bom ! Aí a cabeça começa a embaralhar, não é ? O certo é que não teremos Carnaval em fevereiro.

Há aqueles que usam a data para descansar. Há aqueles que não lembram que a festa foi cancelada em 2021 pela pandemia da covid-19. Em 2022 embaralhou o calendário já que também não foi realizado e em alguns estados ocorreu em abril. O Brasil todo trabalhou com pessoas carrancudas. Bom, mesmo com a doença correndo solta, teve gente que comemorou sem dó algum em cada um destes anos.

Para quem gosta de história, curioso é ver como era o Carnaval na capital federal brasileira, 100 anos atrás. Quando cito capital, é bom lembrar que a Guanabara era a sede do governo brasileiro. Sim. Rio de Janeiro. Com seus torrenciais 40 graus, a Folia de Momo nos anos 1920 trazia desfile de carros alegóricos. Até aí, tudo bem. Nada de “genitália desnuda” e sim sambistas de terno, gravata e chapéu. Herança da cultura europeia que ainda imperava no país. O que era moda em países onde nevava, como França, era consumido por aqui. Demorou muito para termos uma identidade tropical.

No passado, é difícil cair no esquecimento dos Carnavais de Piracicaba. Oxalá queira que daqui a pouco não se esqueça da Banda do Bule ou do Bloco da Sapucaia, assim como já esqueceu que tivemos um Sambódromo em área da antiga Estação da Paulista no final da década de 1990. A vida se renova, as pessoas morrem, se a história não é recontada para as novas gerações, o ostracismo toma conta de tudo. Houve quem fugisse da rua Governador Pedro de Toledo no sábado de manhã, primeiro dia do Carnaval, para não ter a mão boba correndo pelas coxas ou pelos beijos fortuitos dos foliões que muitas vezes percorriam a rua do comércio com uma boa dose de cachaça. Mas havia também um público que lotava as calçadas de tal rua para ver e aplaudir a originalidade das fantasias, normalmente homens travestidos.

A cidade teve um dos mais bonitos e elaborados carnavais do interior paulista, trazendo para cá atores globais e de renome nacional. Houve até carnaval embaixo de chuva, carnaval na Armando de Salles Oliveira com aquele fedor exalado pelos bueiros que escoavam pelo córrego do Itapeva... Mas nada que acabasse com a alegria da população.

Nos clubes, muita exaltação. Coronel Barbosa, Cristóvão, Clube de Campo, Atlético, Regatas, Ítalo ... Muitos reuniam a juventude e alta sociedade, assim como os petizes nas suas matinês. Carnaval até os anos 1990 era sinônimo de comércio fechado, período em que as compras da semana teriam que ser mais gordas pois nada abria. Os tempos mudaram. Momo continua rechonchudo. A folia está aí. Mas há quem prefira passar estas festividades em Lençóis (Paulista, não!) ou em Gramado (da Esalq, num piquenique). Carnaval eu pulo. Prefiro descansar.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 19 de fevereiro de 2925 e na Tribuna Piracicabana de 22 de fevereiro de 2025)


sábado, 15 de fevereiro de 2025

A imparcialidade parcial

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Leandro Guerrini escreve certa vez que os jornais começaram a circular em nossa terra 200 anos atrás, trazendo ecos de um moderno Brasil que acabara de se tornar independente de Portugal. Até então, obras impressas, como os livros, eram rodadas em Portugal ou na Inglaterra, grande parceiro comercial dos portugueses. Era tudo caro, exigia altos investimentos em maquinário e pessoal. Assim, personalidades fizeram jornais à sua moda, escritos a mão, distribuídos entre os mais influentes – e tão somente aos “letrados”, ou alfabetizados – e por vezes pregados à porta da igreja matriz, onde, com certeza, havia concentração rotineira.

Quando surgem os jornais no Brasil aparece um certo desconforto principalmente por parte da imprensa que tinha de produzir conteúdo, revisar, imprimir e distribuir. Não existiam as bancas de jornais e revistas. Estas eram denominadas de bibliotecas por reunir produções escritas em papel. Jornais e livros tiveram grande impulso, em especial na Europa, em meados do século retrasado, servindo de entretenimento durante viagens de trens, muitas delas longas nas quais era pouco ler um único livro, tão demorado o trajeto.

O jornal “O Estado de São Paulo”, em sua edição de 4 de janeiro passado, comemorativa aos 150 anos de fundação, trouxe dados curiosos sobre sua impressão e distribuição. As primeiras edições – quando ainda era chamado de “A Província de São Paulo” – tinham impressão de 2 mil exemplares, cuja distribuição era restrita a capital paulista, que eram entregues a assinantes ou colocados a disposição para compra em sua redação. Bernard Gregoire, francês, trouxe o know how adquirido em terras parisienses aceito pela direção do jornal que era sair às ruas, montado em um cavalo, vendendo as edições diárias do Estadão. Começa aí uma nova etapa da logística do jornalismo. Um francês barbado, com touca e uma vestimenta que lembrava um membro da legião estrangeira e ainda tocando uma corneta era uma figura exótica que chamou a atenção dos mais letrados, os quais a princípio o condenaram pela irritante corneta. Era a forma de chamar atenção que ainda hoje é praticada com o amolador de facas que percorre as ruas, o vendedor de biju ou até o carro da pamonha. Gregoire virou ex-libris e estampa o Estadão até hoje num cavalo com uma corneta à mão.

Entre os anos 1700 e 1800 a imprensa, não apenas brasileira, vivia sobre a batuta governamental. Os fatos publicados eram aqueles de interesse de quem estivesse no poder, no caso do Brasil, o regente. Não havia imparcialidade muito menos eram ouvidos os dois lados. Na proximidade do surgimento da República o cenário muda.

Por isso é comum ver jornais antigos com sua titulação e uma referência como “órgão independente”. A profissionalização da imprensa surge na Europa no início dos anos 1800, fazendo da notícia apurada um produto de considerável custo financeiro. Surgem depois as publicidades atreladas a um conteúdo confiável.

O “Estadão”, quando foi instaurada a República, estampou em sua capa que não era “órgão de partido político algum, nem estando em seu intuito advogar os interesses de qualquer deles”.

Em Piracicaba, o jornal “Gazeta de Piracicaba” trazia este exemplo. Criado na transição de Império para República, o matutino trazia abaixo de seu nome slogans como “Orgam Imparcial” (1882), “Folha popular” (1886/87), “Propriedade de uma Associação” (1892) e depois, como modismo midiático em quase todo o Brasil, “Orgam Republicano” (1893/96 e 1903). A Gazeta teve sempre seus ideais republicanos, não apenas nos períodos citados, sendo que na primeira edição do jornal é explícito o apoio ao Regime. Estudos indicam também que além de republicano o jornal tinha fortes ligações com a maçonaria visto que os defensores locais da República eram de lá provindos.

Anteriormente a cidade abrigou jornais com viés monarquista com o Jornal do Povo (1880/89) e O Piracicaba o qual abusava dos ideais do Partido Liberal. E assim a liberdade foi trocada pela imparcialidade.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 08 de fevereiro de 2025 e na Tribuna Piracicabana de 15 de fevereiro de 2025