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domingo, 29 de dezembro de 2024

Em dezembro, cartas de Piracicaba

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Estudos do professora Leandro Guerrini indicam uma preciosidade histórica no mês de dezembro quando se fala sobre Piracicaba. São diversos acontecimentos ao longo destes mais de dois séculos e meio de vida de nossa amada terrinha.

Muito antes de ser constituída oficialmente, Piracicaba é relatada em carta datada de 12 de dezembro de 1732 de Joan de Mello Rego, possivelmente escrita em nossa terra no período de destinação da sesmaria que envolveria a área geográfica a ser ocupada e povoada. Rego era piloto da Capitania que cuidava dos interesses do reino de Portugal junto às vilas e freguesias no interior. O destino de tal missiva era o seu comandante direto, Conde de Serzedas, capitão-mor da Capitania de São Paulo. No texto curiosidades como o acesso à nossa terra apenas por meio fluvial, através de canoas. A carta demorava semanas para chegar ao seu destino. É um documento oficial interessante para conhecer nossa história. Joan relata sua vinda pelo rio de “Piraçicava”, comentando sobre o envio de documentos e ouro através de arcas em mãos confiáveis. O relato diz ainda que pretende procurar moradores em nossa terra, se estes houverem. Guerrini, no Jornal de Piracicaba, edição de 18 de dezembro de 1977, diz: “o que se pode afirmar, sem sombra de contestação, é que Piracicaba já era aldeia povoada, antes da sua fundação oficial”.

Também num mês de dezembro, mais precisamente no dia 20 do ano de 1797, quando Piracicaba, oficialmente, já existia a 30 anos, e com seu devido povoamento, abrigava 550 pessoas. Foi neste dia que outra carta partiu daqui, escrita pelo capitão-general Antonio Manuel de Melo Castro e Mendonça, endereçada ao bispo dom Mateus de Abreu Pereira, na qual cita a pobreza da população a qual não proporcionava rendimento financeiro de interesse do poder administrativo. A missiva acrescenta que “como a riqueza e fertilidade do seu terreno está promettendo concideraveis vantagens aos Povos, que nella se forem estabelecer”. Vendo hoje, não resta dúvida que foi uma visão que se concretizou. Hoje é inconteste tal afirmação. A carta tinha por objetivo solicitar um padre à terra. Então distante, Piracicaba dependia que tal religioso fosse enviado de Porto Feliz ou Itu. O padre viajava por vários dias no lombo de um burro ou vinha de canoa. A demora fazia com que muitos enterramentos fossem feitos sem a devida benção da Igreja Católica. Batizados e casamentos também sofriam com isso, numa época em que estado não era laico. Leandro Guerrini, também no Jornal de Piracicaba, edição de Natal de 1977, comenta: “eram 550 almas que nem podem morrer com gosto, pois lhes faltava um confessor para os minutos extremos”.

Ainda em dezembro, dia 3 do ano de 1886, a Gazeta de Piracicaba relata a visita a Piracicaba do imperador dom Pedro II, que veio de trem da Ituana-Sorocabana. Junto a sua comitiva foi levado em veículos de tração animal para o solar Rezende, do Barão de Rezende, situado à margem direita do rio Piracicaba. Houve festa na cidade. Existem fotos, registros caríssimos nesta época, que atestam a visita.

Primeiro de dezembro de 1872 foi a data definida pela vereadores para abertura do cemitério digno da cidade. Então, Piracicaba tinha um cemitério na rua Boa Morte, proximidades do Colégio Assunção, este particular. E outro, público, na praça Tibiriçá onde hoje está o Colégio Estadual Moraes Barros. A intenção era criar um campo santo num local longe do Centro. Visto como repartição pública, o novo cemitério foi aberto, com Antonio de Almeida Viegas declarado como zelador de administrador. Trata-se do Cemitério da Saudade, que na época tinha sua entrada pela avenida Independência. Para os sepultamentos, uma enormidade burocrática, como recibo da Câmara, recibo da Igreja, e outros. No dia seguinte à sua abertura, o Barão de Rezende compra a primeira sepultura perpétua colocada a venda. E assim foram alguns fatos do mês de dezembro num longínquo passado.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 28 de dezembro de 2024)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Dezembro deixou histórias

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Dezembro em Piracicaba foi muito além da fraternidade natalina. É um mês com muitas histórias. Foi neste mês que José de Alencar, político influente, escreveu seu terceiro romance com nuances regionalistas, compartilhando com o leitor a influência do homem interiorano. De 19 de dezembro de 1871 a 16 de janeiro de 1872, são publicados capítulos de sua nova obra no folhetim fluminense “República”. Anos depois viraria livro, hoje obrigatório para quem procura conhecer a literatura brasileira. Pois, bem. O que tem isso a ver com Piracicaba? Ora, bolas ! “Til” teve passagens escritas em Piracicaba, durante sua estada no Engenho do Monte Alegre. Depoimentos pessoais demonstram que alguns capítulos foram escritos no lombo do animal equestre que o trouxe para cá. O título do livro, dizem, é uma homenagem ao rio Piracicaba pelas suas curvas similares ao acento utilizado na língua portuguesa. Alencar passou dias na confluência dos rios Atibaia e Jaguari e nas margens do rio Piracicaba. Foi num dezembro que ele concluiu os capítulos desta obra-prima da literatura.

Os tradicionais almanaques locais também trazem efemérides curiosas, como:

Dia 15 de dezembro de 1866 - plantam-se os primeiros coqueiros no largo do Rosário, hoje Igreja São Benedito. Este tipo de atividade era incomum. Motivava festa com presença de banca musical.

Dia 10 do ano de 1871 sepulta-se o alferes do império (equivalente a tenente do Exército) José Caetano Rosa, o benemérito arruador de Piracicaba. Também foi vereador. Deixou nome em rua que cruza o Centro da cidade, começando na paulista e terminando na curva do S, onde está o ribeirão do Itapeva.

Dia 17 de 1882, surra-se um jornalista. É a única informação que nos traz o "Almanak de Piracicaba para o Anno de 1900". Sem comentários.

Em 30 de dezembro de 1897 inaugura-se o Hospício de Alienados, anexo à Santa Casa de Piracicaba, cuja construção foi bancada pelo Barão da Serra Negra. À época, alienados eram aqueles que a sociedade excluía e, nesta instituição, receberiam abrigo e atenção à saúde.

A Igreja dos Frades teve sua pedra fundamental lançada em 1º de janeiro de 1893. Porém, sua edificação foi inaugurada em 10 de dezembro de 1895, ainda com sua estrutura incompleta.

Isso faz lembrar de Frei Paulo de Sorocaba que, em 10 de dezembro de 1928, integrou o corpo docente que instalou o Seminário Seráfico São Fidelis.

Dezembro também é história para o Oratório São Mário – Hoje Dom Bosco São Mário – que foi fundado em 9 de dezembro de 1962, com terreno doado aos salesianos pelo empresário Mário Dedini, por estar preocupado com as crianças e jovens carentes do bairro Vila Rezende. 

Em 31 de dezembro de 1912, Emílio Castello assume a direção da Escola Agrícola de Piracicaba ocupando a vaga deixada por Clinton Smith que retornava aos Estados Unidos para a função de catedrático da Universidade de Cornell, em Nova Iorque. Em 1915, Castello foi a Argentina estudar a produção de alfafa regressando com elaborado relatório utilizado amplamente em Piracicaba.

Em dezembro de 1950 é inaugurada a Matriz de Santo Antonio, como a conhecemos hoje, com duas torres. A edificação anterior tinha apenas uma delas.

Em 4 de dezembro de 1922, por decreto do bispo Dom Francisco de Campos Barreto, foi criada a paróquia do Bom Jesus e seu primeiro padre foi Lázaro de Sampaio Mattos.

Coadjuvada pelo Barão de Rezende e pelos moradores da Vila Rezende, foi assentada a pedra fundamental da igreja matriz da Vila, a 8 de dezembro de 1904. Em 17 de dezembro de 1910, Dom João Nery, o primeiro bispo de Campinas, solenemente benzia a nova Igreja, nela dizendo a primeira missa pelo eterno repouso do benemérito Barão de Rezende, falecido em 1909. História que não acaba mais.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 22 de dezembro de 2024)


quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Eterno ciclo de renovação

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Chegamos à época de renovação. Natal e ano novo. Um ciclo eterno criado pelos calendários ao longo dos dois últimos milênios. É um período para parar e pensar no que foi feito ao longo do ano e soltar aquele estupefato: “nossa ! como o ano voou”, sem lembrarmos das promessas feitas um ano atrás, muito menos se as cumprimos. Mas assim é o ciclo natural da vida.

É também um período de conhecimento e reflexão sobre o passado. Aqui cabe resgatar algo além do bom velhinho Noel e lembrar fatos que ocorreram em dezembro na nossa amada Piracicaba.

Para isso nos debruçamos diante dos tradicionais trabalhos feitos através dos Almanaks para Piracicaba de 1900 e 1914, e nos trabalhos preciosíssimos de Mário Neme dos anos 1930 e Samuel Pfrom Netto.

Dezembro é histórico. Neste mês, no ano de 1893, deixa Piracicaba Ernest Lehmann, austríaco de nascimento. Diretor da Escola Real de Agronomia de Monsiedel, veio a Campinas quando recebeu a incumbência de administrar a Fazenda São João da Montanha. Esta área havia sido comprada por Luiz de Queiroz para criar uma escola prática agrícola. Não conseguiu colocar em atividade a escola, queixando-se da falta de recursos financeiros por isso. Deixou Piracicaba em um dezembro.

Foi em dezembro de 1915 que a então Escola Prática de Agricultura Luiz de Queiróz, a atual ESALQ, recebe pela segunda e definitiva vez a presença de Nicolau Athanasoff, emérito professor com estudos superiores na Bélgica, Alemanha e Suíça. Com toda sua carga de conhecimento, foi um dos precursores da zootecnia nesta entidade de ensino. Nascido na Bulgária, naturalizou-se brasileiro e dedicou seus 70 anos ao conhecimento científico, com hábitos humildes: residia numa casa simples situada ao lado do estábulo de bovinos situada nas dependências da Escola Agrícola.

Ainda na Escola de Agricultura, Getúlio Vargas, convidado como paraninfo, não compareceu na formatura da turma de 1938, realizada em dezembro. Enviou como representante Adhemar de Barros, futuro governador de São Paulo, ilustre nativo de Piracicaba.

Uma história que precisa ser relida e recontada é aquela que envolve a atriz Lyson Gaster, espanhola de nascimento que adotou Piracicaba como sua terra. Foi uma das mais reconhecidas atrizes do país. Teve vida ativa nos principais teatros brasileiros de 1919 a 1948. E foi em dezembro deste último ano que ela aposentou-se encerrando as atividades da Companhia de Comédias Lyson Gaster. Fez diversas apresentações no Teatro Santo Estêvão.

Após o 15 de novembro de 1889, quando surgiu a República, Piracicaba tem novidades no comando político. A Câmara de Vereadores é substituída em dezembro de 1891 pelo Conselho de Intendência Municipal, algo similar ao poder executivo atual, sendo comandada por Amador de Campos Pacheco, Antonio Moraes Sampaio, Jacob Diehl, João Batista de Silveira Mello, João Gomes Marques, João Guidi e Paulo de Moraes Barros.

A data máxima da cristandade foi escolhida para a criação da Santa Casa de Piracicaba. José Pinto de Almeida, nascido em Portugal (1811), viveu em nossa cidade até seu falecimento (1885). Inspirado em tradições portuguesas, implantou em nossas terras a Irmandade do Santíssimo Sacramento por volta de 1850. A ordem surgiu na Idade Média e no Brasil existem registros desde 1549 relatados por Manuel da Nóbrega, líder da primeira missão jesuítica a América. Esta iniciativa de José Pinto de Almeida serviu de base para a criação da Santa Casa de Misericórdia de Piracicaba em 1854, completando em 25 de dezembro seus 170 anos de fundação. No início, a Santa Casa funcionava na rua José Pinto de Almeida (Centro) entre as ruas Moraes Barros e XV de Novembro.

E assim, aos poucos, não apenas em dezembro, mas ao longo dos doze meses de vários anos, Piracicaba foi se delineando e deixando muita história que compete a nós resgatar.

(Publicado no Jornal de Piracicaba edição de 21 de dezembro de 2024 e na Tribuna Piracicabana de 28 de dezembro de 2024)

sábado, 21 de dezembro de 2024

Dezembros além de Noel

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

O mês de dezembro é marcado por alguns momentos que elevam nosso espírito, dentre eles o 13º salário, as férias de final de ano, a fraternidade pela data máxima da cristandade, as confraternizações e as festas familiares.

Olhando para Piracicaba no passado vemos que a sociedade sempre prestigiou esta data. Se pela fraternidade ou pelo lado comercial, não iremos entrar neste detalhe. Mas a cidade sempre ficou linda em dezembro. Quem não se lembra do prédio principal da Esalq todo iluminado até os anos 2000 ? Na década de 1970 era comum sair às ruas no período noturno, seja de sábado ou domingo, para ver as vitrines das lojas cuja decoração implicava em concursos com premiação. É desta época uma iniciativa que se tornou ícone na cidade. A loja do seu Armintos Raya, denominada de Casa Raya, quando situada na rua Moraes Barros ao lado da sede do Jornal de Piracicaba, colocou Papai Noel sentado em uma bicicleta ergométrica motorizada. A Raya na época atuava como loja de jogos loteria. A bicicleta era um desejo de consumo de muita gente e tal iniciativa atraia a atenção de todos, fossem eles apostadores da Loteria Esportiva (a única até então explorada pelo governo federal), pessoas que se espelhavam no mundo pré-fitness pela bicicleta e petizes como eu que ficavam imaginando o que queria o bom velhinho, rechonchudo como conhecemos, ao pedalar aquele treco.

Presépios eram constantes na cidade, principalmente nas representações cristãs. Me lembro de ter visto uma exposição muito bem feita, com montanhas gigantescas e algumas peças que se moviam mecanicamente num centro de irmãs católicas, cuja denominação não me recordo, mas que situava-se na rua 13 de Maio ao lado do Museu Prudente de Moraes. O local hoje não existe mais. Abriga uma galeria de escritórios e lojinhas.

Mais para o passado, nota-se que o culto ao Natal também era feito na música. Erotides de Campos foi um destes expoentes, tendo sua composição “Sinos de Natal” gravada por Pedro Celestino com o Grupo dos Ases nos antigos 78 rotações há quase 100 anos atrás, em 1926.

Também em dezembro, porém no ano de 1937, entre os dias 5 e 18, que piracicabanos participam do “Raid Piracicaba-São Paulo”, navegando em barcas movidas por quatro remos, uma competição comum na época e desta feita patrocinada pelo Clube de Regatas de Piracicaba. Participara da iniciativa Silvio de Aguiar e Sousa em conjunto a Braz Grisolia, Sidney Petta, Guido Pettinazzi, Orestes Signorelli e Osíris Tolaine. Daí surgiu um curioso diário republicado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba em 2001 através de José Luis Guidotti.

Dezembro é também o mês de glória para os piracicabanos pois, dia 18 do ano de 1988, retornava á praça José Bonifácio o Monumento ao Soldado Constitucionalista removido em 1981 durante reforma do espaço. Por sete anos ficou em frente ao Cemitério da Saudade local que hoje abriga a praça Vitório Ângelo Cobra, o cancioneiro Cobrinha. O retorno se deu por ação cível impetrada na justiça e aceita pelo Supremo Tribunal Federal. A obra de Lélio Coluccini, inaugurada em 1938, é novamente desmontada e remontada.

Dezembro de 2006, um dos maiores acervos particulares da cidade foi doado ao Centro Cultural Martha Watts. Delphim Ferreira da Rocha Netto tinha imensa coleção guardada de 1913 a 1991 entre filmes, revistas, livros e históricos do futebol com ênfase ao E. C. XV de Novembro de Piracicaba. Ainda em vida – faleceu em 2003 – destinou toda sua coleção para que fosse preservada pela instituição.

Muito mais ocorreu em Piracicaba no mês de dezembro. Mas estes detalhes ficam para nossa próxima coluna.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 11 de dezembro de 2024)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Dezembros além de Noel

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

O mês de dezembro é marcado por alguns momentos que elevam nosso espírito, dentre eles o 13º salário, as férias de final de ano, a fraternidade pela data máxima da cristandade, as confraternizações e as festas familiares.

Olhando para Piracicaba no passado vemos que a sociedade sempre prestigiou esta data. Se pela fraternidade ou pelo lado comercial, não iremos entrar neste detalhe. Mas a cidade sempre ficou linda em dezembro. Quem não se lembra do prédio principal da Esalq todo iluminado até os anos 2000 ? Na década de 1970 era comum sair às ruas no período noturno, seja de sábado ou domingo, para ver as vitrines das lojas cuja decoração implicava em concursos com premiação. É desta época uma iniciativa que se tornou ícone na cidade. A loja do seu Armintos Raya, denominada de Casa Raya, quando situada na rua Moraes Barros ao lado da sede do Jornal de Piracicaba, colocou Papai Noel sentado em uma bicicleta ergométrica motorizada. A Raya na época atuava como loja de loteria. A bicicleta era um desejo de consumo de muita gente e tal iniciativa atraia a atenção de todos, fossem eles apostadores da Loteria Esportiva (a única até então explorada pelo governo federal), pessoas que se espelhavam no mundo pré-fitness pela bicicleta e petizes como eu que ficavam imaginando o que queria o bom velhinho, rechonchudo como conhecemos, ao pedalar aquele treco.

Presépios eram constantes na cidade, principalmente nas representações cristãs. Me lembro de ter visto uma exposição muito bem feita, com montanhas gigantescas e algumas peças que se moviam mecanicamente num centro de irmãs católicas, cuja denominação não me recordo, mas que se situava na rua 13 de Maio ao lado do Museu Prudente de Moraes. O local hoje não existe mais. Abriga uma galeria de escritórios e lojinhas.

Mais para o passado, nota-se que o culto ao Natal também era feito na música. Erotides de Campos foi um destes expoentes, tendo sua composição “Sinos de Natal” gravada por Pedro Celestino com o Grupo dos Ases nos antigos 78 rotações há quase 100 anos atrás, em 1926.

Também em dezembro, porém no ano de 1937, entre os dias 5 e 18, que piracicabanos participam do “Raid Piracicaba-São Paulo”, navegando em barcas movidas por quatro remos, uma competição comum na época e desta feita patrocinada pelo Clube de Regatas de Piracicaba. Participara da iniciativa Silvio de Aguiar e Sousa em conjunto a Braz Grisolia, Sidney Petta, Guido Pettinazzi, Orestes Signorelli e Osíris Tolaine. Daí surgiu um curioso diário republicado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba em 2001 através de José Luis Guidotti.

Dezembro é também o mês de glória para os piracicabanos pois, dia 18 do ano de 1988, retornava á praça José Bonifácio o Monumento ao Soldado Constitucionalista removido em 1981 durante reforma do espaço. Por sete anos ficou em frente ao Cemitério da Saudade local que hoje abriga a praça Vitório Ângelo Cobra, o cancioneiro Cobrinha. O retorno se deu por ação cível impetrada na justiça e aceita pelo Supremo Tribunal Federal. A obra de Lélio Coluccini, inaugurada em 1938, é novamente desmontada e remontada.

Dezembro de 2006, um dos maiores acervos particulares da cidade foi doado ao Centro Cultural Martha Watts. Delphim Ferreira da Rocha Netto tinha imensa coleção guardada de 1913 a 1991 entre filmes, revistas, livros e históricos do futebol com ênfase ao E. C. XV de Novembro de Piracicaba. Ainda em vida – faleceu em 2003 – destinou toda sua coleção para que fosse preservada pela instituição.

Muito mais ocorreu em Piracicaba no mês de dezembro. Mas estes detalhes ficam para nossa próxima coluna.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 11 de dezembro de 2024 e na Tribuna Piracicabana de 21 de dezembro de 2024) 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Brazilian soul

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico de Geográfico de Piracicaba 

Alma brasileira. Assim tornou-se conhecido o jazz tupiniquim no exterior, com ênfase nos Estados Unidos e na Europa. Muito bebeu-se na Bossa Nova, inspiração sui generis de brasileiros, a qual foi apoderada por diversos crooners ou standards anglo-saxões. Foi isso que deu notoriedade a pessoas como Sérgio Mendes, recentemente falecido, que trocou o Brasil pela cosmopolita Nova Iorque e por Los Angeles.

Quem também se enamorou pela brazilian soul foi Quincy Jones, falecido no início de novembro, dia 3, sem muito alarde em nossa terra. Isso porque ele não era um dos músicos atualmente em evidência. Teve ele seu destaque e posicionamento necessário na música internacional. Basta dizer que ele produziu Michael Jackson em seu álbum “Thriller”, de 1982, o qual comercializou 70 milhões de cópias, sagrando-se como o LP mais vendido em toda a história fonográfica. Foi ele também quem tirou do ostracismo, em 1984, o velho Frank Sinatra, em uma época na qual o vozeirão de décadas atrás já era deixado de lado por um rock pós era discoteque. Vamos dar um grande chute: se Quincy ajudou a vender 150 ... 200 milhões de LPs e ganhou um único dólar por disco vendido, dá para se ter noção de quanto faturou em vida.

Claro que Quincy Jones acordou cedo para a vida. Talvez seja esta a razão do seu sucesso. Viveu 91 anos, dedicou-se 50 anos à indústria musical e começou a trabalhar aos dez anos de idade. Aprendeu e tocar trumpete e animar casamentos com outro jovem, este cego, que depois alcançou fama com o nome artístico de Ray Charles. Nos anos 1950 fez shows pelo mundo, trabalhou como orquestrador e na década seguinte, enfrentando barreiras raciais, chegou a ser um dos chefões da Mercury, importante gravadora norte-americana. Aí vieram os anos 70, 80 e 90. Na década de 1980 talvez esteja ainda fixa em nossa memória seu sucesso “Ai no corrida”, de 1981, muito executada nas emissoras locais, principalmente na então única FM de Piracicaba, a Difusora FM.

Só para saber sua importância, Quincy recebeu uma proposta de Lionel Richie e se juntou novamente a Michael Jackson para produzir o LP “We are the world”. Lembrou da música ? Difícil quem nunca cantarolou ou assobiou esse sucesso. O LP ainda hoje ecoa nas rádios, no streaming, nas mentes das pessoas. “A noite que mudou o pop”, no Netflix, é um documentário de quase duas horas lançado em janeiro passado que narra esse processo, tendo sido a música gravada numa única madrugada com mais de 30 dos popstars do rock americano. Trabalho exausto iniciado às 23 horas e concluído lá pelas cinco ... seis horas do dia seguinte. Quincy é uma ausência sentida nos depoimentos do documentário, talvez pela saúde já debilitada. Quincy, ao ver que pisariam no mesmo estúdio gente como Lionel Richie, Michael Jackson, Diana Ross, Bob Dylan, mais e mais ... colocou na entrada do palco de gravação um cartaz dizendo “DEIXE SEU EGO AQUI FORA”. Era uma briga de foice.

Pois bem, esse era Quincy Jones, maestro, arranjador e pouquíssimas vezes cantor. Negro, foi o expoente da música afro nos poderosos estúdios como Warner, Epic, A&M Records e CBS. Mas foi na Motown que engajou a música que lhe trouxe notoriedade. A “alma brasileira” pôde ser vista no disco “Soul Bossa Nova”, de 1962, inteiramente instrumental, no qual fez um ícone balançante revivido no final dos anos 1990 com os filmes de Austin Powers.

Lembrando que o Brasil também produziu seus expoentes a altura de Quincy, que fizeram do jingado nacional algo adorado no exterior, bebendo a mesma verve que ainda agrada os gringos. Hoje são esquecidos, mas nortearam diretrizes para a MPB ser reconhecida lá fora. Dentre ele estão Bola Sete e Erlon Chaves que, nos anos 1960 e 70, fizeram o que hoje confunde-se com “samba rock”. Beberam na mesma fonte de Quincy Jones. Ganharam fama e dinheiro. Mas caíram no esquecimento com o passar do tempo.


domingo, 15 de dezembro de 2024

Eterno ciclo de renovação

 


Chegamos à época de renovação. Natal e ano novo. Um ciclo eterno criado pelos calendários ao longo dos dois últimos milênios. É um período para parar e pensar no que foi feito ao longo do ano e soltar aquele estupefato: “nossa ! como o ano voou”, sem lembrarmos das promessas feitas um ano atrás, muito menos se as cumprimos. Mas assim é o ciclo natural da vida.

É também um período de conhecimento e reflexão sobre o passado. Aqui cabe resgatar algo além do bom velhinho Noel e lembrar fatos que ocorreram em dezembro na nossa amada Piracicaba.

Para isso nos debruçamos diante dos tradicionais trabalhos feitos através dos Almanaks para Piracicaba de 1900 e 1914, e nos trabalhos preciosíssimos de Mário Neme dos anos 1930 e Samuel Pfrom Netto.

Dezembro é histórico. Neste mês, no ano de 1893, deixa Piracicaba Ernest Lehmann, austríaco de nascimento. Diretor da Escola Real de Agronomia de Monsiedel, veio a Campinas quando recebeu a incumbência de administrar a Fazenda São João da Montanha. Esta área havia sido comprada por Luiz de Queiroz para criar uma escola prática agrícola. Não conseguiu colocar em atividade a escola, queixando-se da falta de recursos financeiros por isso. Deixou Piracicaba em um dezembro.

Foi em dezembro de 1915 que a então Escola Prática de Agricultura Luiz de Queiróz, a atual ESALQ, recebe pela segunda e definitiva vez a presença de Nicolau Athanasoff, emérito professor com estudos superiores na Bélgica, Alemanha e Suíça. Com toda sua carga de conhecimento, foi um dos precursores da zootecnia nesta entidade de ensino. Nascido na Bulgária, naturalizou-se brasileiro e dedicou seus 70 anos ao conhecimento científico, com hábitos humildes: residia numa casa simples situada ao lado do estábulo de bovinos situada nas dependências da Escola Agrícola.

Ainda na Escola de Agricultura, Getúlio Vargas, convidado como paraninfo, não compareceu na formatura da turma de 1938, realizada em dezembro. Enviou como representante Adhemar de Barros, futuro governador de São Paulo, ilustre nativo de Piracicaba.

Uma história que precisa ser relida e recontada é aquela que envolve a atriz Lyson Gaster, espanhola de nascimento que adotou Piracicaba como sua terra. Foi uma das mais reconhecidas atrizes do país. Teve vida ativa nos principais teatros brasileiros de 1919 a 1948. E foi em dezembro deste último ano que ela aposentou-se encerrando as atividades da Companhia de Comédias Lyson Gaster. Fez diversas apresentações no Teatro Santo Estêvão.

Após o 15 de novembro de 1889, quando surgiu a República, Piracicaba tem novidades no comando político. A Câmara de Vereadores é substituída em dezembro de 1891 pelo Conselho de Intendência Municipal, algo similar ao poder executivo atual, sendo comandada por Amador de Campos Pacheco, Antonio Moraes Sampaio, Jacob Diehl, João Batista de Silveira Mello, João Gomes Marques, João Guidi e Paulo de Moraes Barros.

A data máxima da cristandade foi escolhida para a criação da Santa Casa de Piracicaba. José Pinto de Almeida, nascido em Portugal (1811), viveu em nossa cidade até seu falecimento (1885). Inspirado em tradições portuguesas, implantou em nossas terras a Irmandade do Santíssimo Sacramento por volta de 1850. A ordem surgiu na Idade Média e no Brasil existem registros desde 1549 relatados por Manuel da Nóbrega, líder da primeira missão jesuítica a América. Esta iniciativa de José Pinto de Almeida serviu de base para a criação da Santa Casa de Misericórdia de Piracicaba em 1854, completando em 25 de dezembro próximo seus 170 anos de fundação. No início, a Santa Casa funcionava na rua José Pinto de Almeida (Centro) entre as ruas Moraes Barros e XV de Novembro.

E assim, aos poucos, não apenas em dezembro, mas ao longo dos doze meses de vários anos, Piracicaba foi se delineando e deixando muita história que compete a nós resgatar.

(Publicado no Jornal de 15 de dezembro de 2024)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

A história em formato digital

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Muito em breve deixaremos de ser acumuladores, um vício cultuado como hábito o qual aprendemos com nossos pais, os quais aprenderam com seus pais e assim por diante. Uma tradição que passa gerações.

Um livro que nos agrada, colocamos na estante para ler um dia. E nunca mais lemos. Uma música que adoramos retemos como aprisionamos um passarinho numa gaiola, seja essa canção em qualquer formato disponibilizado pelo mercado, como CD, LP, MP3. Um filme que nos fez chorar ou aflorar qualquer sensibilidade cultuamos e também o colocamos em uma estante, seja em celuloide, VHS, DVD ... Um imenso álbum de fotografias era aberto e colocado entre as pernas, e ao nosso lado a família se juntava para relembrar fatos passados. Hoje a fotografia é individual, pois fica em nosso bolso, no smartphone e quando você inventa de mostra-la para alguém vem aquele exercício de vai e vem para adaptar o foco à nossa cansada visão.

Assim é com a história, perpetuada por livros físicos, fotografias impressas, filmes e outras formas de guardar para o futuro o momento presente ou passado. Está chegando ao fim ter em casa dezenas de livros que nos tornam mais sábios. Revistas ? Nem falo nada. Sejam em quadrinhos, sobre tricô ou receitas, ou informativas, já tiveram seu tempo, levando à bancarrota diversas de suas editoras.

Bom, tudo isso para dizer que estamos no mundo digital a muito tempo. Lembro que entrei na internet em 1996, poucos anos depois dela comercialmente aportar no Brasil. Não tinha o que fazer com ela. As ferramentas foram se formando aos poucos, moldando o formato que conhecemos hoje. Celular não era smart, servia apenas para ligações telefônicas no local em que você estivesse. Bem ... tinha alguns lugares que não funcionava nem com reza braba, isso é verdade.

O Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba tem sua vertente digital sobre a história de Piracicaba. Desde a década de 2000 não mede esforços para propagar fatos que compuseram Piracicaba, na sua ocupação, urbanização, industrialização e tudo mais. É curioso ver fotos do passado e comparar com a atualidade, tirando o pó de nossa “massa cinzenta” resgatando memórias afetivas de locais ou eventos pelos quais passamos. Um homem sem passado, não tem história.

Todo acervo que, além de provocar imensa rinite ou outras irritações alérgicas, embasaram estudos, teses acadêmicas e resgataram o passado. O IHGP tem jornais, livros, filmes, discos em formato físicos. Alguns inacessíveis ao público por conta do desgaste ocasionado pelo tempo, como por exemplo o jornal “Gazeta de Piracicaba” da década de 1880. Impossível abrir tal acervo à sociedade sendo que qualquer folhear irá esfacelar suas páginas.

Dos anos 2000 para cá, e olhe que são 25 anos, vários voluntários se uniram para digitalizar esta história, como o livro de enterramentos do Cemitério da Saudade, que hoje pode ser consultado à distância. Fotografias que definiram a sociedade piracicabana no século passado podem ser vistas e ter download feito pelo Flickr da entidade. E, o melhor, de forma gratuita. São hoje 10.500 registros disponíveis com 3 milhões de visualizações individuais. Nosso Wiki pôde ser consultado com verbetes do “Dicionário de Piracicabanos”, catalogado pelo professor Samiel Pfromm Neto. Quer saber quem foi Fulano de Tal ? Coloca no Wiki do IHGP e você terá sua biografia. O serviço hoje está indisponível. Tal formato vem sendo estudado para 2025 com foco exclusivo para os descendentes de italianos, como forma de celebrar os 150 anos da imigração dos ítalos. Livros, antes restritos ao papel, já podem ser acessados pelo site do IHGP. Não são e-books e sim as versões digitais em PDF do que foi impresso.

Recentemente o IHGP uniu-se a WRPD Informática e criou o Nhô Chat, ferramenta de inteligência artificial que auxilia a inteligência humana. Não é um buscador como foi confundindo por algumas pessoas. Para isso já existe o Google ou o Wikipedia. É uma ferramenta para compor mensagens, buscar informações catalogadas no acervo do IHGP que conta atualmente com cerca de 70 livros publicados. É uma ferramenta que colabora com pesquisas em livros e outros meios. O Nhô Chat é recente. Ainda é um bebê que mama e está formando sua capacidade intelectual. Ainda não é um adulto pós-graduado. Isso forma-se aos poucos, como é a inteligência, seja artificial ou orgânica. Tem chão para engatinhar e futuro para despontar como um bom aluno e, aí sim, virar um mestre.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 8 de dezembro de 2024) 


quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

A câmera, essa estranha

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Por mais de uma década circularam pela internet trechos de um documentário feito pela Independencia Film, expondo Piracicaba durante as comemorações do centenário da Independência, em 1922. Os trechos mostravam um Arco do Triunfo reproduzido ao final da rua Boa Morte, próximo a Estação da Paulista, um grupo de escoteiros partindo por um comboio que passa pela rua Benjamin Constant, ou pessoas realizando o “footing” na praça José Bonifácio.

No dia 21 novembro, o Teatro Erotides de Campos, no Engenho Central, teve lotação total para assistir ao filme completo e restaurado pela Urgência Films. Foram 1h30 de um celuloide muito bem recuperado com efeitos sonoros e música ao vivo. Já, em 12 de dezembro, houve apresentação no Museu Prudente de Moraes.

A obra merece atenção de estudiosos e de todos os piracicabanos que amam a cidade. Traz algumas curiosidades, entre elas mostra que existe preocupação maior do que aquela que se tornou um estigma local: a demolição do Hotel Central. Houve muitos prédios imponentes que sumiram com o passar do tempo que nos deixam boquiabertos e saber que os perdemos em prol da melhoria urbanística da cidade. A plateia riu quando, Piracicaba então com 50 mil habitantes, passou a conhecer uma obra pública denominada de “Avenida da Independência” que vai de um dos trechos do Ribeirão do Itapeva na avenida Armando de Salles Oliveira e se finda próximo a Esalq. Os risos não foram por isso. É que do local em que Piracicaba foi mostrada – talvez próximo a rua XV de Novembro – tal ponto da Avenida Independência era um mato só, algo que hoje só vemos na zona rural.

A Independencia Film foi a empresa paulista contratada pela Comissão Organizadora do Centenário da Independência Brasileira para filmar o estado de São Paulo. A empresa pertencia o reconhecido Menotti del Picchia e seu irmão José del Picchia e Armando Pamplona. Sua equipe aporta em Piracicaba e grava cenas icônicas como o rio, a Esalq, o Cemitério da Saudade, a praça Sete de Setembro, a Estação da Paulista, a Ponte Irmãos Rebouças e mais. O objetivo era ganhar dinheiro, papel principal da indústria de entretenimento cinematográfica. Exibir o documentário na cidade e em outras como atrativo para um país que estava em crescimento. Em 1922, ano que o documentário foi apresentado, o cinema ainda era mudo. Mas, com toda certeza, piracicabanos e piracicabanas queriam se ver na telona. É possível identificar Fernando Febeliano da Costa e o Padre (depois Monsenhor) Rosa, entre outros.

Curioso é ver trechos rápidos como a partida entre o XV de Novembro e o Guarani. Era um time ainda em formação. O alvinegro estava prestes a chegar aos seus nove anos de formação. Na plateia, grande maioria de terno, numa cidade considerada quente demais, e alguns com guarda-chuvas fazendo dele a vez de sombrinha para diminuir o poder do sol. Nas imagens dá para se ver a arquibancada meio metro da lateral do estádio. Muito ouvi falar que no Gomes Pedrosa dava para dar facilmente um tapa na orelha do juiz auxiliar.

Piracicaba sempre foi uma cidade acolhedora e com coração quente. Diz, mais ou menos o documentário. Assim é registrado ao final de uma das missas na Matriz de Santo Antonio, quando, para as filmagens, a mendicância é apresentada com imagens e legendas. O mendigo que ficou sentado à direita da porta nunca recebeu tanta esmola em dinheiro como desta vez durante a filmagem. Não entendam essas linhas como ironia ou outra coisa qualquer, mas é curioso ver como Piracicaba e seu povo eram 102 anos atrás. Uma cidade curiosa com ruas largas feitas para pessoas andarem, já que são poucos os veículos que vemos nas cenas. Crianças de manga cumprida, muitas com coletes ou blazers. A elegância toma conta no celuloide preto e branco restaurado com a qualidade 4K divididos em colorizações como a sépia.

Curioso é ver o comércio local como a empresa de pastifícios Fábrica de Macarrão Emílio Bertozzi & Co., com suas massas sendo secadas ao sol ou suas tiras tendo armazenadas sem os cuidados atuais como o uso de gorro ou luva. Piracicaba também teve seu biotônico anunciado como Biogol fabricado pela Phamacia Faria, do farmacêutico Ernani Braga. As cenas mostram o interior da farmácia e mais para frente é possível ver publicidade do produto no alto do bonde da Esalq.

Interessante é ver as pessoas se depararem com a câmera. Ninguém teve seu mise-en--scène e é comum alguém dando um tchau para a tela, uma jovem enrubescer na praça ou o guia que passeia pelo salto do rio gesticular para onde ele deveria ir. Era algo novo: uma câmera filmadora, essa estranha e desconhecida máquina.

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 24 de novembro de 2024 e na Tribuna Piracicabana em 14 de dezembro de 2024)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Pira nunca esqueceu

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Piracicaba nunca esqueceu. Mas talvez nem sem lembre. Foi numa sessão, talvez a tarde, do Cine Politeama, na praça José Bonifácio, situado onde está hoje o Itaú e o estacionamento do Bradesco. Pode ter sido nos anos 1940 ou nos anos 50. Alguns agricolões resolvem fazer uma aposta e tumultuar uma das sessões. Colocam um urubu vivo numa sacola, compram ingressos para o cinema e entram com a ave. Em determinado momento, tal ave é solta e começa a voar pelo no alto do cinema. Ninguém entendeu nada. Mulheres se apavoraram. O filme foi interrompido e o urubu foi resgatado atrás da tela, assustado. Não sei como foi, só sei que foi assim. Assim ouvi de meu pai e meu tio e recentemente a lembrança foi ativada com a professora Marly Therezinha Germano Perecin, minha “ídala”, numa conversa informal, a qual disse lembrar da situação contada por seu pai.

Pira nunca esqueceu que até os anos 1950 ou 1960 era obrigatório ir ao cinema com terno e gravata, para os homens, lógico, e roupa longa ou extremamente social para as mulheres. Se não estivesse assim, não entrava.

Pira talvez não se lembre, mas nunca esqueci quando fui assistir à uma reprise de “Sansão e Dalila” no mesmo Politeama, na segunda metade dos anos 1970. É exatamente aquele clássico de 1949 com Hedy Lamar e Victor Mature. Nos anos 70, a censura era ferrenha e novos filmes raramente eram exibidos, abrindo chances para incansáveis reprises. Eu tinha entre oito e nove anos. Fui acompanhado de meu irmão mais velho. Voltamos para casa sem ver o filme. O bilheteiro disse que crianças menores de idade – eu – não poderiam ver o filme. Uma clássico ! Um filme bíblico ! Descomunal, isso !!! Anos mais tarde, fique sabendo que, durante seu lançamento nos anos 1940, Groucho Marx teria comentado que era o primeiro filme em que havia visto o mocinho (Mature) ter mais peito que a mocinha (Hedy Lamar). Tolerância zero para a falta de pudor. Lastimável. Nem o valor do ingresso foi devolvido.

Pira não esqueceu quando Grande Otelo fugiu do hospital para participar da inauguração do Cine Arte no Teatro Losso Netto. Dizem que isso é lenda. Ele não estava no hospital. Mas importa é que ele veio, para abrir as portas de uma das – senão a única – cinematecas da cidade.

Pira nunca esqueceu dos cinemas itinerantes exibidos de forma arcaica em circos como o Piranha ou o Veneno, ou ainda o cinema do Clube Atlético Piracicabano que, nos anos 1980, atraia dezenas de pessoas na sede da entidade na avenida Barão da Serra Negra, ao lado da praça da matriz da Vila Rezende.

Pira nunca esqueceu a inauguração do Cine Tiffany, em 1981, na rua São José, com noite de gala para assistir à cenas quentes de amor entre Brooke Shields e Christopher Atkins em “A lagoa azul”. Ou ainda “Dirty Dancin’ – Ritmo Quente” que ficou por longos três ou quatro meses no Cine Arte. Mesmo local desativado depois de um enorme alagamento ocorrido durante exibição de “Titanic” !!!

Pira pode esquecer, mas eu não. Do “Chico Andia” e seu pioneirismo com relação às salas exibidoras, como o Rivoli, Colonial, Tiffany e o Plaza, no Edifício Luiz de Queiroz, o Comurba, que ruiu 60 anos atrás, lembrados em novembro. Me lembro bem no final dos anos 1980 de ir ao seu escritório no Edifício Sisal Center retirar press-releases e retirar convites para as críticas que eu publicava no extinto “O Diário”. Era sempre bem recebido pela Edna e pela Ana Lúcia Santos. Gente que mora no nosso coração.

Tudo isso para parabenizar Dara Oliver pelo documentário “Pira nunca esqueceu”, ela filha de Luiz Andia Filho e sobrinha de Francisco Andia. Quem assistiu à avant premiere no Cine Araújo dia 21 de setembro, se emocionou ... chorou ... Cinemas de rua viraram nostalgia e memória de muita gente. Parabéns, Dara. Seu trabalho é um exemplo que deve ser seguido !


sábado, 23 de novembro de 2024

Piracicaba republicana

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Saindo do Mercado Municipal, o tão pejorativo “Mercadão”, após um pastel com uma caçulinha Guarani, deparo com a rua Dom Pedro I. Bom, até aí, tudo bem. Ando mais cem metros e vejo a rua Dom Pedro II. Coincidência pai e filho serem denominados com ruas paralelas? Aí vem a dúvida de um petiz prestes a participar do Enem:

- Senhor, por que dom Pedro I é mais moço que seu filho ?

“Como assim?”, pensei eu. Daí, saquei! O primeiro foi retratado quando moço em muitos quadros e a sua imagem se perpetuou assim. Também pudera! O responsável pela independência do Brasil deveria ter sua imagem propagada como um jovem, viril e com outros adjetivos. O segundo foi mais fotografado que pintado em telas. A fotografia só surgiu um ano depois de Segundo nascer. Isso foi em 1826 e daqui dois anos teremos o bicentenário da criação da fotografia. Segundo perpetuou sua imagem em milhares de fotografias. Muitas como o “velhinho” que conhecemos. Aliás, dom Pedro, o segundo, foi o grande mecenas para que a fotografia aportasse em nossas terras, incentivando fotógrafos como Marc Ferrez e Augustus Morand, ordenando a presença de um retratista em suas comitivas. É imenso o registro de sua vida social em fotografias.

Bom. Entro no carro e parto para o Museu Prudente de Moraes. Curioso é ver que o Museu fica a uma quadra da rua que leva o nome do terceiro presidente do Brasil. Mas a Piracicaba Republicana tem disso. Ruas, monumentos, prédios ... todos eles com citações de personalidades que compuseram nossa República depois de quase quatro séculos de administração por monarcas como reis, regentes, imperadores etc etc etc. Quem nunca parou para admirar as peças em exposição neste local que foi casa e escritório de Moraes, aquele que admirados falamos como sendo o “primeiro presidente civil do Brasil”, como mérito por ter vivido em nossa amada cidade.

Novamente no carro, dirijo-me para uma rede atacadista na finalidade de comprar um fardo de refrigerante. Ops ! Olha a República estampada aí de novo ! Rua Regente Feijó. Mas, filho, Feijó não viveu na República e sim foi Regente do Império Brasileiro. Sabemos disso. Mas ele tinha leve queda para a linha republicana, e historiadores dizem que foi o primeiro chefe do executivo nacional, isso em 12 de outubro de 1835, quando o Ato Adicional de 1834 transformou a Regência em Una, ou seja, as decisões eram tomadas única e exclusivamente pelo ocupante da Regência. Uns podem ver nisso um ato ditatorial, mas como Feijó foi eleito pelos rígidos parâmetros da época, respirou por alguns anos o ar republicano.

Vou para a Paulista e no caminho subo a Rua do Vergueiro. Seria o senador Vergueiro ? Teve relação com a República ? Bom. Não vamos entrar neste mérito.

As ruas centrais da cidade são devidamente nominadas em homenagem àqueles que administraram este Brasil. Era uma tendência comum na primeira metade do século passado.

No meio do caminho, aparece a rua Floriano Peixoto, uma rua totalmente reta que começa acima da avenida Independência, tem seu caminho cortado pelo terreno da Santa Casa e finda com um trecho sem saída em área próxima a Chácara Nazareth. Peixoto teve ligação direta com a República. Foi veterano da Guerra do Paraguai e primeiro vice-presidente da República junto a Deodoro da Fonseca. Este renunciou ao cargo de presidente passando no meio de seu mandato o bastão a Floriano, que presidiu a república de 1891 a 1894. Depois veio o “piracicabano” Prudente de Moraes.

Do Centro, a cabeça viaja lá pelos lados da Sorveteria Paris. “Mas o churrasquinho do Bar do Décio era uma delícia”, me vem à memória naquilo que se tornou saudade lá pelos anos 1980. Os dois estabelecimentos comerciais (o primeiro ainda existe) situam-se no cruzamento da Santa Cruz com a rua Marechal Deodoro. Outra rua sem curvas, retíssima, que começa ao lado da Escola Prudente de Moraes (olha ele aí de novo) e acaba como uma rua sem fim dois quarteirões após a avenida Independência, tendo ao seu lado a rua Regente Feijó.

São histórias curiosas neste mês de novembro, cujo dia 15 serviu como emenda para o final de semana, feriado nacional em consagração à República do Brasil. Foi o fim do império e o início de repúblicas que vão da velha, à nova e à contemporânea (sempre cheia de surpresas...)

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 17 de novembro de 2024 e Tribuna Piracicabana de 23 de novembro de 2024) 



quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Novembro

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Chegamos ao nono mês do ano. Ops ! Novembro é o nono ? Sim. Seu nome vem do latim novem, mês anteriormente consagrado a Júpiter. Daí o Império Romano mudou o calendário, acrescentando dois novos meses, completando os 12 atualmente conhecidos. Mas o objetivo aqui não é discutir o sexo dos anjos e sim relembrar alguns fatos que marcaram Piracicaba neste mês, em tempos remotos.

Pode-se dizer que Piracicaba surgiu em novembro. Sim. Foi em 15 de novembro de 1693, ou 331 anos atrás, que foi assinada a carta de sesmaria de nossa região, outorgando a Manuel Peixoto da Mota a incumbência de povoar a região tomada por mato para que tudo é lado, tendo por base central a “cachoeira” existente no rio que divide a área. Por aí é fácil localizar que Piracicaba surgiria a partir do salto do rio Piracicaba. Mota, deixa clara a história, não ocupou a área da sesmaria, não a povoou nem praticou melhorias, sendo que a mesma retorna às mãos da capitania em 1726.

Os documentos sobre a história local são meras referências. Algumas curiosas e sem muitos detalhes. Um dos exemplos foi a grande chuva de pedras que caiu sobre a cidade em 18 de novembro de 1871.

A leitura era um item importante na rotina no século retrasado. Eram poucas as formas de entretenimento, de forma que uma biblioteca, denominada de gabinete de leitura, foi reaberta em 10 de novembro de 1882. Quem queria, podia ler. Não foi o caso do senhor José Antonio da Cruz, cujo falecimento foi anunciado no apanhado de curiosidades do Almanak de Piracicaba para 1900: “dia 4 de novembro de 1887 faleceu o antigo cego José Antonio da Cruz”. Será que ele voltou a enxergar em vida, ou por ter falecido recebeu a alcunha de ex ?

O 15 de novembro é um dos poucos feriados do calendário atual que proporciona uma emenda com o fim de semana. Mas em 1889 acaba o Império e passa a “reinar” a República. No dia 17 seguinte tomam posse de forma “unilateral” e por vontade própria Moraes Barros, Luiz de Queiroz e Paulo Pinto, assumindo a administração de nossa terra. Não houve eleição, nem plebiscito. Simplesmente o trio assumiu o poder sem mais nem menos. São auxiliados pelos vereados de então: João Nepomuceno Sousa, Barão de Rezende, João Manoel de Moraes Sampaio, Manoel da Costa Pedreira, José Carlos de Arruda Pinto e Francisco Florencio da Rocha.

Conturbada a República em seu início, Deodoro da Fonseca, empossado em 1889 presidente da República, passa o governo a Floriano Peixoto em 1891 e três anos depois ao ituano mais piracicabano que ninguém Prudente de Moraes. A busca pelo poder colocou em risco a vida de Prudente em novembro, no dia 1° de 1897, quando este sofre uma tentativa de homicídio, com uma garrucha que não disparou sendo que seu ministro marechal Machado Bittencourt interveio e foi apunhalado por diversos golpes, falecendo em decorrência da atrocidade. O Almanak de Piracicaba para 1900 diz que “alguns dos implicados, mais infelizes, ainda ahi passeiam, castigados pelo remorso, penitenciando-se aos bocadinhos; estes, si conseguiram escapar aos golpes da lei, mas não escaparão nunca à maldicção de povo, e ás tremendas acusações da própria consciência’.

Missão cumprida, Prudente de Moraes retorna a Piracicaba em 23 de novembro de 1898 deixando a presidência do país ao seu sucessor. Aqui aporta para dar sequência à sua vida como cidadão prestante. A recepção calorosa por parte da sociedade dura três dias e três noites com festas e muito falatório.

O Carmelo do Imaculado Coração de Maria e de São José, conhecido por Carmelitas, situa-se na rua José Ferraz de Camargo que faleceu em novembro de 1894, no dia 27. Nascido em Itu, veio a Piracicaba trabalhar no engenho do Monte Alegre. Enviuvou-se de quatro esposas e teve cerca de 40 filhos.

E assim foram poucos fatos sobre a história local no mês de novembro.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Tudo como era antes

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Tudo igualzinho como era antes. Claro que não exatamente como era antes. Vergonha. Promessa descartada. Crescimento pessoal fica para a próxima. Reerguer a cidade. Assim foi Piracicaba 92 anos atrás, ao término da Revolução Constitucionalista de 1932.

Jornais da época noticiam o retorno dos “voluntários de Piracicaba” que pegaram armas para evitar o avanço das forças federais. Armas por uma causa democrática ? Sim ! Afinal, paulistas queriam uma Constituição nova, com ares modernos, conforme Getúlio Vargas havia prometido em 1930 quando tomou posse. Aliás, este ar de nova constituinte já vinha de uma década antes.

Mas, São Paulo “perdeu”. Se rendeu em 2 de outubro para surpresa geral. Os jornais da época falavam que o Estado paulista estava vitorioso, que as mortes registradas até então tinham valido a pena pois a nova lei magna nacional estava surgindo. Ledo engano. Piracicabanos, assim como os demais paulistas, retornavam para casa, para seu lar, talvez conseguissem recolocação no mesmo posto de trabalho... “Teria valido a pena ?”, pensou aquele voluntário que foi se embrenhar nas trincheiras do norte do Estado pensando em conseguir um bom emprego como lhe haveria sido prometido. A cidade teve de se reconstruir. Não que tivesse sido bombardeada, mas a economia estava em frangalhos. A rotina teria que voltar imediatamente à normalidade depois de três meses de imprevistos sociais, econômicos, familiares ... de tudo que é tipo.

Piracicaba perdeu mais que dez filhos na Revolução de 1932. Foram poucos, podem pensar o nobre leitor. Mas, contesto. Foram muitos, pois a famílias despedaçadas sabem o quanto sofreram por suas mortes, perpetuadas por décadas pelos irmãos, filhos e parentes como um todo. Tudo isso sempre foi lembrado nas celebrações anuais do 9 de julho até o falecimento do último Voluntário de Piracicaba, Romeu Gomes, em 17 de junho de 2016, aos 100 anos de idade. Eram pessoas como ele que levantavam a bandeira de todo o entusiasmo que tiveram os piracicabanos que se envolveram com esta que foi a última insurreição armada em solo brasileiro. Falam de 600 ... 800 ... 2.500 envolvidos direta ou indiretamente. Apenas em nossa terra ... O número nunca foi e nunca será exato. Os filhos destes voluntários, como parte natural da vida, também estão indo embora. Torcemos para que tenhamos por aqui alguém que empunhe a bandeira para a celebração do centenário da Revolução Constitucionalista daqui oito anos.

À época, a cidade ainda chorava seus mortos como vemos neste relato: “Os denodados e valorosos voluntarios piracicabanos, que na cidade se encontra de regresso das linhas de fogo, cogitam de levar a effeito uma romaria aos túmulos onde descançam (sic) os seus irmãos de ideal, sacrificados na luta pela redempção do Brasil. Ideia elevada, que partiu de corações nobres, ella demonstra bem o sentimento de fraternidade que a todos irmanou quando da deflagração do movimento constitucionalista”. Jornal “O Momento” de 8 de outubro de 1932.

Jacob Diehl Neto, na Gazeta de Piracicaba, de 19 de outubro de 1932, relata seu desabafo: “Soldado raso do Primeiro Batalhão Piracicabano, que saiu desta cidade em 16 de Julho, como soldado entrei para as trincheiras (...) ao lado de tantos outros bravos camaradas, que me orgulho de haver acompanhado, em Palmeiras, Santa Rita, Tres Pontes, Batalhão, Bocaina, Quebra-Cangalhas e Cóta Queimada, até 24 de Setembro, data em que a minha claudicante saúde, trabalhada por sessenta ásperos dias de campana, pelos meus quarenta e dois annos de edade e pelas ultimas chuvas, me forçou a depor o fuzil e regressar para casa.

(...) Essas Companhias chegaram a Areias altas horas da noite, em caminhões, e os seus soldados tiveram de dormir ao léo... Lembro-me de ter visto o sargento Jones na calçada, o prof. Antonio Oswaldo Ferraz num caminhão, o meu filho numa casa paupérrima e abandonada, estendido no soalho. Depois de muito vagar, achei pouso na sala do jury... No dia seguinte, num rancho commum para os soldados sem transito, tomámos uma caneca de café e recebemos um pão minúsculo. Logo entrámos em fórma, ouvimos algumas palavras do Cel. Andrade e, separados em grupos de vinte ou tinta, sem que pudéssemos ao menos abraçar, e sem almoço, tocámos para as linhas de foto – uns para Palmeiras, outros para Santa Rita, outros mais para Barreiros, outros ainda não sei onde ...”. E, assim, voltamos à normalidade em terras piracicabanas.


domingo, 3 de novembro de 2024

Relou uin

 Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Edgard tinha um corvo de estimação. Não urubu, mas estes corvos que vimos em “Os pássaros”, de Alfred Hitchcock. Empoleirado, o corvo passa o dia na sala com seu tutor. Este, por sua vez, era avesso às modernidades tecnológicas e adorava ler.

Foi à estante e procurou por livros temáticos para comemorar o tal de Halloween. “Engraçado – pensou ele – na minha infância, os professores falavam sobre personagens folclóricos como o Saci Pererê, a Mula Sem Cabeça, e hoje a molecada endeusa folclores americanizados como Jack O’Lantern (o cabeça de abóbora), Jason, zumbis e toda esta parafernália que, Made in China, vem abarrotar as lojas de departamentos já a várias semanas”, pensa.

É a vida. É o avançar dela. É a evolução social. Mas, adepto às boas publicações em papel, Edgard pegou livros para a semana. Hoje, “A queda da casa de Usher”. Amanhã, uma coletânea do seu xará Edgard Alan Poe. Opa ! Mas a consciência pesa ! Falando na cultura anglo saxã, lembra que o Brasil também teve grandes expoentes na escrita fantasmagórica. Lá se vão os contos clássicos de Álvares de Azevedo, Machado de Assis (sim ! ele escreveu contos de terror), mais e mais. Chatos prá caramba ! Escritos numa época em que a interpretação de texto exigia grande conhecimento cultural, essas escritas brasileiras se tornam enfadonhas. Mas o talento de seus autores é incontestável.

Edgard não se esquece que na prateleira tem coleções de quadrinhos lançados na época ou reedições atuais. Depara com obras de Rubens Luchetti, Flavio Colin, Júlio Shimamoto, ou coletâneas dos anos 1960 e 1970 como Clássicos do Terror. Poxa ! Como os brasileiros desenharam bem, numa época em que os quadrinhos eram artesanais e feitos a nanquim ! Os traços são perfeitos. Verdadeiras obras de arte.


Edgard, não muito chegado à tecnologia e à cultura propagada hoje por estadounidenses, pensa em chamar seus amigos para um chá da tarde, lembrando de Peter, Vicent e Christopher. Antes, porém, liga a TV e acessa seus aplicativos preferidos: Oldflix e Darkflix. Poxa ! Estão com promoção pelo dia das bruxas, com programação de clássicos. “Ah ! Mas ainda dá tempo de ir no Oxxo da esquina e pegar um muffin e um café expresso”, pensa.

Edgard sai rapidamente com sua “roupa de mendigo” – passa o dia de pijama, já que mora sozinho –, volta com seu bolinho de chocolate e café em copo de papel. A TV estava ligada e ele começa a zapear o controle remoto. Opa ! Este vai para os favoritos. Aquele outro também. Adorava produções da Hammer e Amicus, britânicas que deram os melhores clássicos de terror nos anos 1960. Lembra do brasileiro José Mojica Marins, o “Zé do Caixão” ou Joe Coffin como rotularam os americanos, mas a produção britânica lhe distrai a atenção. Também, pudera ! Passam pela tela obras de Edgard Alan Poe, Nataniel Howthorne, além de faces conhecidas do grande público como Peter Cushing, Vincent Price, Cristopher Lee. “Que legal ! Até Roger Corman está na lista”, falou alto, quase respingando café pelo chão.

A hora passa, o dia das bruxas está quase no fim. Zapeia daqui, zapeia dali ... Tanta opção e nenhuma escolha. Muita informação. Eis que Edgard dorme, derruba o café no chão, sem perceber, e o muffin ficaria para o dia seguinte, duro, claro. Assim foi uma tentativa fracassada de curtir uma noite de “relou uin”. Nem teve pesadelo por assistir ou ler algo pesado. O sono venceu.  


quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Já vivemos sem iluminação

 Edson Rontani Júnior é jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

As tempestades dos últimos dias provocaram uma reviravolta na vida de muitas pessoas. Na capital paulista, cerca de 100 mil lares ficaram sem energia elétrica e, com isso, perderam mantimentos conservados sob refrigeração. Banho ? Só se for gelado. Nem energia para carregar o celular as pessoas tiveram acesso. Distrair como ? Sem celular, sem televisão, sem internet, sem luz.. Muito se falou sobre a poda preventiva de árvores, a privatização do fornecimento de energia elétrica, a culpa política da situação.

Mas como fazíamos no passado ? Explicam curiosos locais como Leandro Guerrini, Samuel Pfromm Neto e Maria Celestina Teixeira Mendes Torres com suas publicações sobre a história de Piracicaba. Antes da luz, fez-se o fogo. Não é a toa que ainda usamos expressões como “segurando vela” ou os mais antigos citavam que ao ir no supermercado deveriam comprar uma lâmpada de 40 velas, em parâmetros para o posterior watts quando surgiu a energia elétrica.

Em fevereiro de 1873, a Câmara de Piracicaba envia solicitação ao Governo Provincial solicitando 50 lampiões de querosene para instalação na cidade. São Paulo na ocasião havia trocado os postes de querosene por iluminação a gás. Assim, os postes anteriores seriam inservíveis, interessando à edilidade piracicabana que custearia o transporte da capital para cá.

Deve ter passado despercebido por grande maioria, mas meu papel aqui é lembrar alguns destes fatos, dentre eles o de termos comemorado neste 2024 os 150 anos da iluminação pública na “Noiva da Colina”. Sim ! Foi no dia 14 de fevereiro de 1874 que a cidade ganhou postes com iluminação à querosene. Claro que a iluminação não era aquela maravilha e nem dava tanta claridade, mas o piracicabano de então tinha segurança em voltar para casa, retornar de uma visita ou buscar algo na farmácia ou no comércio se é que funcionavam à noite. Lembremos que daí vem outra expressão “dormir e acordar com as galinhas”, sendo que estas se põem a dormir com o escurecer ou levantam piando com o raiar do dia. A iluminação pública era como o lampião de querosene utilizado nas residências. Tinha uma quantidade do líquido e um pavio de tecido. Leandro Guerrini, por sua vez, cita o “Almanak de Piracicaba para 1900”, dizendo que o cessionário da iluminação pública local foi um tal de Manuel Ernesto da Conceição.

Guerrini lembra que os postes ficavam nas esquinas. O querosene em cada poste tinha uma determinada medida que garantia a iluminação até as 22 horas. Lampiões similares ficavam no interior das residências e estabelecimentos que serviam gastronomia aos comensais. À escuridão, sem Netflix, celular ou qualquer outro entretenimento, os olhos cerravam mais rápido atraindo o sono e jogado nossos ilustres cidadãos aos braços de Morfeu. E tenha uma boa noite !

Mas, - pergunta o curioso leitor- e o gelo, o sorvete, a carne congelada ? Vamos com calma. A refrigeração veio décadas depois. Carne durava se colocada em imersão de sal, igual ao bacalhau que conhecemos.

Algumas semanas – acho que foram várias semanas – escrevemos aqui sobre a iniciativa de Luiz de Queiroz em assumir a iluminação local através da energia elétrica, alcançada com geradores movidos pela água do rio Piracicaba em sua fábrica de tecidos, hoje lembrada como Boyes. Pouco conhecido é que o caminho pioneiro de Queiroz foi assumido em 1903 por Antônio Augusto de Barros Penteado através da Ignarra Penteado & Cia. Este veio com ares modernos, reformando a empresa, capacitando funcionários e levando não apenas luz às residências, mas também energia elétrica para o que quer que Piracicaba tivesse na época, podendo ser geladeira ou algum aparelho audiovisual, se é que existiam. Sem televisão, internet, games, as pessoas buscavam mais a sociabilidade seja para almoçar na residência de familiares ou amigos ou mesmo para “tricotar” sobre a vida alheia. Aí, fez-se a luz. O mundo nunca foi igual como antes...

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 20 de outubro de 2024 e na Tribuna Piracicabana de 27 de outubro de 2024)


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O fanzine brasileiro

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

De passatempo a ícone da comunicação autoral e alternativa. Assim notabilizou-se o primeiro fanzine publicado no Brasil que, no último dia 12 de outubro, completando seus 59 anos. Como brincadeira de gente grande, o fanzine “Ficção” surgiu para preencher a lacuna entre os fãs das histórias em quadrinhos no final de 1965, numa época de ebulição do mercado editorial brasileiro em que desfilavam grandes editoras que propagavam a nona arte, como O Cruzeiro, Ebal, Vecchi, La Selva, Lord Cochrane, RGE, Bloch e muitas outras que faliram ou se fundiram com multinacionais.

Publicação feita no fundo do quintal e nas horas vagas, o “Ficção” não tinha pretensão de ser o primeiro fanzine do país. Foi lançado como “boletim” e apenas em meados dos anos 1970 recebeu esta denominação por estudiosos em comunicação. Não pretendia ser um marco ao catalogar tudo o que foi lançado no mercado de quadrinhos. Era um delicioso passatempo no qual o funcionário público do estado de São Paulo Edson Rontani se dedicava para falar sobre sua maior paixão.

Tem seus antecedentes. Isso nos anos 1940 quando foi impulsionado pelos seriados de cinema produzidos pela Republic Films, os quais apresentavam os heróis da era dourada dos quadrinhos como Flash Gordon, Batman, Superman, Zorro e tantos outros personagens, hoje sob posse da DC Comics e da Marvel Comics. Estes seriados eram exibidos nos Teatro Santo Estevão e no Teatro São José. Rontani em companhia de seu amigo Oswaldo de Andrade eram tão fascinados em reter estas memórias que criavam seus próprios gibis desenhados a mão e distribuídos entre os amigos. Assim propagavam as emoções vistas na tela.

Esta paixão fez com que anos mais tarde houvesse a necessidade de se profissionalizar e procurar pessoas – fora de Piracicaba – para conversar sobre quadrinhos. Cria-se o “Ficção”, impresso em mimeógrafo, com páginas grampeadas, envelopado e enviado pelos Correios. Recebiam esta publicação grandes expressões da época como Adolfo Aizen, Maurício de Souza, Lyrio Aragão, Jô Soares, José Mojica Marins (o “Zé do Caixão”), Gedeone Malagola e muitos outros. Maioria desconhecidos pelo público que surfa pela internet.

“Ficção” circulou até o início dos anos 1970, período em que professores, comunicadores e estudiosos perceberam seu pioneirismo na comunicação alternativa e autoral. Estabelecia-se então o primeiro fanzine publicado no Brasil, algo ainda reverenciado nos dias atuais.

Os primeiros registros do fanzine são datados dos anos 1920 nos Estados Unidos e hoje – em pleno período de avanço tecnológico digital – ainda é feito tanto lá fora quando no Brasil, de maneira artesanal e com muita paixão. Não é a toa que fanzine é a união das palavras fanatic (fã) e magazine (revista), ou seja, a revista feita pelo fã.

Produto genuinamente piracicabano, terra tão cheia de cultura e com grandes revelações, o fanzine vem sendo reverenciado neste mês por chegar aos seus 59 anos, com atividades realizadas em universidades e republicações que serão feitas em todo o país. Não faltaram manifestações no último final de semana. As mídias sociais digitais, inclusive, impulsionam para que isso se torne mais evidente. É referência inclusive em estudos científicos, embora desconhecido na terra natal de seu autor.

Como passatempo, virou marco na comunicação. Talvez porque seu criador nunca pensou em fazê-lo um trabalho pioneiro - procurava o meio e nunca o fim como reconhecimento, para colher sua devida colocação na arte nacional.


quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Castanho

 


Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

“Sou um comerciante da escrita”, disse certa feita Monteiro Lobato. Isso resume que, além de ter uma língua ácida, provocativa e lúcida, fazia das letras um negócio. Soube bem negociar e fazer dinheiro com tudo que colocou no papel. Fez carreira e fortuna com seus livros lançados numa época em que a imaginação vinha da cabeça do leitor, alicerçada por aquilo que ele discorria nas folhas de livros e jornais.

Ainda não tínhamos a concorrência do rádio e da televisão. Éramos educados e entretidos também pela escrita. Pelo menos uma pequena parcela do país, já que por décadas e décadas, o Brasil formado por pessoas analfabetas. Isso mesmo. A preocupação com o aprendizado da leitura ocorreu a partir de meados da metade do século passado. Vamos lembrar que o ensino educacional até os anos 1930 era feito em francês e até os anos 1960 as missas eram rezadas em latim. Isso mesmo. Aqui no Brasil. Censo de 1920 mostrava que 71% da população brasileira era analfabeta.

O hábito do conhecimento estava entre a classe mais abastada que enviava filhos para os Estados Unidos ou países europeus para graduação em faculdades. O ensino público gratuito, inclusive para adultos e moradores da zona rural, torna-se obrigação do Estado com a Constituição de 1934. Antes, apenas afortunados poderiam pagar para deixar seus rebentos em escolas particulares, externatos ou internatos ou ainda ter professora particular em casa.

Foi aí que Lobato surge num cenário vazio. Foi nosso Júlio Verne, se assim os leitores me permitem comparar, pois utilizou ao máximo da imaginação para criar personagens inverossímeis em situações onde apenas a imaginação podia chegar, quebrando conceitos físicos e sociais. Escreveu uma produção invejável. Fez das crônicas livros de coletânea como “Urupês” cujos capítulos saíram na “Revista do Brasil” e no “Estado de São Paulo”, dando base para nosso caipira Nhô Quim.

Soube negociar seus direitos autorais pois os livros vendiam como água. Isso se utilizarmos as três primeiras décadas do século passado. Foi um exímio e habilidoso espadachim com sua caneta bico de nanquim ou máquina de datilografar, deixando no papel suas reinações que criaram o conceito de um folclore ativo e participativo do imaginário popular. Até então, Cuca não era um dragão verde. Era o dragão que São Jorge combatia na lua, segundo tradições seculares. O jacaré só se esverdeou nos anos 1970 quando virou seriado na TV Globo.

Herdou tudo que seu avô, Visconde de Tremembé, cultivou durante a vida. Não teve vida fácil, claro, mas foi ousado em investir no mercado literário através das Editoras Globo, Cia. Nacional de Livros e Melhoramentos. Quer aguçar sua curiosidade ? Leia Lobato. Assim vendeu e vendeu e vendeu suas obras. Veio buscar petróleo em Águas de São Pedro e Charqueada. Vã Investida. Mas tornou-se notório pelo teor educativo e lúdico de sua obra.

Desde sempre ouço falar que ele divide o reinado com o piracicabano Thales Castanho de Andrade. Ambos pais da literatura infantil. Mas creio que isso seja orgulho apenas de nós piracicabanos. Cada qual teve seu papel na literatura brasileira. Thales viveu 87 anos (1890/1977) e Monteiro 66 anos (1882/1948). Talvez – há quem discorde – Thales não tenha o tino comercial de Lobato, não tenha sido empresariado como este ou não tivesse amigos como a família Mesquita, dona do jornal “Estadão” onde publicava e dirigiu sua redação. Thales, no romance “Saudade”, cuja terceira edição foi publicada pelo Jornal de Piracicaba em 1922, no centenário da Independência, é uma obra de arte inspiradora para a vida juvenil de então, permeada por desenhos icônicos.

A questão não é dizer quem é o melhor, que tem maiores obras ou quem será sempre lembrado. Piracicaba com certeza elegerá Castanho como um dos principais escritores, embora tenha seu nome esquecido até mesmo em setembro, quando a primavera chegou e ele comemoraria 134 anos de nascimento.

Chegando ao período de halloween, onde redes supermercadistas e escolas de inglês já estampam caveiras e abóboras na mais pura importação do folclore anglo-saxônico, fiquemos com a nossa cultura e saudemos nosso caipiracicabano Castanho !


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

O fim estava próximo

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba

Ainda de setembro de 1932, jornais de Piracicaba traziam ânimos aos conterrâneos que empunhavam armas pela causa constituinte na Revolução iniciada em 9 de julho daquele ano. Eis que em 2 de outubro, as lideranças paulistas cedem e firmam armistício com as forças federais de Getúlio Vargas. Acaba o último conflito armado em solo brasileiro movido pelos paulistas que exigiam uma nova Constituição, a qual viria dois anos depois.

O fim do levante civil pegou todos de surpresa. Em 2 de outubro de 1932, jornais locais – O Momento, Gazeta de Piracicaba e Jornal de Piracicaba – ainda traziam artigos para elevar o moral dos cidadãos que por aqui se dedicavam aos voluntários piracicabanos. Eram duas frentes: as dos piracicabanos que foram ao conflito armado e os piracicabanos e piracicabanas que aqui ficaram e atuavam como cozinheiros, enfermeiras, costureiras e outras formas de mão de obra para garantir o abastecimento das tropas. A partir de 3 de outubro, nenhuma nota mais foi publicada sobre a Revolução. Pudera ! Com seu fim, o estado de São Paulo passou a sofrer retaliações com a deportação para Portugal dos líderes que estavam na capital paulista. Começavam as retaliações, os julgamentos questionáveis, o medo social ...

Por volta do dia 12, pequenas notas nos jornais faziam referências aos piracicabanos que retornavam aos seus lares. Há depoimentos de que alguns que pegaram em armas pensando em conseguir emprego no caso da vitória paulista. Triste realidade, pois, a cidade afundava-se com a falta de insumos desde a farinha para o pão ao combustível para os veículos. Era necessária uma reconstrução local. Não a toa, o comércio se fortaleceu encontrando a necessidade de união criando sua associação comercial exatamente em julho de 1933, um ano após o início da Revolução.

Jornais locais passavam a ouvir os piracicabanos que retornavam. Alguns acusavam companheiros como pode ser visto nas páginas dos matutinos de então, com direito a réplica, tréplica, quadruplica e assim por diante, num incessante bate-boca popular. Houve manifestações, missas em homenagens aos falecidos e constituição de comissões para criar o jazigo do Soldado Constitucionalista no Cemitério da Saudade. O Monumento na Praça 7 de Setembro, só viria no dia 6 de setembro de 1938.

O sentimento, a honra a honestidade eram diferentes na época. Pode notar-se isso na carta de Antonio de Mattos, pertencente à Coluna do Ten. Cel. Romão Gomes: “Eu recusei promoção a sargento porque acho que não tenho competencia. Quero servir a S. Paulo, como soldado mesmo” (Gazeta de Piracicaba, 28/09/1932).

De 30 de setembro a 4 de outubro, silêncio geral. A Gazeta de Piracicaba em 5 de outubro traz mensagem de moradores de Campinas que se refugiaram por aqui, agradecendo a hospitalidade, pois a cidade foi bombardeada pelo ar e em Piracicaba encontraram a paz neste período turbulento. No agradecimento, acreditavam que estava no momento de retornar para a cidade natal.

Dia 6 de outubro, também na Gazeta: “Começam a chegar os primeiros legionários do Ideal, os soldados conscientes da Liberdade, que deram tudo o que podiam dar para reintegrar a Patria na communhão da Lei, da Justiça e do Direito”.

Moral elevado: “E elles chegam – nos olhos o brilho de um enthusiasmo que não esmoreceu – para o aconchego carinhoso da família, para o convívio acalentador dos amigos. Piracicaba, berço do civismo, cidade tradicional que sempre foi vanguardeira nos grandes movimentos de opinião que visaram engrandecer o Brasil, Piracicaba, meiga e carinhosamente recebe com flores os seus filhos queridos, que sempre a fizeram grande e respeitada. Uma multidão incalculavel, toda a sua população, espera nos gares das nossas ferrovias a chegada dos comboios que conduzem os phalangiarios heroicos e bravos da mais nobre elevada causa que jamais se agitou no scenario da nossa vida politica. Partiram sob o olhar maternal e confortados pelo enthusiasmo quente da mãe carinhosa que, agora, no seu regresso – que é glorioso como foi a sua partida – os recebe entre abraços e acclamações. Piracicaba, altiva e patriota, ainda uma vez é digna das sua tradicções gloriosas”. Autoria desconhecida, da redação daquele jornal.


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Duzentos anos dos alemães

Edson Rontani Júnior, jornalista e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba 

Muito se escreveu sobre a Alemanha. Muito se falou sobre a escola de arquitetura Bauhaus, ainda hoje utilizada como exemplo internacional. Muito se falou sobre o consumo interno, com importações que abasteciam o mercado germânico. Muito se sabe, também, sobre o cinema alemão: tanto o expressionismo como o consumo das produções de Hollywood. A Alemanha era um dos – senão o principal consumidor de filmes norte-americanos – definindo produções e roteiros, além de exigir imediatas dublagens para o expectador alemão. Mas, aí veio a Segunda Guerra Mundial e tudo mudou.

O país foi dividido em dois entre 1945 e 1989: Alemanha Ocidental administrado pelos aliados, em especial os Estados Unidos, e a República Democrática (!!!) Alemã, administrada pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS ou União Soviética). Muito antes das mudanças políticas com a ascensão do 3º. Reich nos anos 1930, vários alemães deixavam sua pátria natal, muitas vezes pelas profundas crises econômicas ou, então, pelas constantes guerras na Europa Central ou no Leste do continente.

Duzentos anos atrás, a onda migratória foi estimulada pelo Império brasileiro que dois anos antes se tornara independente de Portugal. Era momento de crescimento e o “Novo Mundo” atraía esperanças tanto no sul quanto no norte da América.

Eis que nesse processo Piracicaba atrai a atenção de muitas famílias que firmaram residência, constituíram famílias e fizeram negócios.

São muitos deles, mas, rememorando ao léu Jacob Wagner, avô do artista plástico Renato Wagner. “Tio” Cecílio Elias Netto lembra que Wagner foi um dos primeiros cervejeiros locais. Um exemplo que segue hoje na cidade com microcervejarias como a Tutta Birra, Cevada Pura, Leuven e Dama Bier. Curioso é saber da revolta dos piracicabanos com o estouro da Primeira Guerra Mundial. Com isso os alemães se tornam perseguidos. Jacob que tinha sua produção na esquina das ruas Dom Pedro II com Benjamin Constant, era “boa gente”. Ao menos na concepção da horda revoltosa que pensou em acabar com seus barris de chopes. No último instante resolveram conter a raiva e voltaram para casa mantendo o estoque de Wagner de sua produção de água, lúpulo e malte. Salute ! Ops ... Skol ! Ou seria Prosit ? Fica aqui a ira do redator, pois, mesmo nestes 200 anos, Piracicaba não tem uma festa a altura para alegria dos convivas e beberrões a exemplo do vemos com a Oktoberfest.

Para não deixar em branco este bicentenário, o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, na última quarta-feira, recebeu, na sede da ACIPI, Carlos Alberto Labate, professor da ESALQ com amplo currículo e que falou de uma figura importante mas pouco conhecida pelos piracicabanos. Ele discorreu sobre a vida de Friedrich Gustav Briege, professor da Universidade de Berlim nos anos 1930 que trocou sua terra natal por ser judeu e antecipar o que ocorreria anos depois. Aportou em Piracicaba onde faleceu nos anos 1980. Foram mais de 80 anos dedicados à genética considerado como um dos pais da genética brasileira. Labate deixou claro que os estudos até então eram feitos no hemisfério norte e não existia embasamento científico para a genética nos trópicos. Briege revolucionou conhecimento e criou pupilos e teses pioneiras. Já o professor Labate discorreu sobre a vida de Briege de uma forma sutil, com detalhes imperdíveis cuja atuação merece um necessário resgate. Em breve no YouTube do IHGP.

Em seguida, outro resgate que merece ser tomado. A vida de Ernst Mahle, cujo pai foi criador e fabricante dos pistões Mahle, uma mina de ouro no cenário industrial. O cirurgião-dentista Raul Gobeth foi quem discorreu sobre este incansável alemão nascido em Stuttgart e que, no auge de seus 95 anos, é referência na música, orquestração, arranjos e óperas, entre outros. Me recordo de ficar vários minutos observando os cataventos que ele criava e expunha no jardim de sua residência na rua São Francisco de Assis, próximo aonde eu morava. Habilidades adquiridas na oficina de seu pai quando criança.

A imigração no Brasil e em Piracicaba é riquíssima. São pessoas que buscavam um novo mundo. Saíram muitas vezes sem malas, apenas com “a roupa do corpo”, passaram fome, deram suor e sangue pela luta de seus ideais. Deixaram história, e neste caso, foram perpetuados com o Bairro dos Alemães, uma das poucas, senão a única denominação geográfica na cidade em homenagem aos imigrantes. E tenham longa vida ! Prosit !

(Publicado no Jornal de Piracicaba de 22 de setembro de 2024)